versão On-line ISSN 1807-5762
Interface (Botucatu) vol.21 supl.1 Botucatu 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0555
No Brasil, a reestruturação da Atenção Primária à Saúde (APS) se inscreveu no movimento de Reforma Sanitária com a proposição de reordenamento dos modelos assistenciais, sendo denominada Atenção Básica à Saúde (AB)1-3. Ao longo da trajetória da AB, foram implementadas iniciativas para estimular a atração e fixação de profissionais de saúde em regiões remotas, como o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS – 1976), o Programa de Interiorização do Sistema Único de Saúde (Pisus – 1993), o Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde (PITS – 2001) e, posteriormente, o Programa de Valorização dos Profissionais da Atenção Básica (Provab – 2011)4-6.
Contudo, persistiu um cenário com predomínio de iniquidade distributiva quanto aos recursos humanos na área da Saúde, especialmente médicos, que trouxe limitações para a continuidade do cuidado3 devido a fatores como a rotatividade e multiplicidade de vínculos de trabalho dos profissionais de saúde, atuação concomitante nos setores público e privado, longas jornadas semanais, rendimentos diferenciados e plantão como atividade prioritária e predomínio da atuação assistencial7. Esse conjunto de fatores fundamentaram a consecução de uma proposta do Conselho Nacional de Saúde (CNS)8, que assinalava a necessidade de criação de políticas que direcionassem uma distribuição mais equânime dos profissionais de saúde em todas as regiões do país.
É possível supor que as manifestações de junho de 2013, impulsionadas por reivindicações de direitos sociais9, ressoaram no interior dos Ministérios da Saúde e da Educação, culminando na implementação de estratégias voltadas para provimento de médicos na AB10, para a reorientação da formação superior em saúde11-13, a publicação de novas diretrizes políticas10,14-16 e a instituição do Programa Mais Médicos (PMM)17,18. Contudo, diversos estudos indicaram que o processo de implementação do PMM foi permeado por opiniões controversas, sem uma análise dos eventos críticos e do posicionamento dos distintos atores sociais16,19-21. Nesse sentido, este estudo objetivou identificar e mapear os principais eventos críticos e os posicionamentos dos atores sociais durante o processo de formulação e implementação do PMM no Brasil no período de 2013 a 2015.
Trata-se de uma análise documental sobre o processo de implementação do Programa Mais Médicos no Brasil no período de 2013 (período de publicação da Lei nº12.871/2013, que instituiu o PMM) a 2015.
A busca de referências se fez por acesso a bases de dados informatizadas e busca integrada na Biblioteca Virtual em Saúde (Lilacs, Medline e Cochrane) e na Biblioteca Virtual em Saúde do Ministério da Saúde (MS), além dos periódicos da área da Saúde Coletiva (Interface, Saúde em Debate, Saúde Coletiva, Ciência e Saúde Coletiva), repositórios institucionais de várias universidades públicas (Unicamp, UFBA, UERJ, UFPR, UNB, UFRGS) – com intuito de recuperar dissertações e teses – e páginas digitais de entidades governamentais e não governamentais (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Associação Brasileira de Saúde Coletiva, Conselho Federal de Medicina, MS e Ministério da Educação e Cultura). A inclusão das bases, dos periódicos e dos sites permitiu mapear atores e iniciativas adotadas referentes às facilidades, dificuldades, oportunidades e ameaças nas etapas de formulação e implementação do PMM. Foi adotada também a busca de artigos referenciados nos textos selecionados, devido à escassez de documentos sobre a temática.
Foram utilizados os descritores e operadores booleanos “mais médicos” ou “programa mais médicos”, em português. A coleta de dados ocorreu entre os meses de setembro a dezembro de 2015, abarcando documentos técnicos e normativos (leis, portarias, decretos e relatórios técnicos de gestão), artigos científicos e dissertações de mestrado.
Uma base de dados única em Excel sistematizou um total de 160 documentos, compilados e submetidos a processo de seleção e análise, por meio dos seguintes critérios de inclusão: publicações de 2013 a 2015; resumo disponível (artigos científicos); discussão da temática do objeto de estudo.
Após leitura dos títulos e resumos, foram excluídos sete documentos, e com a leitura dos textos na íntegra, excluíram-se 43 documentos, por não discutir a temática. Assim, 58 documentos constituíram a revisão, analisados por consenso entre dois dos pesquisadores.
A análise foi realizada ancorada nas contribuições teóricas propostas por Teixeira22 e nas etapas para a construção de uma agenda estratégica (formulação e implementação). Além disso, a análise também abrangeu as adaptações de Teixeira22 à proposta teórica de Carlos Matus23 acerca do mapeamento de atores sociais, classificando-os como atores governamentais (representantes de instituições e órgãos direta e indiretamente envolvidos com a condução política das ações de saúde nas diversas esferas de governo) e não governamentais (representantes de organizações da sociedade civil e/ou não governamentais, politicamente ou que participem do processo de implementação de ações de saúde nas regiões e estados do país). Foram caracterizados os posicionamentos dos atores centrais, secundários e coadjuvantes no processo, que poderiam estar atuando como aliados (atores que apoiam as proposições políticas do ator central), oponentes (atores que se opõem às proposições políticas do ator central) ou indiferentes (atores sem posicionamento definido e que podem ser conquistados por meio do convencimento ou cooptação)22.
Dos 58 documentos analisados, 70,9% das publicações originaram de entidades médicas; 20%, de artigos científicos; e 9,1%, de monografias, dissertações e documentos normativos. Entre estes, 40,9% discutiram a etapa de formulação do PMM (Formulação e análise de propostas – quadro 1) e 59,1% discutiram o processo de implementação do PMM (desenho de estratégias, formalização de políticas e operacionalização do programa – Quadro 2).
Quadro 1 Sistematização de eventos críticos dos documentos referentes à fase de formulação do PMM, no período de 2013 a 2015
Etapa | Categorias | Excertos dos documentos | Autor/ano |
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FORMULAÇÃO | Formulação das propostas | - Massivas manifestações de rua, que exigiam melhorias para a saúde. - PMM – medida simples de grande apelo popular. - MS e MEC elaboraram estratégias para responder aos anseios das ruas. - O PMM representa uma medida puramente eleitoreira. - PMM gera debates entre o representante do governo e as corporações médicas, sobretudo o Conselho Federal de Medicina. - Campanha “Cadê o médico?” é realizada pela Frente Nacional de Prefeitos. - Diagnóstico de falta de médicos no país e pesquisa em outros países sobre estratégias para resolver escassez de médicos. - Análise das iniciativas PIASS (1976), Pisus (1993), PITS (2001) e Provab (2011). - Disputa entre municípios por poucos médicos, gerando alta rotatividade. - O PMM é um programa emergencial e complementar. - PMM não garante direitos trabalhistas; CFM faz crítica – não contempla carteira assinada, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), 13º salário ou mesmo férias remuneradas. - Não existem, no âmbito da saúde pública, estratégias voltadas para a estruturação de um plano de carreira no SUS, seja para enfermeiros, dentistas ou médicos. - Criação de carreira de Estado para médicos. - O PMM, independentemente de seus resultados e das intenções do Governo Federal, passa por cima de estados, municípios e dos processos de regionalização e provisão adequada das redes do SUS. - PMM – iniciativa que visa claramente à maior regulação do Estado sobre a profissão médica. - Seria mais sensato investir nas universidades públicas. | Oliveira et al.6; Pinto et al10; Molina et al.19; Gonçalves61; Caramelli62; Salles55; Angotti Neto4; Torres58; Schanaider38; Cueto et al.64; Santos12; Silva20; Ferreira39; CFM41; D’avila42; Cunha48; CFM47; CFM43; Cebes63; Santos34; Couto16 |
Análise das propostas | - Regiões prioritárias definidas em função de um conjunto combinado de critérios. - O programa institui o prazo de cinco anos para que as UBS tenham qualidade de equipamentos e infraestrutura necessárias para servirem de campos de aprendizagem para graduandos e residentes. - O PMM demanda medidas que ampliem a formação de preceptores nos serviços. - A Lei exige que os cursos de Medicina adéquem seus currículos às novas DCN e determina que essa implantação seja objeto de avaliação e auditoria do MEC. - Lei aponta para a residência médica universal e disciplina o acesso aos programas. - A Lei obriga a criação, em até dois anos, de uma avaliação específica para o curso de graduação em Medicina, bianual. - O registro profissional de médicos formados no exterior será expedido pelo MS. - O principal equívoco da medida do Governo Federal é a entrada de médicos estrangeiros sem o Revalida. | Kamikawa e Motta49; Brito5; CFM47; Morais et al.15; CFM65; Cambricoli27 |
Fonte: Elaborado pelas autoras.
Quadro 2 Sistematização de eventos críticos dos documentos referentes à fase de implementação do PMM, no período de 2013 a 2015
Etapa | Categorias | Excertos dos documentos | Autor/ano |
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IMPLEMENTAÇÃO | Desenho de estratégias | - Está prevista a criação, até 2017, de 11,5 mil vagas de graduação em Medicina e 12,4 mil vagas de residência médica para formação de especialistas até 2018, com foco na valorização da AB, da ESF e de áreas prioritárias para o SUS. - Esses dilemas afetam os programas de residência médica. A oferta de uma vaga de especialização para cada formando, anunciada pelo MEC, é inexequível. Não há hospitais preparados nem preceptores suficientes para orientar os futuros especialistas. | Durcan; Targa20; Cebes24; Cebes28 |
Formalização de políticas | - Para tornar efetiva a cooperação técnica da Opas/OMS, foi assinado um convênio de cooperação (TC 80) entre o MS do Brasil e a Opas/ OMS, bem como sucessivos Termos de Ajustes. - É considerado injusto o acordo de trabalho entre MS, Opas, governo de Cuba e médicas e médicos cubanos. - Programa Mais Médicos – dois anos: mais saúde para os brasileiros. | Campos51; Molina50; Mendes36; Pinho52; Martins53; CFM54; Ferreira68 | |
Operacionalização do programa | - Ao fixar médicos, por meio de provimento emergencial, o projeto ampliou a assistência na Atenção Básica em regiões carentes desses profissionais. - O projeto possibilitou aos médicos brasileiros intercambiarem experiências com médicos estrangeiros. - PMM apresenta inadequações pontuais: na execução das atividades de supervisão e tutoria, no acolhimento e na capacitação dos profissionais, na decisão de gestores locais em substituir médicos contratados por intercambistas e nas punições a médicos cubanos que mantêm seus familiares no Brasil. - A primeira crítica dos auditores do TCU foi dirigida à fragilidade do sistema de supervisão e de tutoria do Programa: ampliar as vagas de graduação, sim, mas não se apoiando no mercado. É preciso assegurar que os estudantes de bairros populares, das comunidades de trabalhadores rurais, indígenas e quilombolas tenham a possibilidade de ocupar as vagas nos cursos de Medicina. - A adesão inicial foi de 4.025 municípios. Estes demandaram 16.631 médicos: 1.878 adesões de municípios prioritários; 2.147 nas demais localidades. - Na mídia, a maioria das notícias era de caráter negativo, mas havia também opiniões de jornalistas e leitores que viam os aspectos positivos na implementação do Programa Mais Médicos. - Requalifica SUS. - Fiscalizações do Cremerj e CRMs; constataram que não havia supervisão ou tutoria. Havia intercambista atendendo sozinho e com dificuldade de se comunicar em nosso idioma. - A auditoria realizada pelo TCU em 2014 comprovou que, em 49% dos primeiros locais atendidos pelo programa em suas solicitações, ocorreu, ao receberem os bolsistas, a dispensa de médicos anteriormente contratados. Por isso, em torno de um ano, tais localidades tinham menos profissionais cadastrados na rede pública. - Dos 42 municípios que receberam escolas médicas de 2013 a julho de 2015, 60% (25) não atendem ao critério de cinco leitos do Sistema Único de Saúde (SUS) para cada aluno de Medicina matriculado. | Scheffer7; CFM54; Brasil25; Cyrino et al26; Carvalho29; Chioro30; Aquino31; Campos51; CFM65; Gomes66; Ferreira68; CFM69; CFM70; CFM71; CFM72; CFM73; CFM74; Formente e Rosa75. |
Fonte: Elaborado pelas autoras.
No reconhecimento dos problemas, os documentos sinalizaram a iniquidade distributiva dos médicos no Brasil como um dos principais desafios para a efetivação integral do SUS21,24,25. Além disso, apontaram uma disputa pela força de trabalho entre alguns municípios, com base em remuneração atrativa (altos salários), gerando alta rotatividade desses profissionais e descontinuidade das ações de saúde6,10,16,26-32.
Diante desse cenário, diversas discussões foram desencadeadas. Em abril de 2011, o MS promoveu o Seminário Nacional Sobre Escassez, Provimento e Fixação de Profissionais de Saúde em Áreas Remotas e de Maior Vulnerabilidade, objetivando “debater e oferecer subsídios para a construção de propostas e de viabilidade política e técnica que assegurassem acesso universal aos serviços de atenção à saúde [...]”33, com representação dos diversos poderes; dos setores de saúde, educação e trabalho; e do controle social dos três entes federados.
Em janeiro de 2013, ocorreu a campanha “Cadê o médico?”, realizada pela Frente Nacional de Prefeitos16,25. Em julho, manifestações populares reivindicaram melhores condições de acesso aos serviços de saúde e a inclusão de ações prioritárias na agenda governamental10,15,34.
Esse processo contribuiu para a consolidação da análise situacional e subsidiou a priorização dos problemas e desenho de estratégias pelos Ministérios da Saúde, da Educação e do Planejamento, que, representados por seus ministros, apresentaram à presidência a Exposição Interministerial de Motivos (EIM) n.º 24/2013-MS-MEC-MP, elencando ações prioritárias35. A EIM foi utilizada para editar, em julho, a Medida Provisória (MP) n.º 621/201317.
Os referidos ministérios estimaram a proporção, em 2012, de 1,8 médicos por mil habitantes5,14,36, com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Conselho Federal de Medicina (CFM)11,12. Porém, Silva21 afirma que esses dados são questionados pelo próprio CFM, que calculou dois médicos por mil habitantes. Por outro lado, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil possuía, de fato, uma reduzida proporção37.
Diante da ausência de um parâmetro internacional para a mensuração da proporção ideal de médicos no país, convencionou-se utilizar os parâmetros do Reino Unido (2,7 médicos por mil habitantes), por ser um país com um sistema universal. No entanto, considerando os egressos de Medicina, a meta só seria alcançada em 2035, sem uma intervenção efetiva21.
Para Mendes36 e Schanaider38, apenas a ampliação do número de médicos não resolveria a dificuldade de alocação nas áreas mais vulneráveis, pois estes poderiam optar por alternativas mais vantajosas. Scheffer39 alertou a iminência de uma concorrência exacerbada em áreas que já contavam com uma alta densidade de médicos.
Alguns defensores do PMM discorreram sobre as propostas de modificações nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) dos cursos de graduação de Medicina, na residência médica e na formação de especialistas10. Silva21, Ferreira40 e o CFM41 apontaram como alternativa à precarização do trabalho médico e à deficiência de políticas de interiorização a criação da carreira de estado para o médico do SUS. D’avila42, por outro lado, propõe a estruturação de um plano de carreira no SUS, também, para enfermeiros e odontólogos.
Porém, o CFM assinalou que, das 12 mil vagas ofertadas em 2013 para o programa de residência médica, três mil ficaram ociosas devido à desestruturação de alguns programas43. Também enfatizou que a proposta de criação de um Fórum de Regulação das profissões de saúde que constava na MP (e foi suprimida integralmente) poderia alterar as competências das profissões, especialmente as exclusivas dos médicos e as atribuições dos Conselhos de Medicina44.
Com o intuito de defender e justificar tais posicionamentos, o CFM e outras entidades médicas elaboraram o documento “MP 621/2013: Fragilidades técnicas e legais que colocam a saúde da população em risco”, posteriormente enviado aos parlamentares45, no qual apontaram divergências estatísticas quanto à distribuição profissional no Brasil.
Após a publicação da MP nº 621/2013, o Congresso Nacional designou uma Comissão Mista Integrada (CMI), constituída por senadores e deputados, para emitir um parecer sobre a norma, sob a presidência do Senador João Alberto Souza (PMDB/MA), a vice-presidência do Deputado Francisco Escórcio (PMDB/MA), tendo como relator o deputado Rogério Carvalho (PT/SE) e como relator-revisor o senador Mozarildo Cavalcanti (PT/RR)16,46. Considerando a sua composição heterogênea, a comissão foi palco de inúmeros debates e controvérsias em torno das proposições do programa.
Os parlamentares apresentaram 1376 proposições de emendas ao PMM para todos os eixos do programa, com evidência para os partidos políticos DEM, PCdoB, PDT, PEN, PMDB, PP, PPS, PR, PRB, PSC, PSD, PSDB, PT, PTB e PV. Uma maior quantidade de proposições foi apresentada pelo PSDB, PMDB e DEM, com 160, 125 e 114 emendas, respectivamente16.
A MP nº 621/2013 contemplou muitas questões polêmicas, como a ampliação da duração dos cursos de graduação em Medicina por mais dois anos. Essa ampliação gerou desconfortos principalmente para os estudantes de Medicina, Instituições de Ensino e entidades médicas, que sugeriram alterações do projeto original, quanto à implantação de novos cursos de Medicina embasados nas novas DCN10,16,17.
Finalizado o momento da priorização, prosseguiu-se para a formalização do programa em três eixos de ação: 1) investimento na melhoria da infraestrutura da rede de saúde, especialmente nas Unidades Básicas de Saúde (UBS); 2) ampliação e reformas curriculares dos cursos de graduação em Medicina e residência médica no país; e 3) Projeto Mais Médicos para o Brasil (PMMB), que previa a provisão emergencial de médicos em áreas vulneráveis do país15,18.
A operacionalização do PMM exigiu uma articulação intersetorial entre os setores saúde e educação, dos três níveis de organização político-administrativa do país, por meio das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, e a participação das universidades públicas e privadas15,35.
Os critérios para alocação dos médicos e a definição das regiões prioritárias levaram em consideração seis perfis: capital; região metropolitana; G100 (cem municípios > oitenta mil habitantes e alta vulnerabilidade social); perfil de pobreza (municípios com 20% da população ou mais vivendo em pobreza extrema); distritos sanitários especiais indígenas (DSEI); e demais localidades5,10,15,18,25,28,36.
Os municípios classificados aderiram voluntariamente e assinaram um Termo de Compromisso, que visava garantir aos médicos moradia, alimentação e deslocamento; manter as UBS funcionando em boas condições; implantar ou apoiar os Programas de Residência em Medicina de Família e Comunidade (PRMFC); e assegurar aos profissionais o tempo necessário para as atividades de aperfeiçoamento. Após firmar o compromisso, as vagas eram solicitadas25.
No primeiro ano do PMM, foram publicados editais de convocação de médicos registrados no Brasil, seguido de convocações de brasileiros formados no exterior, mas sem registro no país, e estrangeiros com registro no exterior, até suprir a maioria das vagas disponíveis5,21. Destaca-se que o período de atuação desses médicos no programa era de três anos prorrogáveis por igual período47,48.
Para auxiliar na contratação de médicos estrangeiros sem diploma revalidado, o MS firmou cooperação com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), interligada à Organização Mundial da Saúde (OMS), especificando exigências técnicas e financeiras para os componentes do programa19,36.
A Opas/OMS também firmou convênio de cooperação com o Ministério da Saúde Pública de Cuba para mobilizar médicos cubanos, ocupar as vagas disponíveis e estimular a troca de experiências referentes à prática na APS, considerando o histórico de atuação dos profissionais em outros países19,25,36,39.
Cabe ressaltar que os médicos que não possuíam registro no CFM, obtiveram um Registro Único por meio do MS, que permitia a atuação apenas em atividades definidas pelo PMM5,16,21,36,49. A dispensa de revalidação do diploma gerou insatisfação por parte das entidades médicas, que alegaram ingerência estatal na autonomia dos Conselhos Federal e Regional de Medicina, além de considerar a medida um risco para a população, devido à ausência de regras claras e criteriosas para a seleção dos médicos40,47.
O CFM reiterou que, mesmo não emitindo os registros, a coordenação do PMM deveria comunicar a relação de médicos e o local de atuação, porque, embora com registro provisório, os profissionais estariam submetidos às leis vigentes quanto à responsabilização profissional, civil, penal e ética44.
Como alternativa, foi exigido ao intercambista a participação em um período de acolhimento para avaliação da proficiência na língua portuguesa, habilidade de comunicação e qualificação, visando ao aprofundamento teórico e prático acerca dos princípios e diretrizes do SUS, mediante o acompanhamento e avaliação de tutores acadêmicos16,29.
Outra questão debatida foi o preenchimento das primeiras vagas dos editais de seleção do PMM por um maior contingente de médicos estrangeiros, de nacionalidade cubana, devido ao termo de cooperação técnica19,25,36,50. Campos51, Pinho52, Martins53 e o CFM54 apontaram como injusto o pagamento parcial da bolsa aos profissionais e as restrições ao livre trânsito dos familiares dos médicos em serviço no Brasil. Alguns autores consideraram os termos de cooperação entre os países uma conivência ante à opressão aos cubanos51,53.
Entretanto, os intercambistas tiveram os seus direitos garantidos, segundo os acordos internacionais16, e os médicos brasileiros adquiriram o direito de inscrição na Previdência Social, sendo afastadas as contestações acerca do vínculo celetista e da possível ampliação de despesas para o Executivo, objeto de crítica do CFM55.
Por outro lado, Scheffer7 e Ferreira40 verificaram fiscalizações por parte de diversos CRMs, que indicaram recorrentes substituições de médicos brasileiros por intercambistas.
Cambricoli27 questionou a alocação de alguns médicos do programa, pois quase um quarto dos selecionados atuava ou iria atuar em capitais ou regiões metropolitanas. Contrariamente, os dados do MS (2014) indicaram a ampliação de 14.090 médicos, abrangendo uma população de 48,6 milhões de pessoas (em localidades prioritárias) de 3.866 municípios e 33 distritos indígenas, com 75% no semiárido do Nordeste, na periferia de grandes centros urbanos (com Índice de Desenvolvimento Humano baixo ou muito baixo) e em municípios e regiões com população quilombola19.
Para a formação médica, a Lei nº 12.871/2013 propiciou mudanças estruturais com a indução da reformulação das DCN para o curso de Medicina, na perspectiva das redes de atenção à saúde, metodologias ativas de ensino aprendizagem e inserção precoce nos serviços de saúde, alinhando a formação médica às novas exigências e necessidades da população e do SUS25,26. O Governo Federal propôs a criação de 11,5 mil vagas de graduação em Medicina até 2017 e de 12,4 mil vagas de residência médica até 2018, com foco na AB e Estratégia Saúde da Família18,20,26.
O CFM assinalou a necessidade de maior rigor na abertura de novos cursos e fiscalização dos existentes, indicando que, dos 42 municípios que implantaram escolas médicas de 2013 a julho de 2015, 60% (25) não atendiam ao critério de cinco leitos do SUS por aluno matriculado, conforme diretrizes do MEC43. Além disso, advertiu a existência de vagas ociosas, falta de estrutura dos programas e condições de trabalho inadequadas43.
Por meio do termo de adesão, o gestor local do SUS deveria oferecer condições estruturais necessárias para o funcionamento do curso de graduação em Medicina26. A adequação por meio do Programa de Requalificação de UBS (Requalifica UBS)56 e incremento orçamentário, para ações de informatização das UBS, implantação do novo sistema de informação da Atenção Básica (Sisab) e da estratégia e-SUS, com prontuário eletrônico para os serviços de saúde25, foram apontados como essenciais para a ampliação da efetividade da AB19. Para tanto, a lei também se referiu à constituição de Contratos Organizativos da Ação Pública Ensino-Saúde (Coapes)14,25. Não obstante, alguns profissionais continuaram a alegar condições de trabalho inadequadas48.
Em 2015, os ministérios divulgaram uma análise intitulada “Programa Mais Médicos – dois anos: mais saúde para os brasileiros”, contemplando as motivações e o contexto para a criação do programa. Contudo, a indefinição da conjuntura política e social direcionava para a descontinuidade do programa, apesar de uma medida provisória ter sido publicada contemplando a prorrogação do programa por mais três anos25.
Esta análise documental permitiu ainda identificar atores que interferiram e/ou influenciaram nas definições de ações e estratégias, assim como compreender como foi “desenhada” e implementada a política pública22.
Os posicionamentos e o manejo dos recursos do poder, por parte dos atores sociais, desencadeou um conjunto de “iniciativas” divergentes no processo de implementação local, regional e nacional do PMM. Foi possível identificar os atores secundários, classificando-os como aliados, opositores e indiferentes ao ator central (MS e MEC)6,10,16,26-32,57. O quadro 3 sistematiza o mapeamento dos posicionamentos.
Quadro 3 Identificação dos documentos e posicionamentos dos atores sociais quanto às etapas de formulação e implementação do PMM
Tipo de atores | Posicionamento | Ator | Documentos |
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GOVERNAMENTAIS | Ator central | MS; MEC | Oliveira et al.6; Pinto et al.10; Couto16; Cyrino et al.26; Cambriocoli27; Cebes28; Carvalho29; Chioro30; Aquino31; Carvalho32 |
Aliados | Opas; OMS; Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro; Isabel Emilia Prado da Silva (apoiadora do PMM no MEC); AGU; CUT; Frente Nacional de Prefeitos; CONASEMS; Advocacia Geral da União (AGU); Associação Nacional do Ministério Público de Defesa da Saúde (AMPASA). | Brito5; Couto16; Molina et al.19; Durcan; Targa20; Silva21; Molina50 | |
Oponentes | Ronaldo Marques Gomes (Secretaria de Saúde do RJ); Robespierre Costa Ribeiro (Fundação Hospitalar de MG); deputado Marcus Pestana (PSDB-MG); Líder do DEM, Mendonça Filho (PE); Deputado Ronaldo Caiado (DEM-GO); Cyro Miranda (PSDB-GO). | Gomes66; CFM70 | |
Indiferentes | MPT; Coordenadoria Nacional de Combate às Irregularidades Trabalhistas; Tribunal de Contas da União (TCU); Integrantes da Comissão Mista – presidente: senador João Alberto Souza (PMDB/MA); vice-presidente: deputado Francisco Escórcio (PMDB/MA); relator: deputado Rogério Carvalho (PT/SE); e relator-revisor: senador Mozarildo Cavalcanti (PT/RR). | Brito5; Couto16; CFM71-73; Formenti; Rosa75 | |
NÃO GOVERNAMENTAIS | Ator central | - | - |
Aliados | Mário Scheffer (USP); Gastão Wagner de Sousa Campos (Unicamp); Cebes; Lourdes Mann, médica cubana; CEBES; Central Única dos Trabalhadores (CUT); Conectas – Organização Não Governamental em Defesa dos Direitos Humanos; Associação Ordem dos Bacharéis do Brasil. | Couto16; Scheffer39; Campos51; Ferreira68 | |
Oponentes | CFM; AMB; ABEM; Fenam; Associação Nacional dos Médicos Residentes; Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (Denem); Caroline Reis (Unimontes); Bruno Caramelli (USP); Marina Salles (USP); Hélio Angotti Neto (Unesc); Ribas Didier Roberto Torres (Seconci-SP – Organização Social); Alberto Schanaider (UFRJ); Gisele Keiko Kamikawa (Unicesumar); Ligia Bahia (UFRJ); Fórum de Estudantes da ENSP/Fiocruz; Unicamp, USP e Unifesp; Associação Médica Nacional Drª Maíra Fachini (AMN-MF); Confederação Nacional dos Trabalhadores Liberais Universitários Regulamentados (CNTU). | Angotti Neto4; Brito5; Santos34; Mendes36; Schanaider38; Ferreira40; CFM41; D’avila42; CFM43; CFM44; CFM47; Cunha48; Motta49; Pinho52; Martins53; CFM54; Salles55; Torres59; Gonçalves61; Caramelli62; Cebes63; Kamikawa; Cueto et al64; CFM65; Gomes66; CFM67; Ferreira68; CFM69-71 | |
Indiferentes | Mônica Sampaio (UNB); Paulo Henrique (Univ. Estácio de Sá); Indyara Morais (UNB); Liege Scremin (Unibrasil); Renato Meirelles (Data Popular); Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) | Brito5; Morais et al.15; Carvalho32 |
Fonte: Elaborado pelo autor.
Quanto às iniciativas de legitimação do PMM, foi possível identificar negociações políticas, técnicas e táticas dos atores centrais5,15,16,35.
Os atores sociais aliados foram mapeados a partir de sua inserção no processo decisório e defendiam, entre outras questões, que a falta de médicos decorria da omissão dos governos anteriores e do corporativismo da categoria médica58, representado por organizações como a Opas/OMS (que mediou a contratação de médicos estrangeiros, firmou termo de cooperação com o Ministério da Saúde Pública de Cuba e mobilizou médicos cubanos).
Algumas Instituições de Ensino Superior (IES), a Advocacia Geral da União (AGU) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) defendiam a legalidade do trabalho dos médicos contratados, baseadas na integração ensino e serviço; e FNP e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS) defendiam a necessidade de mais médicos nos municípios, para garantir a integralidade das ações na APS. Além da participação da Associação Nacional do Ministério Público de Defesa da Saúde, Organização Não Governamental de Defesa dos Direitos Humanos, Associação Ordem dos Bacharéis do Brasil16,19-21,50.
Em contraponto, os opositores ao PMM denunciavam a existência de interesses eleitorais implícitos, configurando a medida como “populista” e o interesse implícito de manter o governo no poder48,50,59.
Como opositores, algumas escolas médicas e entidades médicas, como o CFM, defendiam que o percentual de médicos no país era compatível com as necessidades e denunciava a interferência do Estado na autonomia dos Conselhos de Medicina, irregularidade na modalidade de contratação quanto à legislação trabalhista vigente no país, e apontavam falta de rigor na abertura de escolas médicas47,48,58. A Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (Denem) defendia que a criação do PMM era falaciosa, considerando como problemas prioritários da saúde pública brasileira a ausência de infraestrutura e de gerenciamento adequado das unidades de saúde55.
Ainda nesse contexto, pôde-se incluir as Organizações Sociais, a Fundação Hospitalar de Minas Gerais e os partidos políticos de oposição ao governo: PSDB e o DEM. Estes atores defendiam que o PMM era uma ameaça à saúde das pessoas, devido à não exigência de revalidação dos diplomas dos médicos estrangeiros; assinalavam a existência de políticas fragmentadas relacionadas a Recursos Humanos no SUS, falta de supervisão ou tutoria, com situações em que os intercambistas atendiam sozinhos, e a dificuldade de comunicação (no idioma português)4,5,35,36,38,40-49,52,53,55,59-71.
Esse cenário, apesar de evidenciar a disposição dos grupos de oposição e da base aliada do governo e uma diversidade de interesses no processo, culminou com a aprovação da Lei nº 12.871/201315,16,18,35. Independente das polêmicas, Kamikawa e Motta49 correlacionaram a elaboração da MP com uma tentativa de garantir o direito à saúde da população.
Os documentos revelaram atores com posicionamento indiferente ou contraditório frente ao PMM, como algumas IES e órgãos de controle do Estado, como o Ministério Público do Trabalho (que discorda da forma de contratação trabalhista), a Coordenadoria Nacional de Combate às Irregularidades Trabalhistas (que defendia a inserção profissional por intermédio de concurso público, em atendimento aos ditames constitucionais), o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Comissão Mista18,54,71-75.
Quanto à Comissão Mista, apesar das inúmeras emendas apresentadas, não foi possível identificar a construção do consenso quanto às prioridades que constituíram a agenda estratégica propriamente dita, tendo em vista a atuação dos parlamentares direcionada a atender interesses próprios e partidários, fato consubstanciado pelo elevado número de propostas apresentadas e pelo alto percentual de emendas rejeitadas pela CMI que analisava a MP16.
Os indiferentes elencaram também alguns desafios na etapa de formulação do PMM: alta rotatividade dos profissionais entre os municípios61; necessidade de revisão da formação médica15; insuficiência de vagas nos cursos de graduação em Medicina, em todas as regiões do país15; e o fato de que o PMM era uma iniciativa que visava uma maior regulação do Estado sobre a profissão médica51 e baixa adesão e atuação de médicos brasileiros na primeira etapa do PMM18,54,71-74.
Esta revisão documental cumpriu o propósito de elencar os eventos críticos, as motivações e identificar o processo de formulação e implementação do PMM, estabelecendo-se um jogo de condução, que incluiu “concessões” e “negociações” em torno dos interesses e posicionamentos dos atores sociais, considerando o pressuposto da priorização da atenção primária e da ampliação da inserção de profissionais com formação adequada para atuar na saúde pública. Contudo, cabe enfatizar que, para que um programa dessa natureza se mantenha, é necessário fortalecer o desenvolvimento de estratégias de médio e longo prazo relacionadas à formação e qualificação dos médicos.
Apesar de o PMM ter sido implementado em um contexto politicamente favorável e de os resultados preliminares de alguns estudos evidenciarem a ampliação para 65% dos municípios e em todas as regiões do país (13% no Norte; 35% no Nordeste, 27% no Sudeste, 17% no Sul e 6% no Centro-Oeste)76, incluindo a extensão do acesso dos usuários quilombolas aos serviços de saúde77, persistiram as polêmicas relacionadas às questões trabalhistas.
O termo de cooperação com a Opas, apesar de ter contemplado médicos de 47 países, apontou divergências quanto à contratação dos médicos cubanos. Os artigos destacaram, especialmente, a baixa remuneração dos profissionais, devido à apropriação de parte do salário pelo governo, a inexistência de garantias trabalhistas e de direitos relacionados à mobilidade destes e dos seus familiares50-52. Tal situação a que estavam submetidos gerou manifestações de descontentamentos e proposições para aprofundar o debate com a sociedade sobre a pertinência dessa modalidade de contratualização dos profissionais cubanos.
Por fim, mesmo submetido a tantos questionamentos e a algumas incertezas, notou-se que o PMM foi uma estratégia importante no que tange à regulação de recursos humanos para o SUS e tem um papel de destaque para a ampliação do acesso à saúde e o fortalecimento da Atenção Básica no país.