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Pseudoporfiria induzida por furosemida em paciente com doença renal crônica: relato de caso

Pseudoporfiria induzida por furosemida em paciente com doença renal crônica: relato de caso

Autores:

Giovana Memari Pavanelli,
Sibele Sauzem Milano,
Gabriela Sevignani,
Juliana Elizabeth Jung,
Vaneuza Araujo Moreira Funke,
Marcelo Mazza do Nascimento

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Nephrology

versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239

J. Bras. Nefrol. vol.40 no.3 São Paulo jul./set. 2018 Epub 10-Jul-2018

http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2017-0029

INTRODUÇÃO

Pseudoporfiria é uma fotodermatose bolhosa com características clínicas e histológicas semelhantes às da porfiria cutânea tardia, mas sem anormalidades no metabolismo da porfirina.1 Trata-se de uma doença extremamente rara na população geral, mas que pode ter a frequência um pouco aumentada em certos grupos de risco.2 Sua etiologia está relacionada, dentre outras causas, à doença renal crônica dialítica, à exposição à radiação ultravioleta e a certos medicamentos. As drogas mais frequentemente associadas à pseudoporfiria são anti-inflamatórios, especialmente o naproxeno, mas também são descritos casos secundários aos usos de antibióticos, antineoplásicos e diuréticos, como a clortalidona, torasemida, bumetanida e furosemida.3 Exceto pela fotoproteção e suspensão dos possíveis medicamentos envolvidos, não há tratamento específico. Este relato tem como objetivo descrever um caso de pseudoporfiria relacionada à furosemida em um paciente portador de doença renal crônica estágio 4.

APRESENTAÇÃO DO CASO

Paciente masculino de 76 anos, previamente diagnosticado com hipertensão arterial sistêmica e doença renal crônica estágio 4 de etiologia indefinida, somente relatando uma história pregressa de litíase renal. Iniciou acompanhamento no serviço de oncologia por linfoma esplênico de zona marginal. Inicialmente não foi instituído tratamento específico para o linfoma, optando-se por manter acompanhamento clínico.

Dois meses após o diagnóstico, surgiram duas lesões ulceradas de aproximadamente 10 centímetros de diâmetro em região posterior de pernas, com eritema periférico e crosta hemática central (Figura 1A). O paciente referia dor e calor local, piorando no fim do dia e em posição ortostática. Não apresentava lesões em outras regiões do corpo, hiperpigmentação ou hipertricose. Fazia uso contínuo de furosemida havia 3 meses, citrato de potássio e fluoxetina.

Figura 1 [A] Lesão ulcerada em região posterior da perna direita, com crosta hemática e pus, eritema e descamação periférica, bordas irregulares; [B] Lesões em processo de cicatrização, com áreas eritematosas e descamativas em região posterior da perna direita. 

Em virtude da suspeita de infecção de pele, foi iniciado tratamento com quinolona via oral e sulfato de neomicina tópico sem melhora, sendo indicada então biópsia da lesão. O exame histopatológico demonstrou infiltrado linfocitário discreto perivascular superficial e elastose solar moderada, com hialinização das paredes vasculares dos capilares da derme superficial na coloração ácido periódico de Schiff (PAS) (Figura 2), achados compatíveis com porfiria. Exames laboratoriais evidenciavam creatinina 3,0 mg/dL, ureia 144 mg/dL, cálcio 11,5 mg/dL, Hb 9,0 g/dL, ferritina 1117 ng/mL e bioquímica hepática normal. Os níveis urinários de porfirina eram normais - uroporfirina negativa no exame de urina de 24 horas -, afastando o diagnóstico de porfiria.

Figura 2 [A] HE 4X - Panorâmica de corte histológico de pele com infiltrado linfocitário discreto ao redor dos vasos sanguíneos; [B] HE 10 X - Corte histológico de pele com áreas de atrofia epidérmica e elastose solar moderada em derme; [C] PAS 40 X - Corte histológico de pele na coloração PAS com digestão demonstrando hialinização das paredes vasculares dos capilares da derme superficial; [D] PAS 40 X - Corte histológico de pele na coloração PAS com digestão demonstrando hialinização das paredes vasculares dos capilares da derme superficial. 

Com base nos achados histopatológicos associados aos níveis urinários normais de porfirina, foi estabelecido o diagnóstico de pseudoporfiria. O quadro foi atribuído à furosemida, e a medicação foi suspensa. Cinco meses após a suspensão, houve melhora significativa das lesões (Figura 1B).

DISCUSSÃO

Em 1964, Zelickson relatou pela primeira vez um caso de pseudoporfiria relacionado ao ácido nalixídico. Após esse primeiro relato, várias outras drogas foram associadas à doença, incluindo os diuréticos.1,3 A pseudoporfiria tem sido relatada em associação com diversos diuréticos, como furosemida, torasemida, bumetanide, clortalidona e a associação de hidroclorotiazida com triantereno. Além disso, outros fatores, como doença renal crônica, diálise e exposição excessiva à radiação ultravioleta, também foram associados ao aparecimento de pseudoporfiria.3

Há menos de 100 casos de pseudoporfiria descritos, mas acredita-se que a doença não seja tão incomum, apenas pouco relatada. Em um estudo com 363 pacientes em hemodiálise, dois apresentaram pseudoporfiria. Poucos casos foram relatados em pacientes com doença renal crônica não dialítica.4 A condição provavelmente é subdiagnosticada em pacientes com doença renal crônica, os quais apresentam ampla gama de manifestações cutâneas que frequentemente são pouco valorizadas por serem multifatoriais, podendo estar relacionadas ao desequilíbrio eletrolítico, acúmulo de substâncias urêmicas e comorbidades.5

O mecanismo fisiopatológico da pseudoporfiria não é bem esclarecido. Acredita-se que algumas drogas, como a furosemida, tenham comportamento semelhante ao das porfirinas endógenas fotoativadas, atuando em alvos específicos na pele.6 Outro mecanismo proposto foi que alguns produtos sejam depositados ao longo do endotélio, fazendo com que o indivíduo desenvolva uma resposta imune contra o endotélio microvascular dérmico. Acredita-se ainda que se tratam de múltiplos mecanismos, ocorrendo, além da resposta imune, liberação de proteases que lesam o endotélio.7 Diante disso, alguns autores afirmam que o termo mais correto para essa condição seja "fotossensibilidade induzida por terapia", visto que se trata de uma reação medicamentosa com características específicas.8

A apresentação clínica típica se dá pela presença de bolhas e vesículas nas mãos, antebraços, face, pernas ou pés. Entretanto, há relatos de casos que cursaram sem a apresentação bolhosa típica, havendo evolução com crostas e úlceras, sendo o diagnóstico confirmado pelas características histológicas.9 Fragilidade da pele e contusões após pequenos traumas também são queixas comuns.10 A pseudoporfiria, em contraste com a porfiria, raramente está associada à hipertricose ou hiperpigmentação.3

As características histopatológicas assemelham-se àquelas encontradas na porfiria. O exame das lesões geralmente apresenta vesículas subepidérmicas com discreto infiltrado linfocitário perivascular, embora essa não seja uma característica necessária para a confirmação diagnóstica.8 Os achados mais específicos dessa condição incluem, na coloração ácido periódico de Schiff, o espessamento da parede endotelial e resistência à diástase na microvasculatura dérmica superior.8,11 Esses dois últimos foram evidenciados no exame anatomopatológico da lesão do paciente, confirmando o diagnóstico de pseudoporfiria. Além disso, na biópsia em questão, foi possível observar achados histológicos compatíveis com elastose solar, que é um marcador de exposição ultravioleta, o que corrobora com o diagnóstico.12

O diagnóstico é estabelecido com base em níveis normais de porfirina no plasma, na urina ou nas fezes em pacientes com manifestações clínicas e achados histológicos similares àqueles encontrados na porfiria. No contexto de doença renal crônica avançada, no entanto, o diagnóstico pode ser difícil. Em pacientes em hemodiálise ou diálise peritoneal, os níveis plasmáticos de porfirinas podem estar aumentados na ausência de deficiência enzimática em decorrência da excreção reduzida, dificultando o diagnóstico diferencial entre porfiria cutânea tarda e pseudoporfiria.13 Além disso, em pacientes não dialíticos, a definição da etiologia da doença pode ser particularmente difícil, considerando que há poucos casos relatados de pseudoporfiria em doentes renais crônicos pré-dialíticos.

O tratamento consiste na suspensão dos possíveis medicamentos envolvidos e em evitar exposição solar. Em casos associados à doença renal crônica dialítica, o uso prolongado de N-acetilcisteína parece trazer benefícios.14 O prognóstico pode ser muito bom, desde que identificado e descontinuado o agente causador. Entretanto, a resposta geralmente é lenta, com possibilidade de complicação por infecção secundária. A melhora das lesões geralmente é gradual, com resolução completa num período de meses a anos.15

CONCLUSÃO

A pseudoporfiria é uma condição clínica rara e provavelmente subdiagnosticada, por isso, conhecer suas particularidades é importante para o diagnóstico diferencial de lesões cutâneas em pacientes com fatores de risco. As alterações cutâneas nos pacientes com doença renal crônica são pouco valorizadas e, embora frequentemente benignas, podem resultar no aumento da morbidade e mortalidade. Portanto, o seu reconhecimento é essencial para um diagnóstico adequado e tratamento precoce.

REFERÊNCIAS

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