versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.113 no.2 São Paulo ago. 2019 Epub 02-Set-2019
https://doi.org/10.5935/abc.20190153
Interessante encontrarmos um artigo1 aparentemente dermatológico em revista cardiológica. Por que ler sobre psoríase? Enfermidade que por muitos colegas, e por vários anos, foi considerada eminentemente cutânea e de curso benigno, principalmente na sua forma em placa. Todavia, estudos epidemiológicos2,3 e um registro internacional4 observaram um aumento em torno de 50% no risco de eventos cardiovasculares neste grupo frente à população geral, marcadamente em pacientes mais jovens.5 Como explicar tudo isso? Inflamação sistêmica parece ser o “elo perdido” entre doença cardiovascular (CV), neoplasias e doenças sistêmicas inflamatórias crônicas (ex, psoríase ou artrite reumatóide).6
O interesse da cardiologia neste tema interdisciplinar não é novo. Nas últimas duas décadas se consolidou o entendimento da aterosclerose como doença inflamatória sistêmica vascular e que seus mecanismos fisiopatológicos são acelerados por atividade inflamatória sistêmica sustentada. Utilizando a atrite reumatóide como modelo fisiopatológico, Sattar et al.7 em 2003, sistematizaram o processo de aterosclerose acelerada. A inflamação sistêmica aumentaria a síntese hepática de proteína C reativa (PCR), induziria lipólise com liberação de ácidos graxos livres, intensificaria a resistência insulínica e oxidação de lipoproteínas de baixa densidade (LDL), culminando com disfunção endotelial em conjunto com maior expressão de moléculas de adesão, acelerando a doença aterosclerótica. Em 2011, Boehnck et al.8 cunharam o termo “psoriatic march” para descrever, no modelo fisiopatológico da psoríase, possíveis mecanismos para justificar o aumento dos eventos CV. Como era de se esperar, o esqueleto e as etapas do processo são extremamente assemelhadas ao visto na artrite reumatóide. A inflamação sistêmica sustentada desencadeada pela psoríase elevaria a síntese de PCR, de fator de crescimento do endotélio vascular (VEGF), p-selectina, resistina e leptina. Tais proteínas estariam envolvidas com o aumento da resistência insulínica, que em última análise intensificaria a disfunção endotelial e estimularia a expressão de moléculas de adesão. Com o reconhecimento destas etapas, fica clara a importância, neste processo fisiopatológico, da fase subclínica da aterosclerose (disfunção endotelial, rigidez vascular e hiperexpressão de moléculas de adesão vascular) e dos biomarcadores (PCR, leptina, resistina). No artigo que ensejou este minieditorial, os autores compararam rigidez arterial por velocidade de onda de pulso (VOP), espessamento médio intimal (EMI) carotídeo, dados para síndrome metabólica e níveis de PCR numa coorte de indivíduos com psoríase e voluntários. Os resultados descritos, com significância estatística, corroboraram com a hipótese de que pacientes com psoríase com atividade de doença intensa teriam mais síndrome metabólica, PCR elevada e indícios de aterosclerose subclínica (EMI e rigidez arterial aumentados) frente ao grupo controle.
O desenvolvimento de biomarcadores para auxiliar no diagnóstico, prognóstico e seguimento terapêutico da doença aterosclerótica é uma realidade. No caso da doença arterial coronariana, a PCR está bem estabelecida. Para insuficiência cardíaca, os peptídeos natriuréticos. No caso específico da psoríase e risco de eventos cardiovasculares, diversos biomarcadores foram estudados: PCR, interleucina-6 (IL - 6), leptina e adiponectina. Os resultados foram semelhantes aos da população geral, com aumento do risco CV em vigência de PCR, IL-6 elevadas. A leptina tem achados conflitantes e a adiponectina, por ser uma adipocina com efeitos protetores cardiovasculares, aparece reduzida na maior parte dos estudos.9 Além destes, uma nova molécula poderá vir a ser um biomarcador protagonista: GlycA. Molécula analisada via espectometria por ressonância nuclear magnética. Este marcador tem correlação com risco de doença arterial coronariana e inflamação vascular. Nos pacientes com psoríase, teve tanto correlação com atividade de doença estimada pelo psoriasis area and severity índex (PASI) quanto com risco de eventos CV independente dos fatores de risco tradicionais, incluindo a PCR. Ademais, houve redução dos níveis de GlycA e de inflamação vascular nos pacientes submetidos a terapia com drogas anti fator de necrose tumoral alfa (anti-TNF),10 sugerindo que também tem correlação com resposta clínica terapêutica.
Devido à importância do tema, as Sociedades Americana de Dermatologia11 e a Europeia de Reumatologia12 já publicaram recomendações sobre como avaliar o risco cardiovascular e fazer as intervenções necessárias para reduzir tais riscos. Dentre os diversos escores para estimar risco cardiovascular existentes, o grupo European League Against Rheumatism (EULAR) optou pelo Systematic Coronary Risk Evaluation (SCORE), desenhado pela Sociedade Europeia de Cardiologia. Infelizmente nenhum escore ou ferramenta para estimar a probabilidade de eventos consegue determiná-lo de forma segura nestas populações de alto risco (dada pela inflamação sistêmica crônica). Para compensar, a diretriz de dermatologia sugere, nos pacientes psoriásicos com doença ativa em >10% da superfície corpórea ou que tenham indicação de fototerapia ou terapia medicamentosa sistêmica, que o risco CV estimado seja aumentado em 50%. O mesmo foi recomendado pelo grupo EULAR, sendo que a correção de 1,5 vezes foi indicada nos pacientes com artrite reumatoide com acometimento extra axial, doença > 10 anos e presença de Fator Reumatoide (FR) ou anticorpo anti peptídeo cítrico citrulinado (anti CCP) séricos.
Outro ponto tão importante quanto a estratificação do risco seria o tratamento. Quais são as possíveis intervenções medicamentosas para controle de eventos CV na psoríase? A redução da inflamação parece ser o cerne para a diminuição das doenças cardiovasculares. Numa coorte de portadores de psoríase, o uso de drogas anti-TNF reduziram EMI de carótidas em homens e rigidez aórtica em ambos os gêneros.13 Mais impressionante ainda foi a análise dos dados coletados pelo registro dinamarquês de artrite psoriásica, no qual o uso dos imunobiológicos e metotrexato reduziu a mortalidade global.14 Uma metanálise ajudou a estimar o impacto de terapias anti-inflamatórias na população psoriásica.15 O uso dos anti-TNF reduziu desfechos maiores cardiovasculares (MACE) - morte cardiovascular, infarto agudo do miocárdio (IAM) ou acidente vascular encefálico (AVE) não fatais - de forma robusta em 70%. O metotrexato impactou queda de 19% no risco de IAM e de eventos globais em 28%. Por outro lado, o tratamento com anti-inflamatórios não esteroidais inibidores COX2 seletivos mais que dobrou o risco de AVE, enquanto que o corticosteroide elevou os MACE em relevantes 62%.
Até o momento, o estudo clínico randomizado mais debatido e que confirmou a hipótese de que o controle da inflamação sistêmica, em pacientes de muito alto risco (pacientes pós IAM que mesmo após terapia secundária otimizada mantinham PCR-t elevada), reduziria eventos CV foi o Canakinumab Anti-Inflammatory Thrombosis Out- comes Study (CANTOS).16 Tal trabalho demonstrou que o bloqueio da interleucina 1b com um anticorpo monoclonal controlou a inflamação sistêmica e reduziu, de forma adicional ao tratamento otimizado, a mortalidade cardiovascular, IAM e AVE em 15% numa população de altíssimo risco de recorrência de eventos CV. Este fato abriu caminhos para mudanças paradigmáticas no entendimento da fisiopatologia da doença arterial coronariana e contribuirá de forma muito significativa no desenvolvimento futuro de novos medicamentos, com alvos até então inexplorados.