versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.27 no.2 São Paulo mar./abr. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20152014096
A fissura labiopalatina pode acometer o lábio, o palato ou ambos, bem como estar associada a outras malformações mais complexas( 1 ). Uma grande quantidade de estruturas do sistema estomatognático é afetada nesses casos, sendo fundamental a compreensão das alterações apresentadas e, desse modo, o uso de um protocolo para realizar a avaliação miofuncional orofacial permite estabelecer o diagnóstico, definir a conduta e o planejamento terapêutico, bem como realizar os encaminhamentos pertinentes.
Recomenda-se( 2 ) que a avaliação seja aplicada ao menos duas vezes no primeiro ano de vida, bem como anualmente até a adolescência, quando a tonsila faríngea sofre o processo de involução e, após essa fase, a cada dois anos, até completar o desenvolvimento dento-esquelético; além disso, antes e após as intervenções também deve ser realizada. Essa avaliação deve contemplar aspectos como anatomofisiologia, linguagem, fala e voz, além de investigar a função velofaríngea por meio de métodos instrumentais( 3 ).
O uso de um instrumento de avaliação padronizado favorece a comparação dos resultados pré e pós-tratamento, permite a discussão entre os profissionais, assim como entre diferentes centros de estudo( 4 - 6 ). Em várias áreas da saúde, a validação de instrumentos de avaliação tem sido realizada com o propósito de obter resultados mais precisos e confiáveis( 7 - 9 ). Na Fonoaudiologia, alguns estudos validaram protocolos de avaliação para populações diversas( 10 - 14 ).
Especificamente para indivíduos com fissura labiopalatina, a literatura internacional apresenta alguns instrumentos validados( 14 , 15 ), os quais contemplam os aspectos relacionados à fala. No Brasil, os profissionais que atuam com indivíduos que apresentam fissura labiopalatina utilizam seus próprios roteiros de avaliação, havendo a necessidade de uniformização e validação destes, para favorecer a comparação dos resultados e o desenvolvimento de pesquisas. Assim, este trabalho visa contribuir no desenvolvimento e validação do conteúdo de um instrumento de avaliação miofuncional orofacial específico para indivíduos com fissura labiopalatina, o que favorece o aprimoramento científico da área( 16 ) e atende à proposta do Comitê de Motricidade Orofacial da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia.
O objetivo do estudo foi elaborar e validar o conteúdo de uma proposta de protocolo de avaliação miofuncional orofacial para indivíduos com fissura labiopalatina.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (USP), sob o n° 200.397, e todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Para a elaboração da primeira versão do protocolo de avaliação miofuncional orofacial, específico para indivíduos com fissura labiopalatina, foi consultada a literatura e, com base na experiência clínica de dois especialistas em Motricidade Orofacial, com título de doutor e pesquisador na área, foram propostos os itens e subitens quanto aos aspectos relacionados ao sistema estomatognático e ao desempenho das funções orofaciais, além das possibilidades de respostas para cada item.
Posteriormente, essa versão foi apresentada a duas outras fonoaudiólogas convidadas, com experiência de 14 e 18 anos em avaliação de indivíduos com fissura labiopalatina, as quais analisaram o protocolo em relação aos itens, subitens e possíveis respostas, sendo, assim, obtida a segunda versão após as adequações.
Foram selecionadas imagens estáticas e dinâmicas de três indivíduos com fissura labiopalatina unilateral operada, independentemente da técnica e da época da cirurgia, nas idades de 7, 14 e 20 anos, representando três fases da vida: infância, adolescência e adulta. Tais indivíduos, selecionados aleatoriamente, pertenciam a uma amostra de 75 indivíduos de outro estudo e não foram selecionadas imagens de indivíduos que apresentavam problema neurológico ou motor, perda auditiva, síndrome ou outras malformações associadas, conforme a análise dos prontuários.
Para a obtenção das imagens, os indivíduos permaneceram sentados em cadeira com encosto e com os pés apoiados no chão. As imagens permitiam a avaliação de cada item e subi-tem do protocolo proposto e foram obtidas por meio de uma câmera digital (Sony modelo DSC-HX1), bem como por uma câmera endoscópica (CCC modelo Waterproof Endoscope USB, 10 mm), especificamente para a tomada das imagens da orofaringe. A câmera, acoplada a um tripé, foi posicionada à frente dos indivíduos, estando a lente a 1 m de distância destes, de forma a enquadrar os ombros, o pescoço e a face. Para permitir melhor visualização de algumas estruturas como lábios, língua, palato duro e véu palatino, a câmera foi aproximada. Uma única profissional foi responsável por registrar as imagens, as quais foram armazenadas em um computador e transferi-das a um dispositivo móvel (pen drive) para, posteriormente, serem analisadas.
Cinco novos examinadores com o título de mestre e/ou doutor e com experiência clínica que variou de seis a 20 anos no atendimento a indivíduos com fissura labiopalatina, bem como na realização de pesquisa na temática do estudo, foram convidados a analisar as imagens a partir do protocolo proposto. Eles receberam, previamente, orientações verbais e escritas quanto ao preenchimento. Após a análise, os examinadores classificaram cada item quanto à clareza, a partir de uma escala de quatro pontos: 1 = sem clareza; 2 = pouco claro; 3 = claro e 4 = muito claro, com o propósito de realizar a validação do conteúdo por meio da aplicação da equação do Índice de Validação do Conteúdo (IVC)( 17 ).Caso os examinadores assinalassem as opções 1 ou 2, os itens deveriam ser reformulados( 18 ).
O protocolo de avaliação miofuncional orofacial, específico para indivíduos com fissura labiopalatina, foi elaborado e finalizado após a análise de quatro fonoaudiólogos. Contém 13 itens, dez referentes aos aspectos estruturais e três funcionais, com os seus subitens correspondentes (Anexo 1).
Os itens constituintes referem-se aos lábios, língua, bochechas, dentes e oclusão, tonsilas palatinas, palato duro, véu palatino, úvula e paredes da faringe, além das funções de respiração, fala e função velofaríngea.
Na validação do conteúdo, os examinadores analisaram os itens quanto a sua clareza, para o cálculo do IVC (Tabelas 1 a 3); destes, 75% classificaram os itens como "muito claro" e 25% como "claro", com concordância de 100%.
Tabela 1. Distribuição da frequência do Índice de Validação do Conteúdo Teste do espelho quanto à avaliação dos aspectos dos lábios, língua, bochechas, tonsilas Sopro 100 0 palatinas, dentes, oclusão e palato duro
Aspectos e descrição | Muito claro (%) | Claro (%) |
---|---|---|
Lábios | ||
Posição habitual | 60 | 40 |
Aspecto do lábio superior | 60 | 40 |
Aspecto do lábio inferior | 20 | 80 |
Mucosa externa | 80 | 20 |
Mucosa interna | 20 | 80 |
Vestíbulo superior da boca | 60 | 40 |
Comprimento do superior | 60 | 40 |
Língua | ||
Posição habitual | 40 | 60 |
Largura | 60 | 40 |
Altura | 40 | 60 |
Mucosa | 80 | 20 |
Extensão do frênulo | 80 | 20 |
Fixação do frênulo na língua | 40 | 60 |
Fixação do frênulo no assoalho | 80 | 20 |
Limitação da função | 100 | 0 |
Bochechas | ||
Mucosa | 100 | 0 |
Tonsilas Palatinas | ||
Presença | 80 | 20 |
Tamanho | 60 | 40 |
Dentes | ||
Dentadura | 100 | 0 |
Nº de dentes | 100 | 0 |
Falha dentária | 80 | 20 |
Saúde dos dentes | 80 | 20 |
Saúde da gengiva | 80 | 20 |
Uso de aparelho | 100 | 0 |
Uso de prótese | 80 | 20 |
Oclusão | ||
Relação horizontal | 80 | 20 |
Relação vertical | 80 | 20 |
Relação transversal | 80 | 20 |
Palato Duro | ||
Aspecto | 80 | 20 |
Profundidade | 60 | 40 |
Largura | 60 | 40 |
Fístula | 80 | 20 |
Tabela 2. Distribuição da frequência do Índice de Validação do Conteúdo quanto à avaliação dos aspectos do véu palatino, úvula, faringe e teste do espelho
Aspectos e descrição | Muito claro (%) | Claro (%) |
---|---|---|
Véu palatino | ||
Aspecto | 80 | 20 |
Diástase | 60 | 40 |
Simetria | 60 | 40 |
Extensão | 100 | 0 |
Fístula | 60 | 40 |
Inserção do músculo levantador | 100 | 0 |
Mobilidade | 60 | 40 |
Úvula | ||
Aspecto | 100 | 0 |
Faringe | ||
Paredes laterais | 60 | 40 |
Parede posterior | 100 | 0 |
Teste do espelho | ||
Sopro | 100 | 0 |
/a/ | 100 | 0 |
/u/ | 100 | 0 |
/i/ | 100 | 0 |
/f/ | 100 | 0 |
/s/ | 100 | 0 |
/∫/ | 100 | 0 |
Frases /p/ | 100 | 0 |
Frases /b/ | 100 | 0 |
Frases /t/ | 100 | 0 |
Frases /d/ | 100 | 0 |
Frases /k/ | 100 | 0 |
Frases /g/ | 100 | 0 |
Frases /f/ | 100 | 0 |
Frases /v/ | 100 | 0 |
Frases /s/ | 100 | 0 |
Frases /z/ | 100 | 0 |
Frases /∫/ | 100 | 0 |
Frases /ȝ/ | 100 | 0 |
Tabela 3. Distribuição da frequência do Índice de Validação do Conteúdo Limitação da função 100 0 quanto à avaliação dos aspectos da fala, voz e respiração
Aspectos e descrição | Muito claro (%) | Claro (%) |
---|---|---|
Fala | ||
Hipernasalidade | 100 | 0 |
Hiponasalidade | 100 | 0 |
Distúrbio fonológico | 60 | 40 |
Distúrbio compensatório | 60 | 40 |
Distúrbio obrigatório | 60 | 40 |
Adaptação funcional | 60 | 40 |
Distorção acústica | 60 | 40 |
Velocidade | 80 | 20 |
Abertura da boca | 80 | 20 |
Movimento labial | 80 | 20 |
Movimento mandibular | 100 | 0 |
Saliva | 100 | 0 |
Coordenação pneumofonoarticulatória | 100 | 0 |
Inteligibilidade | 100 | 0 |
Precisão articulatória | 60 | 40 |
Voz | ||
Pitch | 100 | 0 |
Loudness | 100 | 0 |
Tipo de voz | 80 | 20 |
Respiração | ||
Modo | 80 | 20 |
O propósito deste estudo foi elaborar e validar o conteúdo Úvula Aspecto 100 0 de um instrumento para avaliação miofuncional orofacial específico para indivíduos com fissura labiopalatina. Alguns aspectos que envolvem a avaliação miofuncional orofacial geral, como mobilidade, tonicidade, mastigação e deglutição, não foram previstos, pois se entende que tais avaliações não diferem daquelas aplicadas em outros casos e, deste modo, outros instrumentos de avaliação disponíveis( 5 , 6 ) podem ser utilizados.
A elaboração dos itens que contemplaram a proposta foi baseada na experiência de profissionais e na literatura referente à área da Motricidade Orofacial, bem como relacionada à fissura labiopalatina( 4 , 5 , 19 - 29 ).
Na primeira versão elaborada, os examinadores que a analisaram sugeriram algumas adequações relacionadas às possibilidades de respostas, o que contribuiu para tornar mais clara a proposta. De acordo com alguns autores, a apreciação do instrumento por parte de examinadores experientes e competentes na área específica que se pretende testar é essencial e deve ser considerada no processo de validação do conteúdo( 8 , 13 , 29 ).
A validação do conteúdo refere-se ao julgamento de diferentes examinadores a respeito de um instrumento, os quais devem analisar os itens em relação ao conteúdo e relevância dos objetivos a serem medidos, bem como fazer sugestões de quanto retirar, acrescentar ou modificar os itens( 7 ). Alguns autores realizaram a validação do conteúdo somente por análise qualitativa a partir da avaliação de um comitê de especialistas( 18 , 29 ), enquanto outros autores consideraram de grande relevância a análise quantitativa( 8 , 13 ).
Neste estudo, para a validação do conteúdo, realizada por meio da análise dos examinadores, optou-se por selecionar imagens pertencentes a indivíduos com fissura unilateral completa de lábio e palato, devido a sua incidência e também pelo fato de esse tipo de fissura afetar muitos aspectos do sistema estomatognático. Desta forma, poderia contemplar todos os itens propostos no protocolo. Além disso, selecionou-se um indivíduo em cada fase da vida (infância, adolescência e adulta) para que o instrumento pudesse ser aplicado a diferentes faixas etárias.
Na validação do conteúdo, foi utilizado o IVC para medir a porcentagem de concordância entre os cinco examinadores que apreciaram a segunda versão. Foi obtida a concordância de 100%, na qual 75% dos examinadores classificaram os itens como "muito claro" e 25% como "claro". De acordo com alguns autores, como os examinadores não assinalaram as classificações "sem clareza" e "pouco claro", não houve necessidade de extinguir ou reformular algum item( 18 ).
Assim, a proposta mostrou-se adequada e o conteúdo do instrumento foi validado em uma única etapa, com o percentual de concordância acima daquele estabelecido na literatura para ser considerado validado( 13 , 17 , 18 , 29 ). Deste modo, o conteúdo do instrumento proposto neste estudo foi considerado uma medida válida e precisa para os 13 itens avaliados, assim como os seus subitens.
Não foi objetivo deste estudo estabelecer critérios de referência para o julgamento de alguns itens, o que será realizado em um novo estudo, assim como a continuidade do processo de validação do instrumento. Verificou-se no transcorrer do presente estudo que a qualidade das imagens requer técnica e equipamento apropriados, a fim de permitir a visualização detalhada das estruturas a serem avaliadas.
Uma proposta de protocolo para a avaliação miofuncional orofacial de indivíduos com fissura labiopalatina, que abrange aspectos estruturais e funcionais, constituída por 13 itens, foi desenvolvida e teve seu conteúdo validado.