versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.12 no.1 São Paulo jan./mar. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082014AO2895
A cárie dentária ainda é o principal agravo de saúde oral, devido à sua prevalência e gravidade.(1,2) Apresenta-se como a doença crônica mais comum na infância, sendo um grande problema para a saúde pública no mundo. O único levantamento epidemiológico nacional conduzido pelo Ministério da Saúde,(3) na área da saúde bucal, com crianças na faixa etária de 18 a 36 meses, mostrou que 27% delas possui, pelo menos, um dente decíduo cariado. Mais ainda, mesmo com o recente declínio dessa doença(4-6) no Brasil e no mundo, a cárie da primeira infância (CPI) pode desenvolver características particulares, com tamanha gravidade, a ponto de interferir no desenvolvimento e no crescimento das crianças. Logo, deve ser dimensionada como um problema de saúde infantil que atinge a sociedade, com todas as implicações que isso representa, e não apenas um problema exclusivamente dentário.(6) Entretanto, é uma doença que pode ser prevenida e passível de controle e reversão. Nesse sentido, é fundamental o trabalho conjunto com a equipe médica, especialmente dos profissionais que lidam com crianças no primeiro ano de vida, propiciando, assim, o mais precoce encaminhamento das mesmas ao dentista.
A Odontologia para Bebês, que iniciou no Brasil (1984) na Universidade Estadual de Londrina (UEL), desenvolveu equipamentos adequados e um sistema de atendimento voltado para promoção da saúde e prevenção da cárie dentária, denominado “Bebê Clínica”.
Seguindo o mesmo modelo, iniciou-se, no ano de 1996,(7) um programa público preventivo em Unidade Básica de Saúde (UBS) do município de Jacareí (SP). O atendimento inicia-se com uma ação educativa (palestra), tendo como tema central a educação com o objetivo de levar as famílias ao autocuidado. As consultas são realizadas periodicamente, com intervalos de 1 a 3 meses, até os 4 anos de idade, de acordo com a avaliação quanto ao risco de desenvolvimento da doença cárie. E, no ano 2000, a Faculdade de Odontologia de São José dos Campos da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) iniciou um projeto de extensão universitária denominado “Viver sem Cárie”, o qual começa com o atendimento à gestante, por meio de palestra educativa como a já citada. O acompanhamento do bebê ocorre do nascimento aos 4 anos de idade.
A prática da Odontologia para Bebês tem como primeira fonte de atenção os pais/responsáveis, revelando-se como uma Odontologia coparticipativa e solidária,(7) na qual o comportamento dos pais repercutirá diretamente na saúde dos filhos, pois estão na fase de formação de hábitos. Também destaca-se um especial estímulo para o autocuidado com enfoque de saúde, o qual é imprescindível para a promoção de sua saúde oral.(8)
Um grande obstáculo para o sucesso de programas preventivos tem sido a falta de comprometimento das famílias quanto às orientações,(9-11) além da inserção cada vez mais precoce dos hábitos inadequados, que levam a doenças orais. Hábitos comportamentais, como assiduidade às consultas,(12) presença de dieta não cariogênica, higiene oral e tempo de duração de aleitamento noturno, podem interferir na manutenção da saúde oral da criança na primeira infância. Assiduidade às consultas, por exemplo, é um comportamento desempenhado pelas famílias dos crianças participantes dos programas preventivos, que mostra a adesão (compliance) das mesmas às informações dadas nos programas e sua valorização da saúde oral. Justifica-se, assim, a realização de um estudo que avalie as relações existentes entre os fatores aqui citados e o comportamento dos pais/responsáveis que demonstrem sua conscientização e aplicação das medidas preventivas, que devem ser usadas em casa, diariamente, em seus filhos.
Analisar a interferência da idade de ingresso das crianças em programas de Odontologia para Bebês e os aspectos comportamentais familiares sobre a experiência de cárie dentária.
Este estudo transversal analítico foi realizado entre os anos de 2011 e 2012, em unidades de saúde pública na cidade de Jacareí, onde foram analisados dois programas preventivos de Odontologia para Bebês, os quais correspondem aos grupos G1 e G2 do presente estudo. Adicionados a estes, analisou-se outro programa com mesmo design, da Faculdade de Odontologia de São José dos Campos da UNESP, qual correspondeu ao grupo G0. Jacareí é um município com 211.214 habitantes,(13) enquanto que a população do município de São José dos Campos (SP) é de 629.921 habitantes.(14) Em ambas as cidades, todas as famílias estão em áreas urbanizadas e têm acesso ao abastecimento público com o mesmo nível de água fluoretada (0,7ppmF).
Os programas eram similares em seus protocolos e público-alvo, diferindo somente quanto à idade de ingresso das crianças nos mesmos.
Os critérios de elegibilidade para inclusão neste estudo foram crianças com idade máxima de 48 meses, sem distinção de gênero ou raça, ser participante do programa preventivo há pelo menos 3 meses e ter, no mínimo, os incisivos centrais superiores e inferiores presentes na cavidade bucal. Os critérios de exclusão foram apresentar doenças sistêmicas ou síndromes, ou usar de medicamentos que pudessem levar o paciente a ter manchas e outras alterações no esmalte dentário.
A amostra de 465 crianças (6 a 48 meses de idade), a qual correspondeu aos critérios de elegibilidade dentro de cada programa, foi alocada em 3 grupos: G0: crianças que ingressaram no programa por meio de suas mães, quando gestantes (G0; n=50); crianças que ingressaram no programa durante o primeiro ano de vida (G1; n=230); e crianças que ingressaram no programa entre 13 a 18 meses de idade (G2; n=185). Para a coleta dos dados, foi realizado exame clínico pelo método táctil e visual, por um único operador calibrado, sendo também aplicado um questionário aos responsáveis das crianças para a análise dos hábitos de dieta, higiene oral diária e noturna, duração de aleitamento noturno, escolaridade materna/dos responsável e condição socioeconômica.
O presente estudo, aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade de Odontologia de Araraquara da UNESP, sob protocolo número 47/10-PH/CEP, obteve, inicialmente, a autorização dos pais, pelo Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
As variáveis analisadas neste estudo foram idade de ingresso no programa, cárie dentária (prevalência), assiduidade às rechamadas, dieta cariogênica, higiene oral diária, higiene oral noturna, tempo de aleitamento noturno, escolaridade materna/responsável e nível socioeconômico.
A comparação entre os grupos foi feita pelos testes χ2 e Kruskal-Wallis (software PASW 20.0). Quando encontrada diferença, realizaram-se comparações múltiplas não paramétricas (IC95%). Ainda, calculou-se Odds ratios (OR) com ajuste pela regressão logística.
Na tabela 1 são mostradas as frequências e as porcentagens das variáveis analisadas em relação ao total de cada grupo. A presença de higiene oral diária e nível socioeconômico desfavorável não apresentaram associação com os grupos, pois quase a totalidade da amostra apresentou essas características. As variáveis cáries dentárias, assiduidade, higiene oral noturna e escolaridade materna/do responsável se mostraram independentes quanto aos grupos G0 e G1, mas apresentaram associação significativa quando foram reunidos contra G2. A variável dieta cariogênica mostrou-se associada aos três grupos. Observou-se, então, que a proporção de crianças com cárie aumentou significativamente quando se analisou do grupo G0 ao G2, confirmando-se a associação da prevalência da cárie dentária à idade de ingresso nos programas (p<0,001). Analisando a doença cárie como afecção, os grupos G0, G1 e G2 apresentaram as prevalências 16%, 12% e 31% respectivamente.
Tabela 1 . Frequência (proporção em porcentagem sobre total de cada grupo) de cada classificação da variável nos grupos de crianças cujas mães ingressaram no programa quando gestantes (G0), crianças que ingressaram no programa durante o primeiro ano de vida (G1) e crianças que ingressaram no programa entre 13 e 18 meses de idade (G2)
Variável | G0 | G1 | G2 | Valor de p* | |
---|---|---|---|---|---|
Cárie dentária | |||||
Não | 42 (84) | 202 (88) | 127 (69)*** | <0,001 | |
Sim | 8 (16) | 28 (12) | 58 (31) | ||
Assiduidade | |||||
Não | 13 (26) | 69 (30) | 93 (50)*** | <0,001 | |
Sim | 37 (74) | 161 (70) | 92 (50) | ||
Dieta cariogênica | |||||
Não | 40 (80) | 125 (54)** | 49 (26)*** | <0,001 | |
Sim | 10 (20) | 105 (46) | 136 (74) | ||
Higiene oral diária | |||||
Não | 0 (0) | 3 (1) | 0 (0) | 0,214 | |
Sim | 50 (100) | 227 (99) | 185 (100) | ||
Higiene oral noturna | |||||
Não | 17 (34) | 26 (11) | 41(22)*** | <0,001 | |
Sim | 33 (66) | 204 (89) | 144 (78) | ||
Condição socioeconômica | |||||
Favorável | 0 (0) | 3 (1) | 0 (0) | 0,214 | |
Desfavorável | 50 (100) | 227 (99) | 185 (100) | ||
Escolaridade materna/responsável | |||||
Até 8 anos | 37 (74) | 194 (84) | 169 (91)*** | 0,004 | |
Mais de 8 anos | 13 (26) | 36 (16) | 16 (9) |
O tempo de aleitamento noturno, em meses, visualizado na figura 1, destaca equivalências entre G0 e G1, mas há também a diferença de ambos em relação a G2.
As variáveis assiduidade (OR=0,03), presença de higiene oral noturna (OR=0,04) e escolaridade materna/do responsável acima de 8 anos de estudo (OR=0,23) apresentaram-se como fatores de proteção à cárie dentária. A presença de dieta cariogênica (OR=18,72) e o aleitamento noturno (OR=4,85) apresentaram-se como determinantes da cárie dentária.
Conhecer o perfil de saúde da população permite contribuir para um melhor desenvolvimento de políticas públicas de saúde dirigidas às crianças.
Estudos renomados(4-7,10,11) têm enfatizado que quanto maior o número de aspectos da rotina da criança avaliados em um estudo, juntamente dos pais/responsável (pois estes certamente repercutirão na vida da criança de tenra idade), mais fidedigno será o contexto mostrado pelo estudo. Assim, o presente estudo mostrou que, ao analisarmos os três programas preventivos citados anteriormente, com protocolos semelhantes, tendo como diferencial a idade de ingresso, foi possível delinear as diferenças que podem ocorrer na saúde oral dessas crianças.
Dentre os resultados encontrados, houve associação entre a idade de ingresso das crianças nos programas e a cárie dentária; apesar da maioria das crianças se apresentar se livre de cárie, algumas manifestaram a doença. Esses dados corroboram a literatura.(15) As crianças que ingressaram no programa por meio de suas mães quando gestantes (G0) apresentaram baixa prevalência de cárie dentária, tanto quanto as que ingressaram no primeiro ano de vida (G1), as quais diferiram das crianças que ingressaram no segundo ano de vida (G2). Analisando a prevalência do G2 (31%) e comparando-a àquela relatada pelo Ministério da Saúde(3) de 27%, pode-se constatar que, em termos de desenvolvimento da doença cárie, essas crianças apresentam-se em situações similares. Sugere-se, no entanto, que o mesmo não deve ocorrer do ponto de vista da gravidade da doença, pois, nos programas, as crianças que desenvolvem a cárie dentária, a desenvolvem nos estágios iniciais (manchas brancas) e, em muitos casos, há reversão.
Freire et al.(16) relataram que crianças de zero a 6 anos com padrão socioeconômico desfavorável apresentaram alta prevalência de cárie. Notou-se, neste estudo, que ainda que crianças vivam nessas condições, a prevalência da doença cárie pode ser baixa quando elas ingressam precocemente em um programa preventivo.
Sabe-se que o consumo alimentar inoportuno nos primeiros anos de vida tem relação com o surgimento de várias doenças, entre elas a cárie dentária. A dieta cariogênica, a qual mostrou-se associada aos três grupos, é um determinante de impacto da cárie dentária.(17) Entretanto, notou-se que ingressar no programa enquanto gestante influenciou na dieta alimentar das crianças, já que 80% do G0 não possuía dieta cariogênica, sendo que, no G1, praticamente metade do grupo apresentou dieta cariogênica (46%) e, no G2, 74% manifestavam esse hábito. Relacionando esses dados com o incremento de cárie dentária nos grupos, nota-se que os dados evoluíram paralelamente do G0 ao G2. Afirma-se, com base no presente estudo, que a precocidade de ingresso nos programas preventivos é fator protetor de desenvolvimento da cárie dentária, mesmo em crianças com condições socioeconômicas desfavorecidas.
Além disso, avaliou-se a higiene oral diária (escovação supervisionada), a qual não apresentou associação com a idade de ingresso das crianças nos programas, pois quase a totalidade dos três grupos (99%) apresentou esse hábito. Esse fato sugere a eficácia dos programas preventivos quanto à inserção de novos hábitos saudáveis. E, mesmo analisando um hábito de higiene mais complexo,(17) a higiene oral ao dormir somada a esse hábito durante a noite (higiene oral após alimentação durante o sono noturno), as crianças do G1 apresentaram a maior amostra desse comportamento, destacando o fato de, também, terem manifestado a menor prevalência de cárie dentária.
Do ponto de vista do fator assiduidade às consultas, observou-se que, em G0 e G1, grupos em que a educação em saúde ocorreu antes e no primeiro ano de vida, o percentual de assiduidade encontrado foi maior.
Observou-se também o impacto positivo dos programas sobre o tempo de duração do aleitamento noturno, apresentando semelhanças de comportamento entre G0 e G1, e, juntos, eles apresentaram diferença em relação a G2, acompanhando, novamente, o perfil da variável cárie dentária. Essa afirmação é fundamentada pela literatura,(6,7,15) a qual relata que as medidas educativas mais eficazes para a prevenção da cárie dentária na primeira infância são aquelas destinadas ao controle da amamentação noturna, pois esse hábito caracteriza-se por padrão de alta frequência, prolongado período de alimentação e momento inoportuno de amamentação (ao dormir ou durante o sono).
Persson et al.(18) afirmaram que o grau de educação formal das mães/responsáveis interfere no padrão alimentar da criança e na sua consequente prevalência de cárie dentária, além de que os aspectos culturais e sociais levam ao desmame precoce, sendo que o aleitamento artificial viabiliza a introdução precoce da sacarose na dieta.(7) Outros autores(17,19,20) afirmam que a figura materna é a maior influência na educação alimentar e nos hábitos do núcleo familiar. Assim, analisou-se, no presente estudo, o nível de escolaridade materna/responsável, no qual notou-se que houve associação entre idade de ingresso e essa variável. Logo, a eficácia dos programas que correspondem ao G0 e ao G1 foi constatada pelos resultados do presente estudo.
Novos estudos à respeito dos determinantes da cárie dentária necessitam ser desenvolvidos para aperfeiçoamento das medidas de promoção de saúde oral.
Para promover saúde oral infantil, são essenciais o mais precoce ingresso ao programa e a inserção também precoce de hábitos saudáveis, além da adesão às orientações por seus responsáveis.