versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.17 no.2 São Paulo 2019 Epub 02-Maio-2019
http://dx.doi.org/10.31744/einstein_journal/2019ao4576
A angiogênese (ou neovascularização) é a formação de novos vasos sanguíneos a partir dos já existentes.(1) Em 1970, Folkman abriu perspectivas para a terapia do câncer, ao sugerir que o crescimento tumoral estava relacionado à neovascularização e dela dependia. A subsequente descoberta dos primeiros inibidores endógenos da angiogênese confirmou sua hipótese e deu origem a uma busca frenética por novos modelos para o estudo da angiogênese e por compostos antiangiogênicos entre as moléculas sabidamente presentes em produtos derivados da biodiversidade. Paralelamente, a indústria farmacêutica desenvolveu vários inibidores da angiogênese, beneficiando milhares de pacientes. No entanto, devido à complexidade do câncer, do crescimento tumoral e da angiogênese, muitas drogas comercialmente disponíveis são eficazes apenas contra certos tipos de tumor.(2)
A própolis vermelha brasileira, uma substância resinosa e insolúvel em água, produzida a partir da mistura de saliva de abelhas (Apis mellifera) e do exsudato de certas plantas, principalmente de Dalbergia ecastaphyllum (L.) Taub.,(3) tem forte atividade antioxidante, e tem sido investigada e proposta como um inibidor da angiogênese.(4,5) A L-lisina é um aminoácido essencial que se mostrou capaz de promover a carcinogênese(6) e estimular a angiogênese em câncer de bexiga induzido.(7)
Em vários modelos de implante tumoral, utilizam-se células do tumor de Walker.(8) A bolsa jugal de hamster (Mesocricetus auratus)(9,10) é um tecido adequado para um novo modelo, tendo em vista que a membrana facilita a visualização de vasos. O modelo de implante em bolsa jugal de hamster descrito na literatura valia-se da inoculação de fragmentos tumorais, e não de células.(9) Em nosso modelo experimental, um número padronizado de células tumorais foram inoculadas no intuito de promover maior consistência no crescimento tumoral entre os indivíduos, obtendo-se resultados mais confiáveis.
Vários estudos avaliaram a atividade imunomoduladora da própolis. Dornelas et al.,(6) observaram inibição da carcinogênese em animais submetidos a 30 dias de tratamento com própolis, antes da aplicação do carcinógeno. O papel do sistema imune no desenvolvimento da neoplasia está bem documentado, e sabe-se que o perfil imunológico individual determina o prognóstico de pacientes com câncer. Assim, os compostos imunomoduladores podem ser úteis no tratamento do câncer. A ativação de complemento, linfócitos e macrófagos foi observada em muitos estudos, sugerindo que isso faz parte do mecanismo pelo qual a própolis induz a apoptose em células tumorais.(11–13) Dessa forma, incluímos um experimento com 33 dias de tratamento com própolis antes do inóculo tumoral (experimento 2).
Avaliar o efeito da própolis vermelha e da L-lisina na angiogênese e no crescimento tumoral em um novo modelo de bolsa jugal de hamster inoculada com células de tumor de Walker 256.
O protocolo de estudo seguiu as diretrizes da Sociedade Brasileira de Ciência em Animais de Laboratório e foi aprovado (protocolo 89/2015) pela Comissão de Ética no Uso de Animais (CEUA). O experimento envolveu 57 hamsters (Mesocricetus auratus) fêmeas, com 120 dias de idade. Os animais foram alojados em caixas de polipropileno, a 25°C, em ciclo claro/escuro de 12 horas, com acesso a alimento e água ad libitum. Seis animais foram excluídos, resultando em amostra final de 51 animais. A figura 1 mostra o desenho experimental.
O monocloridrato de L-lisina (C6H14N2O2·HCl, CAS#657-27-2, FAGRON, China) foi diluído em água destilada e administrado por gavagem oral, na dose de 150mg/kg.(6,7)
A própolis vermelha in natura foi adquirida de fornecedor idôneo, em Barra de Santo Antônio (Alagoas, Brasil), e submetida à extração em etanol 95%, a temperatura ambiente. Depois da evaporação do etanol, o extrato resultante foi armazenado a 4°C e, posteriormente, diluído em goma arábica a 1%,(14) a aproximadamente 60°C, sendo administrado por gavagem oral na dose de 200mg/5mL/kg.
A goma arábica (CAS#9000-01-5, Dinâmica Química Contemporânea LTDA.) foi diluída em água destilada a 1% e administrada por gavagem oral na dose de 5mL/kg.
As células tumorais foram fornecidas pelo Laboratório Nacional de Oncologia Experimental. Após anestesia com administração intraperitoneal de cloridrato de cetamina (100mg/kg) e xilazina (10mg/kg), a bolsa jugal esquerda foi evertida e lavada com solução fisiológica. Uma solução de 0,1mL de Ringer com lactato e gentamicina (na proporção de 50:1), contendo 1,2×106 células do tumor de Walker, foi injetada no subepitélio, com agulha hipodérmica e seringa de insulina. Para evitar contato com vasos linfáticos, o inóculo foi aplicado no centro da bolsa jugal, a uma distância segura das fibras do músculo retrator (Figura 2).
O tumor foi fotografado no 11° dia após o inoculo tumoral. Para isso, após a anestesia, a bolsa jugal foi evertida e ressecada na base, cauterizando-se os vasos sanguíneos, para evitar a drenagem dos vasos que alimentavam o tumor. A amostra foi, então, fixada em placa de Petri sobre fundo branco. Foram tiradas micrografias panorâmicas (4x, 6x, 10x) e por quadrante (16x) usando-se câmera de vídeo analógica (Hitachi VCC-151, Japão), acoplada a um microscópio estereoscópico (D.F. Vasconcellos S.A., São Paulo, Brasil). As imagens digitais foram armazenadas em um notebook com software de captura de vídeo (PixelView, Prolink Microsystem Corp., Taiwan).
A angiogênese foi determinada quantificando-se a área vascular média dos quadrantes (imagens 16x), usando-se o Sistema de Quantificação de Angiogênese (SQAN)(15) (Figura 3). Os resultados foram expressos em percentagem.
Com base nas imagens panorâmicas em plano único (4x, 6x e 10x), foram determinadas a área (mm2) e o perímetro (mm) do tumor, usando-se o software ImageJ (Fiji).(16)
Os pulmões, o fígado e o baço foram excisados e pesados, após eutanásia (11º dia) com overdose de anestésicos. Os órgãos coletados foram examinados para verificar a presença de metástases.
A normalidade da distribuição das variáveis quantitativas foi verificada com o teste Kolmogorov-Smirnov. Para estatística descritiva, calculamos os valores médios e desvios padrão para todas as variáveis paramétricas. Os grupos dos experimentos 1 (I a IV) e 2 (V a VIII) foram comparados de forma pareada por meio de análise de variância simples (ANOVA) associada ao teste de comparação múltipla de Tukey. Todos os testes foram bicaudais, e o nível de significância estatística foi estabelecido em 5% (p<0,05). Todas as análises foram realizadas com o software GraphPad Prism® versão 5.00.
Durante o experimento, seis animais foram excluídos devido à inoculação inadequada. Nenhuma metástase foi observada nos órgãos coletados. Nenhum animal morreu durante o período do estudo.
O aumento da variação do peso corpóreo foi significativamente maior nos animais tratados com L-lisina em relação aos animais que receberam água (Grupo II 12,59±6,38% versus Grupo IV 4,03±2,44%; p<0,005; Grupo VI 32,06±3,30% versus Grupo VIII 22,78±5,41%; p<0,005). Quanto aos órgãos coletados, a única diferença significativa foi observada no fígado dos animais tratados com L-lisina em comparação com o dos animais que receberam água (Grupo VI 7,11±0,92g versus Grupo VIII 5,22±1,00g; p<0,005).
No experimento 1, a própolis vermelha (Grupo I) e a L-lisina (Grupo II) reduziram significativamente a área vascular média. Os grupos do experimento 2 (V a VIII) não diferiram de forma significativa nesse aspecto (Tabela 1).
Área vascular média (%) | Grupo I Própolis | Grupo II L-lisina | Grupo III Goma arábica | Grupo IV Água | Valor de p (ANOVA) |
---|---|---|---|---|---|
Média±DP | 22,61±0,6* | 22,15±0,42† | 22,91±0,53 | 23,47±0,29 | 0,0015 |
Área vascular média (%) | Grupo V Própolis | Grupo VI L-lisina | Grupo VII Goma arábica | Grupo VIII Água | Valor de p (ANOVA) |
---|---|---|---|---|---|
Média±DP | 22,58±0,48 | 22,54±0,34 | 23,05±0,55 | 22,83±0,45 | 0,1958 |
*p<0,05 e
†p<0,001 indicam diferenças significativas em relação ao Grupo IV (teste de Tukey). ANOVA: análise de variância; DP: desvio padrão.
Não houve diferença significativa na área (mm2) e no perímetro (mm) do tumor entre os grupos experimentais (Grupos I, II, V e VI) e seus respectivos Grupos Controle (Tabelas 2 e 3).
Tamanho do tumor | Grupo I Própolis Média±DP | Grupo II L-lisina Média±DP | Grupo III Goma arábica Média±DP | Grupo IV Água Média±DP | Valor de p (ANOVA) |
---|---|---|---|---|---|
Área, mm2 | 64,34±42,46 | 145,18±168,49 | 120,59±115,52 | 200,35±59,57 | 0,2156 |
Perímetro, mm | 69,90±39,57 | 99,90±43,96 | 82,12±43,68 | 97,54±25,77 | 0,5180 |
ANOVA: análise de variância; DP: desvio padrão. Teste de Tukey.
Tamanho do tumor | Grupo V Própolis Média±DP | Grupo VI L-lisina Média±DP | Grupo VII Goma arábica Média±DP | Grupo VIII Água Média±DP | Valor de p (ANOVA) |
---|---|---|---|---|---|
Área, mm2 | 134,25±112,83 | 80,49±25,34 | 81,92±26,28 | 73,13±34,63 | 0,2713 |
Perímetro, mm | 71,75±30,03 | 55,62±12,05* | 101,00±17,92 | 68,07±15,02† | 0,0035 |
*p<0.01 e
†p<0.05 indicam diferenças significativas em relação ao Grupo VII (teste de Tukey). ANOVA: análise de variância; DP: desvio padrão.
O estudo da neovascularização é importante em muitos campos da patologia, especialmente na progressão do câncer. Neste estudo, adaptamos um modelo experimental de bolsa jugal de hamster para o estudo da angiogênese induzida por tumor. Inicialmente, realizamos um estudo piloto para determinar o número mínimo de células do tumor de Walker necessárias para haver crescimento tumoral. Foram tomados cuidados para evitar acidentes, como vazamento da suspensão de células tumorais e inoculação na vizinhança de fibras musculares, e os animais com inoculação inadequada (uma consequência natural da curva de aprendizado) foram excluídos da análise. O índice de pega do tumor nos animais restantes foi de 100%.
A cauterização elétrica dos vasos sanguíneos para impedir sua drenagem e o uso de um fundo branco para a captura de imagens digitais por meio de um microscópio estereoscópico constituem um método novo para a quantificação da angiogênese na bolsa jugal de hamster, mas, como o método exigia a ressecção do tecido da bolsa jugal, a angiogênese não pôde ser monitorada in vivo.
Os pesquisadores que utilizaram o modelo da bolsa jugal de hamster para estudar a carcinogênese química e a neovascularização empregaram marcadores moleculares e cortes histológicos para quantificar a angiogênese,(10) mas não utilizam imagens digitais capturadas com microscópio estereoscópico de amostras montadas a fresco. O software SQAN foi desenvolvido para quantificar a angiogênese em imagens digitais de tecidos adquiridos in vivo usando-se uma câmera acoplada a um microscópio estereoscópico. Considerado rápido e prático, o método foi usado com sucesso em modelo de córnea de coelho.(15,17) Esse método foi validado para análise morfométrica da rede vascular em modelos experimentais de câncer.(18)
A variação no peso corpóreo foi significativamente maior nos animais tratados com L-lisina (Grupos II e VI) do que nos animais que receberam água. Quanto aos órgãos coletados, a única diferença significativa observada foi no fígado do grupo da L-lisina (Grupo VI) em comparação com o grupo da água (Grupo VIII). O ganho de massa corpórea pela L-lisina é consistente com os dados da literatura.(19)
Uma comparação da área vascular média, expressa em percentagem, no experimento 1, mostra que a angiogênese induzida pelo tumor somente foi inibida significativamente nos animais tratados com própolis (Grupo I) e L-lisina (Grupo II). Quando submetida ao método de sequestro de radicais livres para verificar a atividade antioxidante, a própolis vermelha usada neste estudo mostrou atividade antioxidante superior ao padrão da vitamina C. Além disso, foram isolados do extrato etanólico quatro isoflavanas, uma chalcona e um triterpeno. As propriedades antioxidantes da própolis vermelha estão relacionadas à capacidade das chalconas e dos isoflavonoides de doar elétrons.(20) O teor total de compostos fenólicos no extrato etanólico foi de 133,3±4,35mg GAE/g de amostra.(21) Os níveis de atividade antioxidante e compostos fenólicos observados neste estudo são semelhantes aos de análises anteriores.(5) Esses achados justificam o estudo do extrato de própolis vermelha como potencial agente antiangiogênico. Essa ação antioxidante pode atuar tanto dificultando o desenvolvimento do tumor quanto inibindo a angiogênese, uma vez que o estresse oxidativo está por trás da fisiopatologia do câncer.(22)
A própolis vermelha produz efeitos antioxidantes, inibe a angiogênese por meio da modulação de fatores angiogênicos e da inflamação, e reduz os níveis do fator de crescimento endotelial vascular (VEGF) e do fator induzido por hipóxia (HIF)-1α.(23,24) Também está extensamente documentada a relação entre a angiogênese, o estresse oxidativo e a hipóxia tumoral.(25) A correlação entre os efeitos antiangiogênicos e antioxidantes da própolis foi avaliada in vitro usando células endoteliais. Não foi surpresa constatar que os compostos mais antiangiogênicos também foram os mais antioxidantes.(26)
Poucos estudos foram realizados sobre o efeito da L-lisina na angiogênese. Em um estudo, a L-lisina promoveu a angiogênese em câncer de bexiga induzido quimicamente, quando administrada concomitantemente com o carcinógeno, levando os autores a levantar a hipótese de que a angiogênese possa ter contribuído para o tamanho e a agressividade do tumor.(7)
É interessante notar que a área vascular diminuiu muito pouco nos animais que receberam própolis vermelha e L-lisina por 43 dias (pré + pós-inoculação de células do tumor de Walker), no experimento 2, em comparação com os Grupos Controle que receberam água. A angiogênese não foi inibida como nos animais tratados com própolis e L-lisina por 10 dias (experimento 1). Esse achado não é fácil de explicar, mas diferentes estudos encontraram efeitos citotóxicos ou citoprotetores dependendo de as células serem neoplásicas ou normais, e de o experimento ser in vitro ou in vivo. Mesmo a atividade antioxidante e oxidante pode estar relacionada à dose e ao tempo de administração. Por conseguinte, os efeitos antagônicos podem ser explicados pelos diferentes compostos presentes no produto da própolis, e também pelo estreito limiar entre a dose terapêutica e a dose tóxica.(27,28)
Resta ainda confirmar se a própolis vermelha e a L-lisina são adjuvantes adequados a outros inibidores da angiogênese. Até o momento, mesmo os inibidores dos receptores da angiogênese são ineficazes contra muitos tipos de tumores, seja porque os receptores do fator de crescimento tumoral diferem, ou porque a angiogênese é dependente de outras vias além do VEGF, como no câncer de pulmão. Também ainda é preciso determinar se a própolis é eficaz em quadros não neoplásicos, como a psoríase e a endometriose.(29)
Não foi observada nenhuma diferença significativa na área e nem no perímetro do tumor entre os grupos experimentais e seus respectivos Grupos Controle. Contudo, as mensurações em plano único somente refletem a superfície do tumor, não levando em conta seu volume total.
A própolis vermelha e seus compostos isolados modulam a progressão da carcinogênese in vivo(30) e são citotóxicos para linhagens de células tumorais in vitro.(27) No entanto, um estudo com linhagens de células tumorais revelou que diferentes concentrações de própolis vermelha estão associadas a diferentes perfis de citotoxicidade.(27)
A L-lisina, por sua vez, quando administrada concomitantemente com o carcinógeno, promoveu a carcinogênese no câncer de bexiga induzido quimicamente e protegeu contra a genotoxicidade, em medula óssea e em sangue periférico. Porém, os animais que receberam somente L-lisina não desenvolveram câncer. Assim, embora a L-lisina tenha uma ação promotora (não genotóxica) na carcinogênese da bexiga, ela não é genotóxica para os leucócitos da medula óssea ou do sangue periférico nas doses testadas em animais.(6,31)
Por outro lado, a L-lisina não promoveu carcinogênese em um modelo de câncer de bexiga em ratos submetidos a ureterossigmoidostomia e vesicossigmoidostomia.(32,33) Entretanto, a L-lisina acelerou o desenvolvimento de metaplasia transicional no epitélio intestinal de ratos submetidos à cistoplastia.(34)
Tanto a própolis vermelha quanto a L-lisina inibiram a angiogênese no novo modelo de bolsa jugal de hamster quando administradas após o inóculo do tumor.