versão impressa ISSN 0066-782X
Arq. Bras. Cardiol. vol.104 no.1 São Paulo jan. 2015
https://doi.org/10.5935/abc.20140208
A platipneia ortodeoxia é um síndrome rara caracterizada por dispneia e pela diminuição da saturação arterial de oxigênio, com a passagem da posição de decúbito para a posição sentada ou ortostática1. Resulta de um shunt direito-esquerdo, geralmente intracardíaco; contudo, o mecanismo fisiopatológico responsável pela natureza posicional do shunt não está totalmente esclarecido 1,2. Os autores descrevem um caso de dispneia e hipoxemia em ortostatismo, o qual foi atribuído a um shunt direito-esquerdo por uma Comunicação Interauricular (CIA).
Homem de 75 anos, sem antecedentes pessoais relevantes. Foi submetido eletivamente à artroplastia da anca direita e, no quarto dia pós-operatório, após começar a deambular, iniciou dispneia, polipneia e baixa saturação arterial de oxigênio.
No exame objetivo, apresentava tensão arterial de 120/70 mmHg, frequência cardíaca de 68/minuto, frequência respiratória de 30/minuto, saturação periférica de 80%. Não apresentava alterações na ausculta cardíaca e pulmonar, e nem ingurgitamento jugular e edemas periféricos.
Nas análises, destacava-se gasometria (sob oxigênio suplementar a 5 L/minuto), com Pressão Arterial Parcial de Oxigênio (PaO2) de 47 mmHg e alcalose respiratória. Não apresentava alterações relevantes nos parâmetros hematológicos e bioquímicos. O eletrocardiograma e a radiografia de tórax não revelaram alterações relevantes.
Realizou angiotomografia computorizada (angio-TC) de tórax, que revelou pequenos defeitos de repleção e hipodensos, nas artérias lobar média e lobar inferior direita. Revelou também dilatação ligeira da aorta ascendente (45 mm).
O ecocardiograma transtorácico mostrou cavidades de dimensões normais, com boa função dos ventrículos esquerdo e direito, regurgitação tricúspide mínima, sem hipertensão pulmonar; válvula de Eustáquio exuberante; e raiz da aorta e aorta ascendente ligeiramente dilatadas (45 mm). Não se visualizou qualquer CIA.
Foi admitido o diagnóstico de embolia pulmonar e iniciada terapêutica com enoxaparina. Persistiram períodos de hipoxemia, que se relacionaram com a posição sentada, verificando-se total normalização da saturação periférica quando o paciente se posicionava em decúbito.
Considerando a hipótese de shunt intracardíaco direito-esquerdo, realizou-se Ecocardiograma Transesofágico (ETE) com soro agitado, que revelou aneurisma exuberante do Septo Interauricular (SIA), com solução de continuidade do tipo ostium secundum, permitindo a passagem de contraste para as cavidades esquerdas, mesmo sem manobra de Valsalva (Figura 1A).
Figura 1 (A) Ecocardiograma transesofágico em decúbito (0º) mostrando exuberante aneurisma do septo interauricular com shunt direito-esquerdo (seta) evidenciado por Doppler-cor e fluxo de contraste; (B) Ecocardiograma transesofágico na mesa tilt (60°) com aumento do fluxo direito-esquerdo, evidenciado por Doppler colorido e contraste.
Para esclarecimento da variação posicional da saturação arterial de oxigênio, o ETE também foi realizado na mesa tilt, sob monitorização gasométrica seriada. A 60º verificou-se procidência mantida do aneurisma do SIA para a aurícula esquerda, além de passagem de contraste para as cavidades esquerdas imediata e mais abundante em relação ao que foi observado em decúbito (Figura 1B) Concomitantemente, verificou-se descida da PaO2, de um valor inicial de 67 mmHg, em decúbito, para 43 mmHg (ar ambiente).
Após 1 semana, o paciente repetiu tomografia computadorizada de alta resolução, que não mostrou defeitos de repleção na circulação pulmonar, e a revisão do exame prévio conduziu à possibilidade de um falso-positivo. A cintigrafia de ventilação perfusão não mostrou defeitos da perfusão e nem da difusão, e as provas funcionais respiratórias não mostraram alterações obstrutivas, restritivas ou da difusão.
O paciente foi submetido ao fechamento da CIA, por via percutânea, com colocação de dispositivo cribiforme, sob controle fluoroscópico e de ecografia intracardíaca.
Repetiu ETE com soro agitado, que mostrou dispositivo bem posicionado adjacente ao aneurisma do SIA, persistindo o fluxo de contraste direito-esquerdo, em muito menor grau do que no exame prévio, e quase que exclusivamente associado à manobra de Valsalva. Esse fluxo não se acentuou quando posicionado a 60º na mesa tilt, contudo verificou-se redução da PaO2 de 102 mmHg para 75 mmHg (Figura 2).
Os autores descrevem um caso de platipneia ortodeoxia causado por uma CIA com shunt direito-esquerdo, sem evidência de hipertensão pulmonar, num paciente com suspeita diagnóstica prévia de embolia pulmonar.
A platipneia pode resultar de vários processos cardiopulmonares, mas a causa mais frequente é a existência de um shunt interauricular direito-esquerdo, através de um forame ovale patente ou, mais raro, um verdadeiro defeito do SIA, na ausência de hipertensão pulmonar. Embora essas comunicações interauriculares sejam frequentes (persistência de forame ovale patente em 27% da população), elas geralmente são assintomáticas3. Em condições normais, o fluxo de sangue faz-se da esquerda para a direita, de acordo com o gradiente de pressão. Assim, o shuntdireito-esquerdo surge quando há sobrecarga das cavidades direitas e hipertensão pulmonar, podendo também ocorrer em circunstâncias específicas, como na manobra de Valsalva1,4.
O mecanismo fisiológico responsável pela natureza posicional do shunt não está totalmente esclarecido. Na platipneia ortodeoxia, não há, tipicamente, aumento da pressão arterial pulmonar, mas, em ortostatismo, haverá um ou vários fatores anatômicos e funcionais, capazes de alterar a direção do fluxo fisiológic o1,5,6.
A dilatação da aorta ascendente é um dos mecanismos fisiopatológicos mais frequentemente apontados3. Em ortostatismo, o efeito da gravidade sobre a raiz da aorta dilatada leva ao deslocamento desta para diante e para baixo, resultando na elevação da pressão na aurícula direita e no estiramento do SIA, com aumento da dimensão do orifício de comunicação2,6. Contribui também para a horizontalização do SIA, fazendo com que o fluxo proveniente da veia cava inferior se dirija preferencialmente para o orifício comunicante do SIA. Outros mecanismos, como a cifoescoliose e pneumectomia, concorrem para a horizontalização do SIA6,7.
A persistência da válvula de Eustáquio também contribui para direcionar o fluxo da veia cava inferior para o orifício do SIA, como reminiscência de sua função intrauterina2. O aneurisma do SIA perturba o fluxo laminar ao longo do SIA, tornando-o turbulento, e dirige-o para o orifício comunicante8.
No caso apresentado, a dilatação da aorta ascendente, que se terá vindo a desenvolver com o aumento da idade, o volumoso aneurisma do SIA e a proeminente válvula de Eustáquio tiveram, provavelmente, um papel importante na fisiopatologia da platipneia ortodeoxia.
Por outro lado, mesmo na ausência de hipertensão pulmonar, as situações que causam aumento de pressão localizada na aurícula direita e/ou que diminuem a compliance das cavidades direitas, como embolia pulmonar, pericardite constritiva, derrame pericárdico, estenose tricúspide, mixoma auricular direito, disfunção ventricular direita, têm um papel na etiologia do shunt direito-esquerdo5,6,9.
Neste doente, inicialmente, foi considerada a hipótese de embolia pulmonar, diagnóstico que não se veio a confirmar. Contudo, uma embolia pulmonar de pequena dimensão, totalmente resolvida com terapêutica anticoagulante, poderia ter sido o fator revelador do quadro clínico de platipneia ortodeoxia.
Neste caso, o grau de dispneia e hipoxemia do doente não era concordante com a estabilidade hemodinâmica e com a ausência de sinais ecográficos de sobrecarga das cavidades direitas, não sendo esse diagnóstico suficiente para explicar as variações posicionais da saturação, o que levou à suspeição de outro processo concomitante. A sugestão da angio-TC de embolia pulmonar periférica, em consequência de ramos distais da artéria pulmonar, deve ser encarada com reserva, dada à baixa resolução do exame para esse diagnóstico, contrariamente ao que se sucede com os troncos principais.
Este caso torna evidente a necessidade de um elevado índice de suspeição para estabelecer o diagnóstico de platineia ortodeoxia, devendo ser considerada no diagnóstico diferencial da hipoxemia inexplicada ou não totalmente explicada.
A platipneia ortodeoxia foi descrita pela primeira vez em 1949, estando já referidos na literatura 228 casos, dos quais 215 de origem intracardíaca. Ainda assim, está provavelmente subdiagnosticada1,4.
A terapêutica implica o fechamento do defeito do SIA, por via percutânea (utilizada em cerca de 75% dos casos descritos) ou cirúrgica (mais eficaz, principalmente no caso de CIA fenestrada e de defeitos complexos)4. No entanto, a decisão de intervir depende da gravidade dos sintomas e das morbilidades associadas. Neste caso, o fechamento não foi completo, persistindo quer o shunt direito-esquerdo, quer a diminuição da PaO2 associada ao ortostatismo, ainda que em menor grau e assintomáticos.
Este caso ilustrou ainda a utilidade do ETE em mesa tilt para estabelecer a correlação entre a pressão arterial de oxigênio e alterações anatômicas e funcionais induzidas pelo ortostatismo sobre a aurícula.
Vídeo 1 Ecocardiograma transesofágico em decúbito 0º: exuberante aneurisma do septo interauricular com fluxo direito-esquerdo por Doppler colorido.
Vídeo 2 Ecocardiograma transesofágico com soro agitado em decúbito 0º: aneurisma do septo interauricular com fluxo de contraste direito-esquerdo.
Vídeo 3 Ecocardiograma transesofágico em mesa basculante a 60º: aneurisma do septo interauricular com procidência mantida para a átrio esquerdo e aumento do fluxo de contraste direito-esquerdo, relativamente ao basal.
Vídeo 4 Ecocardiograma transesofágico com soro agitado em mesa basculante a 60º: franco aumento do fluxo de contraste direito-esquerdo em relação ao basal.
Vídeo 5 Ecocardiograma transesofágico com soro agitado após fechamento da comunicação interauricular: dispositivo de oclusão, adjacente ao aneurisma do septo interauricular e persistência de fluxo de contraste direito-esquerdo, em reduzida quantidade.