versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.5 Rio de Janeiro maio 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017225.20362015
A qualidade de vida (QV) é um construto multidimensional proposto como um indicador de saúde da população e sua avaliação é utilizada para estimular ações de promoção da saúde1. A QV pode ser definida como “a percepção do indivíduo de sua posição no contexto da cultura e sistema de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações”, envolvendo dimensões da saúde física, psicológica, nível de independência, relações sociais, meio ambiente e padrão espiritual2.
Características como capacidade funcional, dor, estado geral de saúde, vitalidade, aspectos sociais, emocionais e saúde mental podem ser avaliados por instrumentos que mensuram a QV3,4. Os instrumentos mais utilizados são genéricos, ou seja, avaliam vários aspectos do impacto resultante de uma condição de saúde, como a capacidade funcional, a dor e o estado geral da saúde. Dentre os instrumentos genéricos, o Medical Outcomes Studies 36-item Short-Form (MOS SF-36), o Medical Outcomes Studies 12-item Short-Form (MOS SF-12), o EuroQol (EQ-5D) e o WHOQOL-100 são os mais utilizados5,6. O WHOQOL-bref, uma versão abreviada do WHOQOL-100, desenvolvido e recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), valoriza a percepção individual, podendo avaliar a QV em diversos grupos e situações, independentemente do nível de escolaridade7. O instrumento apresenta propriedades psicométricas satisfatórias e demanda pouco tempo de aplicação7. Por meio desse instrumento, é possível descrever a percepção subjetiva de um indivíduo em relação à sua saúde física e psicológica, às relações sociais e ao ambiente em que vive8.
Observa-se que vários estudos realizados no Brasil avaliaram a QV de indivíduos em populações específicas, como idosos e gestantes9-11, ou naquelas com agravos à saúde distintos12-14. Por outro lado, poucos estudos avaliaram a QV da população geral, com diferentes perfis de saúde, como os indivíduos atendidos pela Atenção Primária à Saúde (APS)15. A APS é a porta de entrada dos pacientes no Sistema Único de Saúde (SUS) com capacidade para responder a 85% das necessidades e dos problemas de saúde da população geral, com a realização de serviços preventivos, curativos e de promoção, além de integrar os cuidados e lidar com o contexto de vida dos indivíduos16.
Estudos realizados no contexto da atenção primária observaram uma variabilidade de percepção da QV, apontando o domínio “relações sociais” como aquele com a maior contribuição para uma boa QV, e o domínio “ambiente” com a menor9,11,12,15,17. A presença de doenças, a baixa adesão ao tratamento e o baixo nível educacional são fatores associados a uma pior percepção da QV em indivíduos atendidos na APS18,19.
O Programa de Educação pelo Trabalho em Saúde (PET-Saúde) foi instituído no âmbito dos Ministérios da Saúde e da Educação, por meio da Portaria Interministerial nº 421, de 3 de março de 201020. Em Belo Horizonte, o PET-Saúde III foi desenvolvido em parceria entre a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Secretaria Municipal de Saúde21. A avaliação da QV e o conhecimento do perfil de saúde dos indivíduos que buscam atendimento na APS podem fornecer informações para subsidiar políticas públicas em saúde, como a identificação de situações de risco para agravos à saúde, além do conhecimento das características da população atendida e das ambientais e sociais do território das Unidades Básicas de Saúde (UBS) envolvidas no programa. Dessa forma, o objetivo deste estudo foi avaliar a qualidade de vida e identificar seus fatores associados em usuários de quatro UBS de Belo Horizonte integrantes do PET-Saúde III.
Este estudo integra o projeto “Qualidade de vida e perfil de saúde dos indivíduos atendidos em quatro UBS em Belo Horizonte” – Projeto Pró-Vida, que visou atender uma demanda do PET-Saúde III, na linha temática de “Promoção da Saúde e Prevenção de Agravos e Doenças Crônicas”. Os principais objetivos ao realizar o Projeto Pró-Vida foram caracterizar o perfil de saúde e avaliar a qualidade de vida dos usuários atendidos na APS. Foram selecionadas quatro UBS onde eram desenvolvidos projetos de pesquisa do PET-Saúde, com o intuito de dar continuidade às ações da UFMG nelas.
Participaram do estudo quatro UBS dos seguintes Distritos Sanitários: Centro-Sul, Nordeste, Norte e Venda Nova. De acordo com os dados do cadastro familiar no sistema Censo BH-Social da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, em 2012, todas as UBS apresentavam mais de oito mil pacientes cadastrados, sendo cerca de 54% mulheres e 74% adultos. Quanto aos recursos em saúde, todas as UBS contavam com pelo menos três Equipes de Saúde da Família.
Os critérios de elegibilidade incluíram indivíduos com idade igual ou superior a 18 anos, inclusive gestantes, cadastrados e assistidos pelas UBS incluídas, que buscavam atendimento próprio, no momento da entrevista, dentro do período de coleta do estudo. Acompanhantes de adultos ou crianças não foram incluídos. A amostra foi estimada em 884 indivíduos adultos, considerando: (i) população infinita; (ii) prevalência a priori de 50%, devido à heterogeneidade dos eventos avaliados; (iii) precisão de 5%; (iv) intervalo de confiança de 95%; (v) efeito do desenho igual a 2; e (vi) 30% de possíveis recusas. A seleção da amostra foi realizada de forma aleatória, sendo a abordagem realizada a cada três indivíduos que adentravam na UBS, até atingir o número amostral mínimo estimado para cada uma (221 indivíduos). Foram selecionados os indivíduos que preencheram os critérios de inclusão, aceitaram participar do estudo e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
As entrevistas foram realizadas de setembro de 2013 a abril de 2014 em sala reservada dentro de cada UBS, por meio de questionário semiestruturado, sendo todas as informações obtidas por autorrelato. Todas as entrevistas foram realizadas por acadêmicos do PET-Saúde, previamente treinados com os procedimentos a serem realizados. O banco de dados foi criado no programa Epi Info versão 3.5.4 (Center for Disease Control and Prevention, Atlanta, Estados Unidos) e foi realizado controle da qualidade da digitação dos dados, com replicação de 10% das digitações para cada UBS. A análise de confiabilidade entre digitadores foi realizada por meio da estatística kappa, sendo que o médio foi de κ = 0,97 para a UBS Centro-Sul, κ = 1,00 para a UBS Nordeste, κ = 0,97 para a UBS Norte e κ = 0,99 para a UBS Venda Nova, indicando ótima concordância em todas unidades. A análise de confiabilidade do questionário foi realizada por meio de reentrevista em 10% da amostra, obtendo-se κ = 1,00.
A variável resposta foi a QV. Para a avaliação da QV foi utilizado o WHOQOL-bref, com 26 questões, sendo duas a respeito da qualidade de vida em geral (QV geral) e as demais representam cada uma das 24 facetas que compõem o instrumento original e estão divididas em quatro domínios: “físico” (e.g. dor física e desconforto, dependência de medicação/tratamento, energia e fadiga, mobilidade, sono e repouso, atividades da vida cotidiana, capacidade para o trabalho), “psicológico” (e.g. sentimentos positivos e negativos, espiritualidade/crenças pessoais, aprendizado/memória/concentração, aceitação da imagem corporal e aparência, autoestima), “relações sociais” (e.g. relações pessoais, atividade sexual, suporte/apoio social) e “ambiente” (e.g. segurança física, ambiente físico, recursos financeiros, novas informações/habilidades, recreação e lazer, ambiente no lar, cuidados de saúde, transporte). As questões do WHOQOL-bref são formuladas para respostas em escalas tipo Likert, incluindo intensidade (“nada” a “extremamente”), capacidade (“nada” a “completamente”), frequência (“nunca” a “sempre”) e avaliação (“muito insatisfeito” a “muito satisfeito”; “muito ruim” a “muito bom”). As pontuações de cada domínio foram transformadas numa escala de 0 a 100 e expressas em termos de médias, conforme preconiza o manual produzido pela equipe do WHOQOL7, sendo que médias mais altas sugerem melhor percepção de QV.
As variáveis explicativas foram organizadas em (i) características sociodemográficas (sexo, cor, idade, viver com companheiro, escolaridade, renda própria, ocupação e número de pessoas na residência); e (ii) características de estilo de vida e condições de saúde (hábito de fumar, uso de bebida alcoólica, presença de doença crônica, uso de medicamento nos últimos 15 dias e saúde autorreferida).
Para a análise descritiva dos dados, foi determinada a frequência das variáveis explicativas e a média e desvio padrão (DP) para cada domínio da QV. Para a análise de associações entre as variáveis explicativas e os domínios da QV utilizou-se teste t e ANOVA, por meio dos testes de Tukey (se variâncias iguais presumidas) ou Games-Howell (se variâncias iguais não presumidas). As variáveis que apresentaram p < 0,20 na análise univariada foram inseridas no modelo de regressão linear múltipla, realizada para cada domínio do WHOQOL-bref. A análise de resíduos demonstrou distribuição normal e variância constante na regressão linear de cada domínio. As análises foram realizadas no programa SPSS versão 19.0 (SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos).
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG.
Foram entrevistados 930 pacientes das quatro UBS do estudo (Centro-sul: 193; Nordeste: 226; Norte: 220; Venda Nova: 291). As perdas e recusas foram inferiores a 1%, sendo a falta de tempo o principal motivo relatado.
Na Tabela 1 estão demonstradas as características sociodemográficas, de estilo de vida e condições de saúde da população total incluída e estratificada pela UBS de origem. A amostra foi predominantemente feminina (79,9%), com média de idade de 45 anos (DP = 16,4), variando de 18 a 90 anos. A maioria dos indivíduos apresentou até oito anos de estudo (64,7%), não vivia com companheiro (51,8%) e tinha renda própria (72,4%). Quanto às características de estilo de vida e condições de saúde, a maior parte da amostra não era fumante (66,6%), não utilizava bebida alcoólica ou a utilizava eventualmente (98,3%), apresentava pelo menos uma doença crônica (64,4%), fazia uso de algum medicamento nos últimos 15 dias (77,4%) e autorreferia sua saúde como boa ou excelente (58,0%). As doenças crônicas mais relatadas foram hipertensão (36,0%), depressão (29,6%), diabetes (14,2%), artrite, artrose ou reumatismo (14,2%) e asma (10,3%). Em geral, as características dos participantes apresentaram o mesmo padrão entre as UBS, sendo que as maiores diferenças foram observadas entre as dos distritos Centro-Sul e Nordeste, principalmente nas características sociodemográficas. Em comparação com as outras UBS, menor proporção de participantes cadastrados na UBS Centro-Sul era de cor branca e maior proporção era jovem, com baixa escolaridade e pior saúde autorreferida (Tabela 1).
Tabela 1 Características da população total (n = 930) e estratificada por Unidades Básicas de Saúde (UBS) de quatro distritos sanitários de Belo Horizonte - MG, 2014.
Distrito da UBS | Centro-Sul(n = 193) | Nordeste (n = 226) | Norte (n = 220) | Venda Nova (n = 291) | Total (n = 930) | |||||
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| ||||||||||
Variáveis | n* | % | n* | % | n* | % | n* | % | n* | % |
Sociodemográficas | ||||||||||
Sexo | ||||||||||
Feminino | 157 | 81,3 | 180 | 79,6 | 171 | 77,7 | 235 | 80,8 | 743 | 79,9 |
Masculino | 36 | 18,7 | 46 | 20,4 | 49 | 22,3 | 56 | 19,2 | 187 | 20,1 |
Cor | ||||||||||
Branca | 14 | 7,3 | 51 | 23,3 | 44 | 20,1 | 56 | 19,3 | 165 | 17,9 |
Outras | 178 | 92,7 | 168 | 76,7 | 175 | 79,9 | 234 | 80,7 | 755 | 82,1 |
Idade | ||||||||||
18-39 | 100 | 51,8 | 79 | 34,9 | 75 | 34,1 | 129 | 44,3 | 383 | 41,2 |
40-59 | 65 | 33,7 | 84 | 37,2 | 92 | 41,8 | 106 | 36,4 | 347 | 37,3 |
≥ 60 | 28 | 14,5 | 63 | 27,9 | 53 | 24,1 | 56 | 19,3 | 200 | 21,5 |
Viver com companheiro | ||||||||||
Sim | 87 | 45,1 | 99 | 43,8 | 100 | 45,7 | 161 | 55,5 | 448 | 48,2 |
Não | 106 | 54,9 | 127 | 53,2 | 119 | 54,3 | 129 | 44,5 | 482 | 51,8 |
Escolaridade | ||||||||||
Até 8 anos de estudo | 152 | 78,8 | 118 | 52,2 | 153 | 69,5 | 179 | 61,5 | 602 | 64,7 |
Mais de 8 anos de estudo | 41 | 21,2 | 108 | 47,8 | 67 | 30,5 | 112 | 38,5 | 328 | 35,3 |
Renda própria | ||||||||||
Sim | 145 | 75,1 | 170 | 75,6 | 162 | 73,6 | 196 | 67,4 | 673 | 72,4 |
Não | 48 | 24,9 | 55 | 24,4 | 58 | 26,4 | 95 | 32,6 | 256 | 27,6 |
Ocupação | ||||||||||
Sim | 123 | 65,1 | 121 | 56,5 | 91 | 45,7 | 140 | 51,1 | 475 | 54,2 |
Não | 66 | 34,9 | 93 | 43,5 | 108 | 54,3 | 134 | 48,9 | 401 | 45,8 |
Com quantas pessoas mora | ||||||||||
Morar sozinho | 6 | 3,1 | 12 | 5,3 | 4 | 1,8 | 12 | 4,1 | 34 | 3,7 |
Até 3 pessoas | 118 | 61,1 | 124 | 54,9 | 118 | 53,6 | 168 | 57,8 | 528 | 56,7 |
Mais de 3 pessoas | 69 | 35,8 | 90 | 39,8 | 98 | 44,6 | 111 | 38,1 | 368 | 39,6 |
Estilo de vida e condições de saúde | ||||||||||
Fumante | ||||||||||
Sim | 71 | 36,8 | 71 | 31,4 | 72 | 32,7 | 88 | 33,1 | 302 | 33,4 |
Não | 122 | 63,2 | 155 | 68,6 | 148 | 67,3 | 178 | 66,9 | 603 | 66,6 |
Uso de bebida alcóolica | ||||||||||
Nunca ou eventual | 156 | 96,3 | 221 | 98,7 | 207 | 98,6 | 277 | 98,9 | 861 | 98,3 |
2 ou + vezes por semana | 6 | 3,7 | 3 | 1,3 | 3 | 1,4 | 3 | 1,1 | 15 | 1,7 |
Presença de doença crônica** | ||||||||||
Sim | 115 | 60,8 | 142 | 64,3 | 140 | 65,1 | 190 | 66,4 | 587 | 64,4 |
Não | 74 | 39,2 | 79 | 35,7 | 75 | 34,9 | 96 | 33,6 | 324 | 35,6 |
Uso de medicamento nos últimos 15 dias | ||||||||||
Sim | 147 | 76,2 | 171 | 75,7 | 176 | 81,1 | 232 | 80,0 | 717 | 77,4 |
Não | 46 | 23,8 | 55 | 24,3 | 41 | 18,9 | 58 | 20,0 | 209 | 22,6 |
Saúde autorreferida | ||||||||||
Boa - excelente | 99 | 51,8 | 148 | 65,5 | 117 | 53,9 | 170 | 59,4 | 534 | 58,0 |
Razoável - ruim | 92 | 48,2 | 78 | 34,5 | 100 | 46,1 | 116 | 40,6 | 386 | 42,0 |
* Total varia devido a dados faltantes; **Artrite, asma, bronquite, depressão, diabetes, insuficiência renal crônica e hipertensão.
As médias da QV nos domínios foram diferentes entre as UBS do estudo, sendo que, em todos os domínios, a unidade Nordeste apresentou maior média e a Centro-Sul a menor (Tabela 2). As maiores médias foram observadas para o domínio relações sociais, tanto em cada UBS quanto na população total das quatro unidades, enquanto as menores ocorreram para o domínio ambiente. Neste domínio, a UBS do distrito Centro-Sul apresentou uma média de QV significativamente menor que as das unidades Venda Nova e Nordeste. A UBS Norte também apresentou menor média que a Nordeste no domínio ambiente (Tabela 2).
Tabela 2 Distribuição dos escores médios da qualidade de vida (QV) geral e em cada domínio do WHOQOL-bref para a população total (n = 930) e estratificada por Unidades Básicas de Saúde (UBS) de quatro distritos sanitários de Belo Horizonte - MG, 2014.
Domínios e QV geral | UBS (média ± desvio padrão) | ||||
---|---|---|---|---|---|
| |||||
Todas UBS | Centro-Sul | Nordeste | Norte | Venda Nova | |
Físico | 63,0 ± 18,1 | 61,0 ± 18,4 | 64,7 ± 18,5 | 62,1 ± 17,6 | 63,8 ± 18,0 |
Psicológico | 66,5 ± 16,3 | 64,9 ± 17,7 | 68,2 ± 15,7 | 66,5 ± 16,7 | 66,2 ± 15,4 |
Relações Sociais | 68,2 ± 20,4 | 67,2 ± 20,7 | 69,3 ± 20,7 | 68,0 ± 20,1 | 68,0 ± 20,3 |
Ambiente | 52,4 ± 15,5 | 48,0 ± 16,2* | 56,0 ± 16,0** | 51,6 ± 15,6* | 53,3 ± 13,7** |
QV Geral | 65,2 ± 19,2 | 63,9 ± 18,8 | 68,2 ± 19,4 | 64,0 ± 20,0 | 64,6 ± 18,4 |
*Média estatisticamente menor que a média da UBS Nordeste. **Média estatisticamente maior que a média da UBS Centro-Sul.
Notas: Teste estatístico: ANOVA (Games-Howell).
Na análise univariada, apresentada na Tabela 3, as médias da QV geral foram menores para indivíduos entre 40 e 59 anos (p < 0,001), com até oito anos de estudo (p < 0,001), sem renda própria (p = 0,003), sem ocupação (p < 0,001), fumantes (p = 0,015), com alguma doença crônica (p < 0,001), em uso de algum medicamento (p < 0,001) e com saúde autorreferida como razoável ou ruim (p < 0,001). Para os domínios físico, psicológico e relações sociais, as características associadas foram semelhantes àquelas da QV geral, diferindo apenas (i) na idade para o domínio físico, em que a menor média foi para indivíduos maiores de 60 anos (p < 0,001); (ii) no sexo para o domínio psicológico, em que as mulheres apresentaram menor média (p < 0,002); e (iii) no número de pessoas na residência para o domínio relações sociais, em que pacientes que viviam sozinhos apresentaram menor média (p = 0,041). No domínio ambiente as menores médias foram para as mulheres (p = 0,007), para os pacientes com idade entre 40 e 59 anos (p < 0,001), com até oito anos de estudo (p < 0,001), sem renda própria (p < 0,001), fumantes (p = 0,011), com presença de doença crônica (p = 0,004) e que autorreferiram sua saúde como razoável ou ruim (p < 0,001).
Tabela 3 Associação univariada entre as variáveis de exposição e a qualidade de vida (QV) em pacientes atendidos em Unidades Básica de Saúde (UBS) de quatro distritos sanitários de Belo Horizonte - MG, 2014
Variáveis | Escores WHOQOL-bref (Média (DP)) | ||||
---|---|---|---|---|---|
| |||||
QV Geral | Físico | Psicológico | Relações sociais | Ambiente | |
Sexo | |||||
Feminino | 65,0 (19,5) | 62,7 (18,4) | 65,6 (16,8) | 67,7 (21,1) | 51,7 (15,6) |
Masculino | 66,1 (17,8) | 64,5 (17,0) | 69,8 (13,4) | 70,0 (17,0) | 55,1 (14,6) |
Valor p | 0,450 | 0,230 | 0,002 | 0,195 | 0,007 |
Cor | |||||
Branca | 64,4 (20,1) | 61,7 (18,4) | 67,7 (15,2) | 69,1 (20,8) | 54,2 (15,3) |
Outras | 65,2 (18,9) | 63,2 (18,0) | 66,0 (16,5) | 67,8 (20,3) | 52,0 (15,3) |
Valor p | 0,622 | 0,280 | 0,244 | 0,467 | 0,095 |
Idade | |||||
18-39 | 69,8 (18,1) | 67,9 (16,5) | 68,2 (15,6) | 71,4 (19,8) | 52,6 (15,1) |
40-59 | 61,8 (19,5) | 59,9 (18,4) | 64,6 (17,1) | 63,7 (21,4) | 50,2 (15,9) |
> 60 | 62,2 (18,8) | 58,9 (18,1) | 66,2 (15,7) | 69,5 (18,2) | 55,8 (14,7) |
Valor p | < 0,001 | < 0,001 | 0,014 | < 0,001 | < 0,001 |
Viver com companheiro | |||||
Sim | 66,0 (17,9) | 63,1 (17,7) | 67,1 (15,5) | 69,5 (19,4) | 51,9 (14,5) |
Não | 64,4 (20,2) | 62,9 (18,4) | 65,8 (16,9) | 66,9 (21,2) | 52,8 (16,3) |
Valor p | 0,219 | 0,877 | 0,204 | 0,055 | 0,378 |
Escolaridade | |||||
Até 8 anos de estudo | 62,9 (19,0) | 60,2 (18,1) | 64,3 (16,3) | 66,3 (21,6) | 50,4 (15,1) |
Mais de 8 anos de estudo | 69,3 (18,7) | 68,2 (16,9) | 70,3 (15,4) | 71,4 (19,5) | 56,0 (15,3) |
Valor p | < 0,001 | < 0,001 | < 0,001 | < 0,001 | < 0,001 |
Renda própria | |||||
Sim | 66,3 (18,5) | 64,2 (17,3) | 67,8 (15,6) | 69,4 (19,9) | 54,1 (15,2) |
Não | 62,1 (20,4) | 59,8 (19,6) | 62,6 (17,3) | 64,5 (21,2) | 47,7 (14,8) |
Valor p | 0,003 | 0,001 | < 0,001 | 0,001 | < 0,001 |
Ocupação | |||||
Sim | 67,2 (18,0) | 66,2 (16,2) | 68,0 (15,6) | 69,2 (20,2) | 52,4 (15,4) |
Não | 62,2 (20,2) | 59,2 (19,4) | 64,4 (16,8) | 66,4 (20,8) | 62,3 (15,6) |
Valor p | < 0,001 | < 0,001 | 0,001 | 0,049 | 0,922 |
Com quantas pessoas mora | |||||
Morar sozinho | 65,4 (19,4) | 60,1 (18,9) | 67,1 (17,2) | 64,0 (26,0) | 57,3 (16,3) |
Até 3 pessoas | 64,8 (19,4) | 63,4 (17,6) | 67,0 (16,1) | 69,5 (20,0) | 52,6 (15,9) |
Mais de 3 pessoas | 65,6 (18,8) | 62,7 (18,7) | 65,5 (16,4) | 66,4 (20,1) | 51,6 (14,6) |
Valor p | 0,826 | 0,548 | 0,415 | 0,041 | 0,109 |
Fumante | |||||
Sim | 63,0 (19,7) | 60,8 (18,5) | 63,7 (16,9) | 64,8 (20,5) | 50,4 (14,8) |
Não | 66,3 (18,9) | 64,0 (17,8) | 67,7 (15,8) | 69,7 (19,9) | 53,2 (15,6) |
Valor p | 0,015 | 0,014 | 0,001 | 0,001 | 0,011 |
Uso de bebida alcoólica | |||||
Nunca ou eventual | 65,4 (18,9) | 63,2 (17,9) | 66,6 (16,1) | 68,4 (20,4) | 52,5 (15,2) |
2 ou + vezes por semana | 58,3 (26,1) | 57,7 (23,1) | 58,7 (22,7) | 62,7 (19,3) | 54,5 (18,1) |
Valor p | 0,151 | 0,238 | 0,063 | 0,286 | 0,612 |
Presença de doença crônica | |||||
Sim | 60,9 (19,7) | 58,7 (18,5) | 63,9 (16,9) | 65,6 (21,2) | 51,2 (15,7) |
Não | 72,8 (15,2) | 70,8 (14,2) | 71,0 (13,7) | 72,4 (18,1) | 54,3 (14,5) |
Valor p | < 0,001 | < 0,001 | < 0,001 | < 0,001 | 0,004 |
Uso de medicamento* | |||||
Sim | 63,0 (19,2) | 60,6 (18,2) | 65,4 (16,5) | 67,1 (20,2) | 51,9 (15,4) |
Não | 72,3 (16,8) | 71,2 (15,2) | 69,9 (14,9) | 71,5 (20,7) | 54,0 (15,5) |
Valor p | < 0,001 | < 0,001 | < 0,001 | 0,006 | 0,090 |
Saúde autorreferida | |||||
Boa - excelente | 73,5 (15,1) | 70,8 (14,4) | 71,3 (13,5) | 72,6 (18,7) | 56,5 (14,7) |
Razoável - ruim | 53,7 (18,0) | 52,3 (17,1) | 59,6 (17,4) | 62,0 (21,0) | 46,7 (14,7) |
Valor p | < 0,001 | < 0,001 | < 0,001 | < 0,001 | < 0,001 |
*Nos últimos 15 dias; DP: Desvio padrão.
Notas: Testes estatísticos: Teste “t” de student e ANOVA (Tukey para variâncias iguais presumidas e Games-Howell para variâncias iguais não presumidas).
Os resultados da análise de regressão multivariada estão apresentados na Tabela 4. Após a análise ajustada, renda própria e saúde autorreferida foram as únicas variáveis que permaneceram associadas à QV geral e à QV em todos os quatro domínios. Indivíduos com renda própria apresentaram de 2,7 a 5,5 pontos a mais nas médias da QV do que aqueles que dependem da renda de outras pessoas. Indivíduos que relataram sua própria saúde como razoável ou ruim diminuíram de 9,2 a 17,3 pontos nas médias da QV geral e nos quatro domínios, em relação àqueles que consideraram a saúde como boa ou excelente. Indivíduos com menos de oito anos de estudo apresentaram uma pior percepção na QV nos domínios físico, psicológico e ambiente, em comparação àqueles com escolaridade acima de oito anos. A presença de doença crônica esteve associada negativamente à QV geral e nos domínios físico e psicológico. O uso de medicamentos esteve associado somente à QV geral e no domínio físico. Indivíduos que relataram fazer uso de cigarro apresentaram menores médias que os não fumantes nos domínios psicológico e relações sociais. Morar em locais com mais de três pessoas na residência esteve negativamente associado ao domínio relações sociais, assim como viver sem companheiro. A variável sexo só permaneceu associada ao domínio psicológico, sendo que mulheres apresentaram pior percepção da QV do que homens. Observou-se associação negativa entre a QV no domínio físico e indivíduos sem ocupação. Em relação à idade, considerando como grupo de referência a faixa etária entre 18 a 39 anos, indivíduos entre 40 a 59 anos apresentaram pior percepção da QV no domínio relações sociais e indivíduos idosos demonstraram melhor percepção no domínio ambiente. Por fim, pacientes atendidos na UBS Centro-Sul tiveram pior percepção da QV no domínio ambiente do que aqueles na UBS Nordeste.
Tabela 4 Modelo multivariado final dos fatores associados à média de qualidade de vida (QV) em pacientes atendidos em Unidades Básica de Saúde (UBS) de quatro distritos sanitários de Belo Horizonte - MG, 2014.
Variáveis Risco vs. referência | Escores WHOQOL-bref | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
| |||||||
QV Geral | Físico | Psicológico | Relações sociais | Ambiente | |||
Média (IC95%) | Média (IC95%) | Média (IC95%) | Média (IC95%) | Média (IC95%) | |||
Sexo | |||||||
Mulher vs. homem | ------ | ------ | -3,3(-5,8;-0,8)** | ------ | ------ | ||
Idade (anos) | |||||||
40-59 vs. 18-39 | ------ | ------ | ------ | -5,5(-8,1;-2,9)*** | ------ | ||
> 60 vs. 18-39 | ------ | ------ | ------ | ------ | 4,9(2,5;7,3)*** | ||
Viver com companheiro | |||||||
Não vs. sim | ------ | ------ | ------ | -2,7(-5,3;-0,2)* | ------ | ||
Escolaridade (anos de estudo) | |||||||
< 8 vs. 8 ou mais | ------ | -2,5(-4,7;-0,2)* | -3,0(-5,2;-0,9)** | ------ | -3,1(-5,2;-1,0)** | ||
Ter renda própria | |||||||
Sim vs. não | 3,9(1,5;6,2)** | 2,7(0,1;5,2)* | 3,6(1,4;5,9)** | 4,4(1,5;7,2)** | 5,5(3,4;7,6)*** | ||
Ocupação | |||||||
Não vs. sim | ------ | -2,9(-5,2;-0,6)* | ------ | ------ | ------ | ||
Nº de pessoas na residência > | |||||||
3 vs. até 3 | ------ | ------ | ------ | -2,8(-5,4;-0,3)* | ------ | ||
Fumante | |||||||
Sim vs. não | ------ | ------ | -2,2(-4,3;-0,1)* | -2,8(-5,5;-0,1)* | ------ | ||
Doença crônica | |||||||
Sim vs. não | -6,0(-8,4;-3,7)*** | -5,8(-8,1;-3,5)*** | -3,9(-6,0;-1,7)*** | ------ | ------ | ||
Uso de medicamento | |||||||
Sim vs. não | -3,1(-5,7;-0,4)* | -4,6(-7,2;-2,1)*** | ------ | ------ | ------ | ||
Saúde autorreferida | |||||||
Razoável ou ruim vs. boa ou excelente | -17,3(-19,6;-15,0)*** | 15,1(-17,4;-12,9)*** | -9,8(-11,9; -7,7)*** | -9,8(-12,4;-7,2)*** | -9,2(-11,1;-7,2)*** | ||
UBS | |||||||
Centro-Sul vs. Nordeste | ------ | ------ | ------ | ------ | -4,3(-6,6;-2,0)*** |
*p < 0.05; **p < 0.01; ***p < 0.001.
Notas: Teste estatístico: Regressão Linear.
Neste estudo avaliou-se a QV percebida por usuários que buscaram atendimentos em quatro UBS do município de Belo Horizonte, com intuito de subsidiar o diagnóstico da situação de saúde da população atendida em serviços de APS. As características gerais da população encontradas neste estudo, como o predomínio de mulheres e a baixa escolaridade, assemelham-se àquelas observadas em outros estudos realizados com usuários do SUS no Brasil22,23. O mesmo ocorre em relação ao perfil de doenças crônicas, que foi semelhante àquele encontrado em um estudo realizado em três UBS do Rio Grande do Sul, no qual as doenças mais prevalentes encontradas foram as circulatórias, seguidas das mentais, endócrinas, osteomusculares e respiratórias12.
As médias da QV observadas nos quatro domínios e na QV geral foram menores do que aquelas comumente relatadas por outros autores. No entanto, o padrão da QV nos domínios foi semelhante ao de outros estudos brasileiros, com o de relações sociais apresentando a melhor média e o de ambiente apresentando a menor, geralmente por serem realizados em comunidades que estão em áreas de maior vulnerabilidade social12,15,17.
A vulnerabilidade social pode ser a razão da diferença para o domínio ambiente entre as UBS. Para diagnóstico da situação de saúde do município de Belo Horizonte, que envolve condições ambientais e sociais adversas, a Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte realiza, periodicamente, o cálculo do Índice de Vulnerabilidade à Saúde (IVS) conforme a distribuição dos setores censitários (SC)24. De acordo com a distribuição dos SC de Belo Horizonte por categoria de IVS, em 2012 observou-se que a região onde está situada a UBS Centro-Sul era considerada de elevado risco de vulnerabilidade, apresentando o maior IVS de todas as UBS incluídas no estudo, seguida pela UBS Norte, Venda Nova e Nordeste, sendo que essas duas últimas foram consideradas como baixo risco24. Um estudo observou que as condições de saúde de idosos de Belo Horizonte variavam segundo o IVS, sendo as piores condições associadas às áreas de elevado risco25. Podestá et al.15 também observaram que a localização da UBS influenciava na QV dos pacientes, sobretudo nas unidades localizadas em regiões periféricas. Uma vez que a menor média da QV foi observada para no domínio ambiente, destaca-se a importância de investimentos e políticas de desenvolvimento e planejamento urbano, visando uma melhora da QV de populações que vivem em áreas vulneráveis.
Após análise multivariada, a idade manteve-se associada à QV nos domínios relações sociais e ambiente. No domínio relações sociais, indivíduos entre 40 e 59 anos apresentaram pior percepção da QV que jovens adultos. Isso pode ser justificado pela concepção de que jovens adultos encontram-se na fase da vida na qual se atinge o pico funcional da rede de relacionamentos, enquanto que a entrada no mercado de trabalho, o casamento e os filhos tomam um tempo que antes era dedicado às amizades, sendo que o lazer de adultos mais velhos envolve mais a família do que os amigos26. No domínio ambiente, indivíduos idosos apresentaram melhor percepção da QV do que jovens adultos. Esse resultado também foi observado por outros estudos18,27e pode estar relacionado à provisão de ambientes mais adequados e seguros aos idosos, como instituições de longa permanência, uma vez que moradia e ambiente físico adequados têm influência positiva na QV do idoso28. No estudo de Vitorino et al.29, indivíduos idosos da comunidade apresentaram menor QV no domínio ambiente em comparação àqueles em instituições de longa permanência.
Os fatores socioeconômicos, como renda, escolaridade e ocupação, apresentam o mesmo padrão em relação à QV, uma vez que a baixa escolaridade está relacionada às desigualdades na distribuição de renda e menor inserção no mercado de trabalho30,31. Neste estudo, ter renda própria esteve associado a uma melhor QV geral e em todos os domínios. Resultados similares foram encontrados por Azevedo et al.12, que observaram que classes sociais mais baixas demonstraram pior QV em todos os quatro domínios. Esses resultados também foram encontrados em estudo realizado com mulheres do Irã, onde estar satisfeita com a própria renda resultou em melhor QV, também nos quatro domínios32. Para indivíduos com baixa escolaridade, a associação foi mais forte nos domínios psicológico e ambiente e não foi significativa para o relações sociais, sendo que este resultado também foi observado por outros autores, em estudo com idosos brasileiros33. Não estar ocupado, por sua vez, só esteve associado a uma pior percepção da QV no domínio físico, justamente aquele que inclui atividades da vida cotidiana e capacidade para o trabalho, corroborando com a concepção de que o trabalho também é algo que dá sentido à vida, eleva o status e impulsiona o crescimento do ser humano34.
Em relação ao sexo, as mulheres apresentaram pior percepção da QV do que homens em todos os domínios, mas apenas para o psicológico a diferença foi estatisticamente significativa. O mesmo resultado foi observado por outros autores19,27,35, e a relação entre sexo feminino e fatores psicossociais é bem relatada em estudos da literatura, nos quais as mulheres reportaram ter mais sentimentos negativos, baixa autoestima e depressão do que homens36,37. Viver sem companheiro esteve associado a uma menor percepção da QV no domínio relações sociais, assim como observado por outros autores12,19,38. Indivíduos sem parceiros tendem a ter pior desempenho em aspectos estruturais das redes sociais de apoio, como menor contato com familiares e amigos, além de baixa frequência de ajudas recebidas e prestadas39.
No presente estudo, o número de pessoas por residência variou de zero a 15, com uma média de 3,27 pessoas por domicílio, sendo muito próxima à média observada para o Brasil (3,3), de acordo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 201040. Os dados encontrados nas quatro UBS avaliadas demonstraram que morar com mais de três pessoas no mesmo domicílio esteve associado a uma pior percepção da QV no domínio relações sociais. O Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (United Nations Human Settlements Programme – UN-HABITAT) considera a “área suficiente para viver” como uma dimensão a ser avaliada para monitoramento dos assentamentos precários, sendo preconizado não mais que duas pessoas compartilhando o mesmo dormitório, a fim de se criar um espaço adequado para o desenvolvimento das relações humanas e da interação social40,41.
Quanto aos hábitos e estilo de vida, ser fumante esteve associado a uma pior QV nos domínios psicológico e relações sociais. Em concordância, outros estudos observaram que tabagistas apresentam menores índices de QV quando comparados a indivíduos não fumantes, principalmente nos domínios psicológico e relações sociais, sendo que quanto maior o grau de dependência do tabaco, maior o prejuízo na QV42-44. No domínio psicológico, esse resultado pode ser justificado pelo fato de que alguns sintomas psiquiátricos, como ansiedade e depressão, têm relação com o tabagismo e poderiam resultar em pior QV44-47. Em relação ao domínio relações sociais, o tabagismo passou de comportamento social aceitável para um hábito indesejável socialmente, o que tem exercido uma influência negativa nas relações sociais48.
Quanto às condições de saúde, a presença de doenças crônicas esteve associada a uma pior QV geral e nos domínios físico e psicológico. As doenças crônicas são mais propensas a limitar as atividades diárias, devido aos sintomas físicos, como a dor e o desconforto, o que pode diminuir a capacidade funcional do indivíduo e refletir negativamente na sua QV, sobretudo no domínio físico19,49-52. Da mesma forma, no domínio psicológico as limitações impostas pela doença crônica impactam na saúde mental, na percepção sobre os sentimentos e na autoimagem do indivíduo, o que pode diminuir a sua QV significativamente49-51. Assim como observado no presente estudo, têm-se demonstrado uma associação negativa entre tratamento farmacológico e QV no domínio físico. Uma possível explicação seria o fato do uso de medicamentos estar associado a menor autonomia do paciente, que por sua vez diminui a QV53-55. É importante ressaltar que depender de medicamentos ou tratamentos pode ser visto tanto como um fator de piora da QV pela diminuição da autonomia, como de melhora pelo efeito benéfico que alguns medicamentos e/ou tratamentos proporcionam56.
Quanto à saúde autorreferida, a ter razoável ou ruim esteve associado a pior qualidade de vida na QV geral e em todos os domínios do WHOQOL-bref, sendo que a QV geral, que corresponde às facetas “avaliação da qualidade de vida” e “satisfação com a saúde” foi a que esteve mais fortemente associada a essa autopercepção negativa. Azevedo et al.57 verificaram que os indivíduos que se percebem como saudáveis apresentam melhor avaliação da QV global. A autopercepção de saúde é considerada um bom preditor de mortalidade e de outros indicadores de saúde, e reflete a percepção do indivíduo sobre sua saúde e inclui as dimensões biológicas e psicossociais58. Em comparação com os demais domínios, o físico apresentou a maior associação negativa entre a autopercepção de saúde como razoável ou ruim e a QV. Isso pode estar relacionado à presença de doenças crônicas ou aos hábitos de estilo de vida, como o tabagismo e o sedentarismo, que estão associados à autopercepção de saúde do indivíduo como ruim59. A saúde pode ser determinada e condicionada, na percepção do indivíduo, por uma série de fatores determinantes da saúde, como as condições de vida e trabalho, fatores psicossociais, econômicos, culturais e comportamentos individuais57,60. Esses eixos que integram os determinantes da saúde estão presentes nas características dos domínios psicológico, relações sociais e ambiente, relacionando-se com os achados do presente estudo, no qual houve associação entre autopercepção de saúde razoável ou ruim com pior QV nos mesmos.
Os resultados obtidos neste estudo evidenciam diferenças significativas na avaliação da QV entre os indivíduos atendidos em quatro UBS do município de Belo Horizonte quanto a aspectos socioeconômicos, clínicos e de hábitos de vida. Esses resultados devem ser interpretados com precaução devido à dificuldade em estabelecer uma relação de causalidade direta, uma vez que se trata de um estudo de desenho do tipo transversal. A presença de doenças agudas no momento da entrevista não foi investigada e não foi possível avaliar sua influência na QV. Entretanto, o uso de medicamentos e a saúde autorreferida podem ser indicadores de enfermidades ou de mal-estar, sugerindo que a presença de doenças agudas no momento da entrevista possivelmente contribuiu para uma pior percepção de QV. Outra limitação se refere à própria natureza dos questionários utilizados, incluindo o WHOQOL-bref, pois são instrumentos de autorrelato sujeitos a viés de resposta, ou seja, tendências de distorção da resposta para uma direção favorável, negando, assim, traços e comportamentos socialmente indesejáveis. No entanto, o WHOQOL-bref é um instrumento prático e com propriedades psicométricas satisfatórias, além de ser o instrumento de avaliação de QV mais difundido mundialmente e recomendado pela OMS. Pode-se inferir, portanto, que as percepções de pior QV relacionaram-se com piores condições de saúde e habitação, baixa escolaridade e renda familiar, problemas nas relações sociais e condições psicológicas, sugerindo falta de recursos de saúde, cultura, educação, lazer, saneamento, entre outros, que afetam diretamente a QV das pessoas.
A maioria dos estudos sobre QV foi realizada em populações específicas, como idosos ou indivíduos com algum perfil de saúde definido, sendo escassos estudos realizados na população geral atendida em serviços de APS. Este estudo destaca a importância de ações para a melhoria da QV em usuários da Atenção Primária, a serem promovidas tanto por profissionais de saúde quanto por gestores públicos. Dentre essas ações, salientam-se (i) campanhas educativas, como a elaboração de cartilhas e fortalecimento e divulgação de grupos operativos nas UBS; (ii) capacitação de profissionais de saúde e ampliação dos recursos humanos nos serviços de saúde, como psicólogos, fisioterapeutas, farmacêuticos, entre outros; (iii) aprimoramento de políticas públicas quanto à infraestrutura urbana, saneamento, além de suporte e promoção social. Essas medidas podem trazer benefícios e refletir positivamente na qualidade de vida dos indivíduos e devem ser priorizadas pelos atores envolvidos no cenário da Atenção Primária à Saúde.