versão impressa ISSN 2595-0118versão On-line ISSN 2595-3192
BrJP vol.1 no.2 São Paulo abr./jun. 2018
http://dx.doi.org/10.5935/2595-0118.20180022
As doenças crônicas (DC) são consideradas um dos maiores problemas de saúde pública mundial. No Brasil, essas doenças são prevalentes em 70% dos idosos, causando déficit de saúde de grande magnitude1. Dentre aquelas vinculadas ao sistema osteomioarticular, muitas, podem ter quadros associados de DC. A Associação Internacional para o Estudo da Dor2 definiu-a como uma experiência emocional, sensitiva desagradável e com duração maior do que três meses. Situa-se entre um dos mais importantes problemas de saúde que interferem no desempenho e na autonomia dos idosos nas suas funções de vida diária. A independência funcional é fator fundamental para a saúde do idoso; quando há presença de dependência, em qualquer nível, seu bem-estar e a qualidade de vida (QV) são afetados3.
A Organização Mundial de Saúde4 define a QV como a percepção do indivíduo de sua posição na vida, no contexto da cultura e sistema de valores nos quais vive, em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações. Desse modo, a QV não pode ser vista como um conceito único, já que o termo abrange muitos significados que variam de acordo com o que está em questão, ou seja, a depender dos aspectos avaliados5. A prevalência da DC encontrada no estudo de Dellaroza et al.6, realizado com 400 idosos, foi de 29,7%. Esses pesquisadores apontaram que a DC pode resultar em forte impacto na QV do idoso.
Considerando a maior expectativa de vida da população brasileira, viver como idoso saudável, autônomo e feliz passa a ser uma meta, mesmo para aqueles que convivem com alguma condição crônica7. Embora a dor seja reconhecida como um problema de saúde pública, pouco se aborda quanto à prevenção e aos impactos que produz na vida das pessoas. Pesquisar a QV de idosos com e sem dor crônica poderá produzir informações que subsidiem a construção de programas e estratégias que priorizem a prevenção da DC, além de melhorar a QV da população idosa. Considerando o crescente número de idosos, a alta prevalência de dor crônica, a incapacidade produzida por essa síndrome e que esse quadro pode produzir impactos na QV dos idosos.
Os objetivos deste estudo foram avaliar a QV de idosos com e sem dor crônica e comparar a QV com o número relatado de doenças crônicas, intensidade de dor e faixa etária.
Trata-se de uma pesquisa de natureza quantitativa, descritiva e de corte transversal. Para cálculo amostral, considerou-se a população de 13.606 idosos da área urbana de um município do oeste catarinense, de ambos os sexos8. A amostra do estudo foi calculada pela calculadora amostral online, considerando um intervalo de confiança de 95% e margem de erro de 5%, totalizando 385 idosos.
Como critérios de inclusão, considerou-se apenas os idosos que residiam na zona urbana; com idade igual ou superior a 60 anos; boa cognição testada pelo Mini-Exame do Estado Mental (MEEM)9. Como critérios de exclusão, considerou-se os idosos ausentes em seu domicílio em duas visitas do pesquisador em um intervalo de um mês; idosos acamados ou que faziam uso de dispositivos auxiliares como cadeiras de rodas.
O instrumento utilizado para a coleta de dados foi o MEEM - exame cognitivo utilizado na etapa de seleção dos participantes, como critério de inclusão. Também foi utilizado o Questionário de Dados Gerais de Idosos, adaptado de Morais, Rodrigues e Gerhardt10, o qual registrou os dados sociodemográficos e clínicos referentes a sexo, idade, número de DC autorreferidas e presença ou não de dor crônica. Para a avaliação da dor, foi utilizada a escala visual numérica (EVN). Na avaliação da QV, utilizou-se o questionário WHOQOL-OLD.
A coleta de dados foi organizada a partir dos 38 setores censitários do município. Inicialmente, foram sorteados aleatoriamente 10 setores para coleta: CR, ELD, BV, VR, PDF, SA, SC, EF, EB e UNV, buscando garantir a diversidade de todas as regiões. A coleta foi realizada a partir do cruzamento de duas ruas: um pesquisador seguia pelo lado direito, outro seguia pelo lado esquerdo - até atingir o número de 385 idosos.
Cada idoso localizado em seu domicílio foi informado quanto à finalidade da pesquisa; aqueles que aceitaram participar assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Na sequên cia, era aplicado o MEEM, sendo incluídos apenas aqueles com cognitivo preservado, sendo considerado o seguinte escore: mínimo de 17 pontos para analfabetos ou menos de quatro anos de escolaridade e 24 para indivíduos com quatro anos ou mais de escolaridade9. Depois, foram aplicados o questionário adaptado de Morais, Rodrigues e Gerhardt10, o instrumento EVN para quantificar a dor do idoso e, por fim, o questionário WHOQOL-OLD, sendo que as perguntas eram realizadas pelo avaliador e respondidas pelo idoso. Caso fosse encontrado mais de um idoso na residência, a coleta era realizada em ambientes diferentes da casa, observando o local de menor ruído e interferências de terceiros no processo de coleta de dados.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Instituição de Ensino Superior de origem, CAAE n. 613611160.0000.0116, e respeitou as recomendações da Resolução 466/2012/CONEP/CNS/MS, do Conselho Nacional de Saúde.
Os dados foram tabulados e categorizados em um banco de dados em planilha eletrônica do Microsoft Excel. Inicialmente, foi realizada a estatística descritiva com média e desvio padrão ou a distribuição de frequências das variáveis QV, intensidade da dor, idade e número de DC autorrelatadas. Para verificar a normalidade dos dados, foi utilizado o teste estatístico de Kolmogorov-Smirnov. Para a comparação da QV intergrupo (com ou sem DC), foi utilizado o teste de U de Mann-Whitney e, nas correlações, utilizou-se o índice de correlação de Spearman. As análises foram realizadas pelo programa SPSS versão 20.0, e o nível de significância adotado foi de p<0,05.
O perfil dos participantes (Tabela 1) demonstrou que 32,7% (n=126) da amostra era composta por homens e 67,3% (n=259) por mulheres. Quanto à faixa etária, predominaram idosos entre 60 e 69 anos (45,5%). A DC foi referida por 58,2% (n=224) dos idosos, e a mais prevalente foi a dor de intensidade moderada, presente em 28,3% (n=109).
Tabela 1 Características clínicas - perfil da amostra de idosos de um município do oeste catarinense (2017)
Variáveis | Classificação | n=385 n (%) |
---|---|---|
Idade (anos) | 60-69 70-79 +80 |
175 (45,5) 154 (40,0) 56 (14,5) |
Sexo | Masculino Feminino |
126 (32,7) 259 (67,3) |
Doenças crônicas | Sim Não |
331 (86,0) 54 (14,0) |
Número de doenças | Nenhuma Até 3 Acima de 4 |
50 (13,0) 304 (79,0) 31 (8,1) |
Dor crônica (EVN) | Nenhuma Leve Moderada Intensa |
161 (41,8) 40 (10,4) 109 (28,3) 75 (19,5) |
EVN = escala visual numérica; n = número.
Na tabela 2, são apresentadas as facetas do instrumento WHOQOL-OLD comparadas entre idosos com e sem DC. Em quase todas as facetas, os idosos com DC apresentaram menor índice de QV (p<0,05), exceto na faceta intimidade. Ao analisar as variáveis isoladamente, percebem-se maiores diferenças entre os grupos nas facetas habilidades sensoriais (p=0,000001), participação social (p=0,0002) e autonomia (p=0,0004).
Tabela 2 Qualidade de vida conforme as facetas do WHOQOL-OLD em idosos com e sem dor crônica (2017)
Facetas WHOQOL-OLD |
Idosos com dor crônica | Idosos sem dor crônica | |||
---|---|---|---|---|---|
Média | Desvio padrão | Média | Desvio padrão | Valor de p* | |
HB | 3,53 | 0,92 | 3,92 | 0,86 | 0,000001 |
AUT | 3,73 | 0,55 | 3,93 | 0,56 | 0,0004 |
APPF | 3,84 | 0,53 | 3,97 | 0,54 | 0,02 |
PS | 3,73 | 0,59 | 3,96 | 0,56 | 0,0002 |
MM | 4,20 | 0,90 | 4,39 | 0,86 | 0,02 |
INT | 3,88 | 0,62 | 3,99 | 0,58 | 0,07 |
HB = habilidades sensoriais; AUT = autonomia; APPF = atividades passadas, presentes e futuras; PS = participação social; MM = morte e morrer; INT = intimidade; p*: nível de significância: p<0,05.
Observou-se que, independentemente do sexo, os idosos com DC têm o índice de QV menor do que o grupo sem dor (p<0,05).
Ao comparar os grupos, observou-se diferença estatisticamente significativa entre as mulheres com e sem DC e seu índice geral de QV (p=0,000001), comparativamente ao grupo dos homens (p=0,07). Também foram observadas diferenças entre as faixas etárias dos idosos: idosos acima de 71 anos possuem piora na média geral da QV (p= 0,000001) (Tabela 3).
Tabela 3 Prevalência da dor crônica por sexo e faixa etária conforme média geral do WHOQOL-OLD (2017)
Idosos com dor crônica | Idosos sem dor crônica | Valor de p | |||
---|---|---|---|---|---|
Média | Desvio padrão | Média | Desvio padrão | ||
Sexo | |||||
Feminino | 3,79 | 0,41 | 4,04 | 0,40 | 0,000001 |
Masculino | 3,85 | 0,38 | 4,00 | 0,42 | 0,07 |
Faixa etária (anos) | |||||
Até 70 | 3,85 | 0,40 | 3,98 | 0,38 | 0,08 |
Mais de 70 | 3,75 | 0,39 | 4,06 | 0,43 | 0,000001 |
p = nível de significância: p<0,05.
A figura 1 representa a correlação entre quantidade de DC (n) e intensidade da dor com o escore geral do WHOQOL-OLD. Observou-se correlação negativa entre QV e DC e o escore final da QV (rs= -0,112; p=0,028), bem como houve correlação negativa mais significativa entre intensidade da dor e o escore final da QV (rs= -0,221; p=0,000001).
Figura 1 Correlação entre as variáveis quantidade de doenças crônicas e intensidade da dor, relacionadas à qualidade de vida (2017)EFWHO = Escore final qualidade de vida do idoso; QTASD = Quantidade de doenças crônicas.
Quando correlacionadas as variáveis quantidade de DC (n) e intensidade da dor com o escore geral do WHOQOL-OLD entre os idosos, observou-se, nas mulheres, correlação negativa entre quantidade de DC e o escore final da QV (rs= -0,164; p=0,008), bem como houve correlação negativa significativa entre intensidade da dor e o escore final da QV (rs= -0,249; p=0,00004) (Figura 2). Entre os homens, não se identificou correlação entre as variáveis - rs= - 0,037 e p=0,67; e rs= -0,130 e p=0,14 respectivamente.
O principal resultado deste estudo é que a QV varia de acordo com a presença ou ausência da dor. As facetas que apresentaram maior diferença significativa foram as habilidades (p=0,000001), participação social (p=0,0002) e autonomia (p=0,0004). Ruviaro e Filippin11 afirmaram que a DC afeta diretamente a independência e a QV dos indivíduos. As dores representaram fatores limitantes para manter as atividades cotidianas dentro da normalidade e na realização das tarefas de vida diária, o que produz restrição do convívio social e percepção negativa na QV dos idosos12.
Outro resultado foi a diferença estatisticamente significativa entre idosos com DC na faixa etária de 71 anos ou mais (p=0,000001). Isso indica que os idosos com DC acima de 71 anos têm menor percepção (ou percepção ruim) sobre a sua QV (3,75) do que aqueles que não possuem dor crônica (4,06). Linden Júnior e Trindade13, em estudo com 376 idosos, observaram que, quanto maior a idade, pior é a QV dessa população. Já Maués et al.14, ao avaliarem a QV de idosos e compararem os participantes de 60 a 70 anos (n=35) e idosos longevos (n=34) utilizando o questionário WHOQOL-OLD, concluíram que a QV dos idosos foi considerada boa, e a comparação entre os grupos mostrou que as médias de QV não diminuíram com a idade. Andrade e Martins15 afirmam que quanto mais elevada é a faixa etária, pior é a QV dos idosos, resultado da maior ocorrência de problemas de saúde e de perdas e deficiências em níveis variados. Veras16 acrescenta que a idade é um fator de risco para desenvolver comorbidades.
Estudo de Inoue et al.17 com indivíduos no Japão identificou prevalência de 39,27% (n=1032) de DC - destes, 592 possuíam idade acima de 60 anos. A prevalência de DC aumentou com a idade, de 22,2% para 52,6%, entre os indivíduos acima de 90 anos; seguido de 50,9% entre os de 81 a 90 anos; para 46,6% entre 71 e 80 anos. Os autores revelaram que a prevalência de DC está associada a problemas de saúde mental, diminuição da QV e perda social, o que representa um impacto significativo na vida da pessoa idosa. O trabalho também identificou que as mulheres relataram mais DC do que os homens e que, além disso, envelhecimento, viver sozinho, sedentarismo e falta de emprego também se associaram a um quadro com maior presença de DC.
Orfila et al.18, em uma coorte realizada com 544 idosos, avaliando até que ponto as diferenças na QV entre homens e mulheres podem ser explicadas por diferenças na capacidade funcional, com base em desempenho e nas condições crônicas, observaram que as mulheres (65,4%) apresentaram resultados piores do que os homens na QV e capacidade funcional. A capacidade funcional e DC - artrite, dor nas costas, diabetes e depressão - foram significativamente associadas à perda de escore na QV. Dessa forma, sugerem os autores que o relato negativo da QV em mulheres idosas deve-se principalmente a uma maior prevalência de incapacidade e condições crônicas. O presente estudo encontrou diferenças significativas na qualidade e vida com relação à quantidade de doenças e intensidade da dor, sendo que as mulheres que possuem maior quantidade de dor crônica autorrelatada e maior intensidade da dor, pela EVN, apresentam menor escore de QV.
A análise de correlação demonstrou que, quanto maior a quantidade de doenças, menor o escore da QV; e, quanto maior a intensidade da dor, menores são os escores da QV. Referente às DC, o estudo de Camelo, Giatti e Barreto19 com 366 idosos identificou que, quanto maior o número de diagnósticos médicos referidos de DC, pior é o resultado da QV relacionada à saúde. Já o estudo de Lacerda et al.20, que avaliou 23 idosos com média de idade 84,22±7,89 anos, evidenciou que a QV de idosos que referiram dor estava diminuída em relação aos indivíduos que não possuíam dor; e, em relação à EVN, quanto maior a pontuação, pior a QV. Ferreira et al.21 enfatizaram que as DC podem afetar de forma significativa o bem-estar e a QV dos indivíduos. Além disso, as dores moderadas e intensas tendem a ser incapacitantes, afetando a QV, reduzindo a interação social e comprometendo as atividades diárias e de lazer da população idosa22.
Assim sendo, pode-se afirmar que a dor em si interfere na percepção que cada sujeito tem de sua vida. A dor se configura como uma síndrome que provoca sofrimento independentemente da idade. Para tanto, fazem-se necessárias ações visando o bem-estar e controle da dor, já que esse é um direito da pessoa idosa. Devem ser pensadas estratégias visando a diminuição das queixas álgicas, melhorando assim a capacidade funcional e a QV dessa população23. Ainda, enfatiza-se a necessidade de detectar precocemente as DC, a fim de desenvolver estratégias preventivas que auxiliem na melhora do estado de saúde desses indivíduos18.
Raggi et al.24 destacaram a importância da identificação dos fatores de risco modificáveis que atuam como determinantes da QV e fornecem indicações que poderiam apoiar ações para favorecer maior nível de atividade física, identificação e manejo dos problemas relacionados à dor, melhora dos laços sociais, bem como a implantação de projetos universais para casas e infraestruturas ambientais que pudessem potencializar a QV do grupo populacional envelhecido.
A utilização de polifarmácia durante um período prolongado em função das DC comuns a essa fase da vida pode comprometer a saúde e a QV dos idosos. Isso ocorre em virtude das alterações na metabolização de fármacos e pela maior possibilidade de eventos adversos nessa população. Assim, torna-se fundamental a adoção de medidas não farmacológicas, possibilitando, em muitas situações, o uso de menor número de fármacos e menores doses, reduzindo os efeitos indesejáveis e mantendo um controle adequado da dor25.
O maior número de idosos com idade superior aos 70 anos tem aumentado os índices de DC, sendo que muitas delas poderiam ser evitadas com medidas preventivas, adoção de hábitos saudáveis e atividades físicas. Destaca-se a importância do trabalho multiprofissional na atenção à saúde do idoso com vistas a desenvolver estratégias para proporcionar o alívio das queixas álgicas, bem como a prevenção de novos acometimentos, contribuindo com o bem-estar e, consequentemente, uma melhor QV dessa população26.
Os resultados encontrados permitem concluir que a percepção da QV é pior entre os idosos que possuem algum tipo de DC. Ainda, que a presença de dor crônica, maior quantidade de doenças e alta intensidade da dor influenciaram de forma negativa na QV dos idosos estudados.