versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.4 Rio de Janeiro abr. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018234.09292016
O desenvolvimento de estudos sobre aspectos da Qualidade de Vida (QV) advém da necessidade de compreender os multifatores que compõem os seres humanos, e como cada fator interfere na representação do bem-estar total1. Paulatinamente, o crescimento do número de pesquisas e do interesse pelo tema motivou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a formar um grupo de estudos, que definiu QV como: “a percepção do indivíduo de sua posição na vida, no contexto da cultura e sistema de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações”2.
Inicialmente, a QV esteve inter-relacionada à saúde sendo, em muitos casos, utilizada como sinônimo3. Atualmente, a saúde é determinada socialmente, portanto, compreendida a partir de determinantes individuais –como idade, sexo e fatores genéticos– até os macrodeterminantes –como as condições de vida e de trabalho4–, a saúde então passa a envolver o trabalho, a fim de obter melhores níveis de QV. Ademais, a atividade laboral se encontra diretamente relacionada às condições de saúde e qualidade de vida dos profissionais e exerce influência nas demais pessoas envolvidas nesse processo5.
Ao considerar a necessidade de compreender a relação entre a QV e o trabalho foi criada a abordagem da Qualidade de Vida no Trabalho (QVT)6. O estudioso Walton, considerado um expoente na temática, define QVT como sendo “calcada em humanização do trabalho e responsabilidade social da empresa, que envolve o entendimento de necessidades e aspirações do indivíduo, através da reestruturação do desenho de cargos e novas formas de organizar o trabalho, aliado a uma formação de equipes de trabalho com maior poder de autonomia e melhoria do meio organizacional”7.
Reputa-se, dessa forma, o exercício laboral como uma atividade de cunho social, que exerce sobre os trabalhadores a função de formar identidade e desenvolvimento pessoal5. Contudo, mesmo o trabalho sendo conceituado como um dos eixos centrais na vida da maioria das pessoas6, salienta-se a dificuldade dos trabalhadores em conciliar a qualidade de vida e as atividades laborais8, principalmente quando o cenário laboral são as penitenciárias brasileiras, pois é importante salientar que a estrutura física destinada à realização da atividade laboral interfere na saúde e satisfação dos trabalhadores9.
O trabalho em saúde foi inserido nos presídios brasileiros a partir da publicação do Plano Nacional de Saúde do Sistema Penitenciário, em 2005 e, atualmente, com a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional – PNAISP, publicada em 2014, que insere uma unidade de saúde dentro das penitenciárias, com equipe multidisciplinar formada por médico, enfermeiro, técnico de enfermagem, odontólogo, assistente de consultório dentário, psicólogo e assistente social, na qual sua composição seja adequada à quantidade de apenados presentes nas unidades10.
De acordo com a PNAISP, o processo de trabalho dos profissionais de saúde deve objetivar a inclusão dos apenados no Sistema Único de Saúde–SUS, a realização da assistência fundamentada na intersetorialidade, a organização dos sistemas de saúde, a regionalização, a universalidade, a equidade, a integralidade, a resolubilidade da assistência e o respeito à cidadania, tendo em vista o reconhecimento dos variados problemas de saúde que decorrem da situação de confinamento10.
Entretanto, o cenário penitenciário nacional põe em risco a biossegurança e segurança dos profissionais11, e estes ainda desempenham suas atividades laborais enfrentando os problemas recorrentes à atuação do trabalho no Sistema Único de Saúde. Esse contexto, quando articulado, apresenta-se como entrave para a execução do trabalho, comprometem a QVT dos profissionais nesses locais, ao passo que geram estresse ocupacional.
Na Paraíba, as condições físicas das unidades de saúde também não são adequadas para a execução do trabalho. Em pesquisa realizada, apreendeu-se que os consultórios de enfermagem e a farmácia apresentaram avaliações inadequadas no que diz respeito a área física, iluminação, ventilação e ruído, em que este último é o de pior avaliação, ademais ainda há insuficiência de materiais para pequenas cirurgias e blocos de receituários12.
Diante dos aspectos refletidos, os estudos que se propõem avaliar a QVT são capazes de apreender elementos essenciais no ambiente laboral, subsidiando a criação de programas e políticas que visam aumentar os níveis de QVT entre os profissionais, contrapondo-se à perspectiva mecanicista do trabalho13. Dessa forma, o presente estudo objetivou mensurar a QVT dos profissionais de saúde nas penitenciárias do sistema prisional do estado da Paraíba e verificar quais os fatores associados à QVT desses profissionais.
Trata-se de uma pesquisa exploratória descritiva e analítica, com abordagem metodológica quantitativa e transversal, realizada em penitenciárias do estado da Paraíba. Para a seleção do cenário da pesquisa foram elencados critérios de inclusão. A penitenciária deveria ter em sua estrutura física unidade de saúde, com equipe de profissionais, conforme o PNAISP e possuir número de apenados inferior a 1000, apenas seis penitenciárias seguiram estes critérios. Entre as seis unidades prisionais, uma destas foi selecionada para a realização do teste piloto e as demais (cinco penitenciárias) participaram da pesquisa.
Os sujeitos da pesquisa foram os profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, odontólogos, auxiliares de consultório dentário, psicólogos e assistentes sociais) que, no período destinado à coleta de dados, estavam desenvolvendo suas atividades laborais de atenção à saúde dos apenados em penitenciárias do estado da Paraíba, selecionadas para o estudo, há no mínimo seis meses. A população foi composta de vinte e nove profissionais de saúde.
A pesquisa de campo teve como objetivo coletar os dados através do instrumento auto-aplicável denominado TQWL-42 (Total Quality of work Life – Qualidade de Vida no Trabalho Total). Este instrumento foi criado no Brasil e validado para uso entre profissionais. Sua escolha deu-se por tratar de forma específica a esfera ambiente, importante aspecto para a QVT, principalmente quando o cenário é o sistema penitenciário. A primeira parte do instrumento compreende questões sobre idade, sexo, estado civil, escolaridade e tempo de serviço. A segunda parte foi constituída por 42 questões, subdivididas em seis esferas: A- Biológica/Fisiológica, B- Psicológica/Comportamental, C- Sociológica/Relacional, D- Econômica/Política, E- Ambiental/Organizacional e F- Autoavaliação da qualidade de vida no trabalho3. As questões pertencentes às esferas supracitadas são objetivas e suas respostas estão dispostas em escala tipo Likert.
Os dados da pesquisa foram analisados através do uso de programas estatísticos. A princípio, foram tabulados os dados referentes ao perfil socioeconômico e demográfico dos participantes. Posteriormente, os dados coletados através do instrumento TQWL-42 foram agrupados e analisados descritivamente, conforme sintaxe estabelecida pelo autor, por meio dos cálculos dos escores das esferas, para a mensuração dos níveis de QVT.
Para a avaliação qualitativa dos níveis de QVT, foi utilizada a escala proposta por Timossi et al.14, em que são classificados os níveis de QVT, de acordo com o cálculo do escore “Total” da Qualidade de Vida (média entre todos as esferas). A escala proposta pelos autores sugere que o nível central (escore 50) representa o nível neutro em relação a QVT, assim os valores compreendidos acima correspondem aos níveis satisfatório e muito satisfatório, por quanto, os valores abaixo refletem os níveis insatisfatório e muito insatisfatório.
Por fim, para verificar as associações estatísticas entre a QVT e os dados sociodemográficos e identificar quais esferas influenciam na QVT dos ASP foram realizadas regressões lineares múltiplas, com uso de variáveis dummy para as variáveis categóricas. A primeira verificou a relação entre a QVT (variável dependente) e os dados sociodemográficos (variáveis independentes). A segunda verificou a existência de uma relação significativa entre a autoavaliação da QVT (variável dependente) e as esferas. Foram verificados os pressupostos da ANOVA através da família de transformação ótima de Box-Cox15 e o teste de Hartley16 foi aplicado para verificar a homogeneidade de variâncias residuais.
Todos os sujeitos da pesquisa, antes de responderem o instrumento, foram esclarecidos sobre informações acerca do projeto, posteriormente assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE e, a fim de garantir o anonimato dos sujeitos, foi criado um sistema de identificação. O protocolo de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual da Paraíba.
A Tabela 1 apresenta a caracterização dos profissionais de saúde do sistema penitenciário. A maioria foi do sexo feminino – 20 (69%), apresentaram-se nas faixas etárias de 35 a 44 anos, 8 (27,6%) e de 45 a 54 anos, 6 (20,7%), afirmaram estar casados ou mantendo união estável 17 (58,6%), possuíam escolaridade em nível de pós-graduação completa 12 (41,4%) e estavam desempenhando suas funções no sistema penitenciário há mais de 6 anos 9 (31,0%).
Tabela 1 Caracterização dos profissionais de saúde do sistema penitenciário em relação à avaliação da Qualidade de Vida no Trabalho, Paraíba, Brasil, 2015.
Variáveis | n | % | Bio/Fisio | Psic/Comp | Socio/Rel | Eco/Pol | Amb/Org | Auto avaliação | Avaliação global | ||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Média | Média | Média | Média | Média | Média | Média | Avaliação* | ||||
Sexo | |||||||||||
Masculino | 9 | 31,0 | 69,00 | 75,50 | 59,25 | 56,25 | 52,75 | 62,50 | 63,57 | S | |
Feminino | 20 | 69,0 | 76,75 | 78,00 | 69,25 | 65,25 | 66,25 | 76,25 | 71,91 | S | |
Grupo etário | |||||||||||
25 a 34 | 7 | 24,1 | 81,50 | 83,75 | 77,50 | 71,25 | 63,75 | 78,50 | 76,17 | MS | |
35 a 44 | 8 | 27,6 | 68,75 | 71,25 | 59,75 | 58,50 | 65,25 | 65,75 | 64,80 | S | |
45 a 54 | 6 | 20,7 | 75,50 | 77,00 | 66,50 | 65,50 | 60,00 | 70,75 | 69,27 | S | |
> 55 | 8 | 27,6 | 73,00 | 77,50 | 62,50 | 56,50 | 61,00 | 73,50 | 67,38 | S | |
Escolaridade | |||||||||||
Ensino médio completo | 3 | 10,3 | 88,25 | 77,25 | 72,50 | 76,50 | 81,00 | 87,50 | 60,24 | S | |
Ensino s. incompleto | 4 | 13,8 | 68,75 | 64,50 | 56,25 | 43,75 | 65,75 | 62,50 | 79,77 | MS | |
Ensino s. completo | 10 | 34,5 | 70,75 | 77,00 | 60,25 | 56,75 | 56,25 | 65,00 | 65,46 | S | |
Pós-Graduação completa | 12 | 41,4 | 74,00 | 80,50 | 71,50 | 67,50 | 60,50 | 75,00 | 70,68 | S | |
Tempo de serviço | |||||||||||
< 2 anos | 6 | 20,7 | 71,25 | 78,50 | 60,25 | 57,25 | 56,75 | 66,75 | 66,92 | S | |
3 a 4 anos | 8 | 27,6 | 73,75 | 76,00 | 71,00 | 68,25 | 62,00 | 70,25 | 70,31 | S | |
5 a 6 anos | 6 | 20,7 | 80,50 | 86,75 | 80,00 | 75,00 | 75,25 | 83,25 | 79,74 | MS | |
> 6 anos | 9 | 31,0 | 72,75 | 71,00 | 56,50 | 52,75 | 57,50 | 69,50 | 62,11 | S | |
MÉDIA ESFERAS | 74,46 | 77,37 | 67,07 | 63,38 | 63,05 | 71,99 | 69,55 | ||||
AVALIAÇÃO ESFERAS* | S | MS | S | S | S | S | S |
Fonte de pesquisa.
*S = satisfatório; MS = muito satisfatório.
A esfera Psicológica/Comportamental apresentou a melhor avaliação entre os profissionais de saúde (77,37 pontos), enquanto que a esfera ambiental/organizacional obteve a mais baixa avaliação (63,05 pontos). A esfera que traduziu a autoavaliação da Qualidade de Vida no Trabalho obteve média igual a 71,99 pontos e a avaliação global da QVT foi de 69,55 pontos (Tabela 1).
Posteriormente, dando sequência às análises, foram realizadas regressões lineares múltiplas. A partir dos histogramas e do diagrama de dispersão dos resíduos padronizados, verificou-se que a distribuição das variáveis seguia os pressupostos de uma distribuição normal. Na tabela 2, observa-se as estimativas dos parâmetros modelo de regressão ajustado aos dados. O modelo foi adequado levando-se em consideração a variável dependente QVT dos profissionais de saúde do sistema penitenciário e variáveis independentes: sexo, idade, tempo de serviço, escolaridade e estado civil. Na sequência, observou-se que as variáveis independentes: idade, estado civil e tempo de serviço foram não significativas (p-valor > 0,10) para representar a QVT e as variáveis sexo e escolaridade mostraram-se, estatisticamente, significativas (p-valor < 0,10), conforme apresentado na Tabela 2.
Tabela 2 Estimativas dos parâmetros do modelo de regressão linear múltipla e seus respectivos desvios padrão, teste t e o correspondente p valor para a variável dependente QVT dos Profissionais de saúde e variáveis independentes (idade e tampo de serviço), Paraíba, Brasil, 2015.
Coeficientes | Estimativa | Desvio padrão | Teste t | p-valor* |
---|---|---|---|---|
Intercepto (β0) | 3,0726 | 0,3092 | 9,937 | <0,001 |
Sexo Feminino (β1) | 0,3374 | 0,1874 | 1,800 | 0,0844 |
Escolaridade Superior incompleto (β2) | 0,8125 | 0,3254 | 2,497 | 0,0198 |
Escolaridade Superior completo (β3) | 0,3367 | 0,2957 | 1,139 | 0,2660 |
Escolaridade Pós-graduação completa (β4) | 0,5658 | 0,2820 | 2,006 | 0,0562 |
*Significativo a p < 0,10.
As variáveis independentes, sexo e escolaridade, são variáveis qualitativas nominais que corroboram para a utilização do modelo de regressão com variáveis dummy. Mediante a especificação de uma equação de regressão com variáveis dummy é sempre possível saber, através da realização de Testes T ou F, qual é a origem da variabilidade.
Para a variável sexo, adotou-se como nível de referência 0 –masculino. Pode-se observar (Tabela 2) que, em média, os indivíduos do sexo feminino possuem uma QVT maior quando comparados aos indivíduos do sexo masculino.
Com relação a variável escolaridade, adotando-se como nível de referência o ensino médio tem-se que, em média, os indivíduos que têm o superior incompleto e pós-graduação possuem uma QVT maior em comparação aos indivíduos que cursaram apenas o ensino médio.
A Tabela 3 demonstra as estimativas dos parâmetros do modelo de regressão ajustado aos dados, levando-se em consideração que a variável dependente foi faceta F (autoavaliação da QVT) e as variáveis independentes: esfera A Biológica/Fisiológica; esfera B Psicológica/Comportamental; esfera C Sociológica/Relacional; esfera D Econômica/Política e esfera E Ambiental/Organizacional.
Tabela 3 Estimativas dos parâmetros do modelo de regressão linear múltipla e seus respectivos desvios padrão, teste t e o correspondente p valor para a variável dependente autoavaliação da QVT dos profissionais de saúde e variáveis independentes (esferas A e E), Paraíba, Brasil, 2015.
Coeficientes | Estimativa | Desvio padrão | Teste t | p-valor* |
---|---|---|---|---|
Intercepto (β0) | 0,037 | 0,643 | 0,057 | < 0,001 |
Esf A – Bio (β1) | 0,619 | 0,191 | 3,235 | 0,003 |
Esf E – Amb (β2) | 0,391 | 0,148 | 2,633 | 0,014 |
*Significativos a p-valor < 0,10.
Observou-se que as variáveis independentes: esfera B Psicológica/Comportamental; esfera C Sociológica/Relacional e esfera D Econômica/Política foram não significativas (p-valor > 0,05) para representar a QVT e as variáveis A Biológica/Fisiológica e E Ambiental/Organizacional mostraram-se estatisticamente significativas (pvalor < 0,10), conforme apresentado na Tabela 3.
A situação social e demográfica interfere na QVT percebida entre os trabalhadores. Segundo este estudo, os profissionais do sexo feminino apresentaram maiores médias de QVT em relação aos profissionais do sexo masculino, resultado diferente daquele proposto por Costa et al.17. Para os autores, a percepção de menores níveis de QVT entre mulheres é decorrente dos aspectos usuais do cotidiano feminino, como a dupla ou tripla jornada de trabalho. Em relação à QVT e a idade, profissionais mais jovens revelaram as melhores médias, o que corrobora com os resultados obtidos por Kujala et al.18, em pesquisa realizada no Norte da Finlândia, com diversas classes profissionais. Os autores afirmam que profissionais mais jovens percebem melhores perspectivas de futuro e maiores índices de capacidade para o trabalho, dessa forma, encontram-se mais satisfeitos no ambiente laboral.
Ao considerar a QVT e a escolaridade, os resultados descritivos desta pesquisa e a regressão linear múltipla demonstraram que profissionais com menos anos de estudo apresentaram menores níveis de QVT. Há evidencias que a escolaridade não interfere apenas na QVT, mas na qualidade de vida geral dos profissionais, indivíduos que possuem baixa escolaridade ou não são alfabetizados apresentam menores médias de QV quando comparadas às pessoas que possuem níveis mais elevados de escolaridade19, pois estes trabalhadores tendem a enfrentar situações mais complexas no âmbito laboral e na vida contidiana20.
O escore médio referente à autoavaliação da QVT mostrou-se semelhante à avaliação global, ambas demonstraram grau de satisfação entre os profissionais de saúde. Percebe-se que bons níveis de QVT estão intimamente relacionados ao prazer percebido pelo profissional no âmbito do trabalho, porquanto, apreende-se que a grande tendência entre as organizações é a modificação do exercício laboral, centrado no dever/atividade, para práticas que estimulem sentimentos positivos entre os trabalhadores6.
Ademais, a satisfação com o trabalho não se relaciona apenas a fatores ocupacionais, mas também com aspectos pessoais de vida do trabalhador. Neste sentindo, a visão minimalista da atividade laboral, do profissional e dos programas de QVT deve dar espaço a um novo conceito de satisfação do trabalhador, em que todas as esferas são essenciais e o foco é a QVT17.
Entre as esferas mais importantes, destaca-se a biológica/fisiológica –composta pelos aspectos de disposição física e mental, capacidade para o trabalho, tempo de repouso e serviços de saúde e assistência social– que apresentou, na regressão linear múltipla, significância estatística em relação à autoavaliação da QVT e foi avaliada como satisfatória, com tendência a muito satisfatória, pelos profissionais de saúde.
Essa esfera tem relação direta com o absenteísmo do profissional no ambiente laboral, licenças ou trocas de setor produtivo e é capaz de reduzir a produtividade, bem como a qualidade dos serviços prestados21. Em pesquisa realizada com enfermeiros, em centros médicos da Croácia, com o objetivo de relacionar a qualidade de vida com a satisfação no trabalho, observou-se que o domínio físico representa grande associação com a percepção do trabalhador sobre a sua capacidade para o desempenho de suas funções22.
A capacidade para o trabalho e a disposição física e mental também pode ser prejudicada a partir da escassez de horas de repouso. Ainda que não esteja estabelecida uma carga horária que seja incapaz de resultar em problemas de saúde físico e mental ao profissional, é fundamental respeitar a legislação vigente, pois há redução do tempo de sono e aumento do nível de fadiga e de estresse23. Este último é capaz de criar uma situação singular na vida do trabalhador, pode influenciar as demais dimensões do ser humano, como a física, psicológica e social21.
Ainda, em referência a esfera biológica/fisiológica, a garantia de assistência à saúde e ao social para garantir o cuidado é fundamental e essa necessidade nem sempre é sanada pelo poder público. Em pesquisa de campo, realizada no sistema penitenciário de Minas Gerais, percebe-se a falta de assistência à saúde física, mental e social destinada à maioria dos trabalhadores, e esta realidade torna-se ainda mais preocupante, quando se compreende que esta condição está associada ao adoecimento dos profissionais24.
Dessa forma, é imperativo o oferecimento de assistência à saúde integral a esses profissionais, para que possam expor problemas e necessidades sentidos no local de trabalho, a fim de obter suporte para solucionar os entraves vivenciados. Pois o adoecimento, no que concerne à saúde mental, é comum entre os profissionais do sistema penitenciário, em decorrência do local de trabalho insalubre, da forte pressão, da vigilância constante e da violência, que são aspectos que permeiam o cotidiano laboral de trabalhadores do sistema penitenciário25.
A esfera psicológica/comportamental foi avaliada com grau de muito satisfatório entre os profissionais de saúde. Nesta esfera foi avaliada a autoestima, significância da tarefa, feedback e desenvolvimento pessoal e profissional. A autoestima dos profissionais de saúde e o reconhecimento da significância da tarefa são aspectos importantes e sensíveis no cotidiano dos profissionais de saúde no sistema penitenciário. O número de críticas e denúncias que o sistema penitenciário brasileiro tem sido alvo ao longo dos anos é crescente, a maior parte destas foi empreendida pelas famílias dos apenados e pelo sistema de comunicação e imprensa, no que concerne a aplicação de penas desumanas e tratamentos inadequados aos apenados, que inclui a desassistência à saúde26.
Nesse sentido, as autoavaliações dos profissionais são de suma importância para o processo de trabalho, pois o sentimento de impotência, que pode ser gerado a partir da auto-reflexão sobre a importância do seu trabalho neste cenário, é capaz de desestimular as ações e acarretar sentimentos negativos frente aos entraves vivenciados por esses profissionais de saúde que, alocados no sistema penitenciário, nem sempre conseguem garantir o direito a saúde da população carcerária.
É importante ressaltar que o feedback advindo das gerências, também contribui para o processo de trabalho e deve ser reconhecido pelos profissionais como uma estratégia para regular a atenção desenvolvida, ao mesmo tempo em que contribui para a orientação das práticas e seleção daquelas que apresentaram resultados mais eficientes, com a finalidade de conferir valor aos profissionais e seu processo de trabalho27.
Assim como as avaliações e o feedback, o desenvolvimento profissional é um importante fator para o desenvolvimento de melhores processos de trabalho. Contudo, ainda representa um entrave para os trabalhadores de saúde no desempenho da assistência, sobretudo no âmbito penitenciário, visto que a queixa referente à falta de formação específica para a atuação neste cenário, que apresenta grandes especificidades, é recorrente28.
A capacidade intelectual advinda da aquisição de novos saberes e práticas, bem como o desenvolvimento de novas habilidades e conhecimentos, é convertida em oportunidades de mudança de hábitos, que podem e devem primar pela saúde dos trabalhadores, posto que minimiza comportamentos de risco e fornece empoderamento ao profissional para enfrentar as adversidades do cotidiano laboral, o que propicia melhoras na percepção sobre sua QVT e na assistência oferecida21. É necessário, portanto, que haja maior investimento do Estado para a criação de cursos de educação permanente para os profissionais de saúde pertencentes às EPEN brasileiras.
A esfera sociológica/relacional, avaliada como satisfatória pelos participantes da pesquisa, é formada pelos aspectos liberdade de expressão, autonomia, tempo de lazer e relações interpessoais. A forma como os profissionais de saúde relaciona-se entre si e com os demais impactam na assistência prestada e na saúde do trabalhador, uma vez que as relações conflituosas no ambiente de trabalho, além de representar um entrave para a assistência em saúde, contribuem para o desenvolvimento da síndrome de Burnout, que pode ser compreendida como a incapacidade do profissional para desenvolver suas funções29.
Assim, o entrosamento entre os profissionais, além de ser essencial para que o trabalho em equipe e multidisciplinar seja capaz de garantir o atendimento integral às pessoas assistidas, devido à necessidade do extenso entrosamento, da comunicação orientada e do entendimento recíproco entre os diferentes profissionais de saúde30, é fundamental para garantir a autonomia e a liberdade de expressão.
Sobre esses aspectos, embora tenham se apresentado com índices de satisfação entre os profissionais, a falta de liberdade e autonomia para a realização da assistência são apontados como entraves para as ações de saúde no sistema penitenciário. Pois há a presença permanente do Agente de Segurança Penitenciária (ASP) durante o atendimento e, ainda, percebe-se a valorização dos aspectos relativos à segurança e disciplina, em detrimento do atendimento de saúde31.
Ademais, a falta de autonomia no ambiente laboral torna-se um aspecto deletério da QVT, porquanto a desvalorização das competências pessoais dos profissionais, por parte da organização, afeta sentimentos como o comprometimento com o trabalho, a satisfação para a realização das atividades laborais e, por conseguinte, a QVT e a produtividade32.
Diante disso, para que os profissionais possam desenvolver suas ações, em meio ao ambiente eminentemente repressor e onde a segurança/vigilância são prioridades, é fundamental que a EPEN reconheça as especificidades do processo de trabalho nas penitenciárias, com o objetivo de adequar as práticas e garantir a assistência à saúde dos apenados19.
Há a possibilidade dos profissionais que atuam nos presídios manterem outros vínculos empregatícios, assim como grande parte dos trabalhadores do SUS33. E o exercício de outros vínculos empregatícios pode estar relacionado ao grau de neutralidade com que os profissionais desta pesquisa avaliaram o tempo de lazer fora do ambiente do trabalho.
Tem-se o reconhecimento que a carga de trabalho do profissional provoca grande interferência no tempo que esta pessoa pode dispensar às atividades de lazer e, por consequência, às que agregam alegria e sensação de bem-estar a sua vida cotidiana33. Talvez a solução estaria na melhoria das remunerações destes profissionais que, por sua vez, desencorajaria a multiplicidade de vínculos.
A esfera econômica/política, composta pelos aspectos segurança do emprego, recursos financeiros, benefícios extras e jornada de trabalho, foi avaliada como grau de satisfatório entre os profissionais de saúde. Em pesquisa realizada no âmbito penitenciário no estado do Rio de Janeiro, com a categoria de enfermagem, mostrou-se que grande parte desses profissionais tinha ingressado no sistema prisional em decorrência da estabilidade relativa ao concurso público31.
Outro aspecto que contribui para a satisfação dos profissionais nessa esfera é a jornada de trabalho desenvolvida nas penitenciárias, apenas um turno diário, que deve ser de atuação efetiva dos profissionais e, para que isto se torne realidade, alterações no processo de trabalho estão sendo empreendidas nas organizações, com o objetivo de fomentar a motivação e o entusiasmo entre as pessoas que trabalham34.
Aliada a jornada de trabalho, a remuneração deve ser justa e adequada à função desempenhada. Embora, atualmente, os profissionais não almejem apenas altos salários, mas prazer junto à atividade laboral, a remuneração injusta/inadequada apresenta-se como um importante fator para a desmotivação entre os trabalhadores e, assim, baixo rendimento e influência negativa sobre a QVT6. Ao passo que, salários satisfatórios e benefícios extras impactam positivamente sobre o comprometimento do profissional com sua atividade laboral e os sentimentos positivos relacionados ao trabalho21.
No momento atual, é fundamental fornecer benefícios aos trabalhadores, a exemplo, estímulo a educação permanente, pois as formas de trabalho sofrem novas significações na perspectiva de valorizar o potencial do profissional, em busca da eficiência, através de capacitação, para a atuação frente aos desafios que permeiam as atividades no ambiente de trabalho6.
A esfera com menor grau de satisfação entre os profissionais foi a ambiental/organizacional, composta por: condição de trabalho, variedade e identidade da tarefa e oportunidade de crescimento. A regressão linear múltipla resultou em associação entre a esfera ambiental/organizacional e a QVT, na qual ratifica que o ambiente físico do trabalho e sua organização interferem na QVT dos profissionais.
A oportunidade de crescimento também representa um eixo fundamental para a motivação profissional e esta, por sua vez, apresenta grande influência sobre a qualidade de vida das pessoas no trabalho, além de contribuir para a motivação e o entusiasmo durante a atividade laboral34.
Contudo, para que haja atividade laboral adequada é condição sine qua non que as condições de trabalho sejam elencadas como prioridade para a gestão, uma vez que o fornecimento de aporte adequado para o desenvolvimento das atividades é essencial, não apenas para a eficiência do trabalho e para a qualidade do serviço oferecido, mas para a manutenção da QVT dos profissionais6.
Em pesquisa realizada para descrever os aspectos estruturais e características do trabalho na atenção básica à saúde em penitenciárias do estado da Paraíba, depreende-se que os consultórios dos profissionais foram avaliados como inadequados por, aproximadamente, metade dos sujeitos participantes do estudo, o que demonstra a premente necessidade de fomentar discussões em busca de soluções eficientes para os entraves encontrados na estrutura das unidades de saúde do sistema penitenciário19,24.
Ainda é importante destacar que, no âmbito penitenciário, a segurança pessoal está inserida nas condições de trabalho. Nesse sentindo, os profissionais de enfermagem do sistema penitenciário do estado do Rio de Janeiro afirmam que é necessário investir em mais segurança para os profissionais de saúde que prestam assistência à saúde dos apenados31. A vivência de uma atividade laboral com sobrecarga e instabilidade na execução, por longo período, pode provocar no trabalhador adoecimento físico, em decorrência da excitação fisiológica, e gerar doenças nos sistemas nervoso e cardiovascular21.
Uma pesquisa que objetivou descrever aspectos do trabalho e grau de satisfação com o trabalho de funcionários de duas penitenciárias estaduais de Avaré–SP, mostrou que 56,8% dos profissionais que não exercem atividade repressiva na penitenciária, incluem-se os profissionais de saúde, foram vítimas de agressões, sejam verbais ou físicas, com o relato de profissionais que foram feitos de reféns25.
A atividade de assistência, prestada pelos profissionais aos apenados, baseia-se na Atenção Básica e, mesmo em face da grande variedade das atividades realizadas, a identificação com a tarefa realizada é fundamental e esta se relaciona também com a satisfação dos trabalhadores em relação ao seu trabalho. Sendo assim, profissionais satisfeitos desempenham atividades mais eficientes, ao passo que, a insatisfação contribui para a existência de maiores níveis de absenteísmo, acidente no local de trabalho, falta de interesse para o desenvolvimento profissional e diminuição da qualidade da assistência oferecida33.
A esfera psicológica/comportamental, embora se esperasse insatisfação relacionada ao estresse vivenciado por esses profissionais no ambiente laboral, obteve o maior grau de satisfação. A esfera ambiental/organizacional obteve a menor média de satisfação entre os profissionais de saúde e esse resultado pode estar relacionado ao ambiente prisional nacional, que se apresenta sucateado.
Diferente do proposto pela literatura, o sexo feminino apresentou níveis maiores de QVT, em detrimento dos profissionais do sexo masculino. Em relação à escolaridade, que reitera a literatura, os profissionais com níveis menores de formação acadêmica apresentam níveis menores de QVT.
Foi considerado como limitações deste estudo o pequeno número de trabalhos publicados sobre a temática. Os resultados deste estudo podem contribuir com a gestão do sistema penitenciário, tendo em vista o reconhecimento dos itens com os menores índices de satisfação, ao fornecer embasamento para a gestão adequá-los, com o intuito de garantir melhor infraestrutura de trabalho, melhores níveis de autonomia profissional e, desse modo, resultados mais eficientes no que se referem à saúde dos apenados.
A partir dos dados deste trabalho, os profissionais são capazes de tornarem-se conscientes de sua realidade, uma vez que adotam estratégias durante o processo de trabalho que favoreçam a QVT. Por fim, ainda é fonte de informação para as instituições de ensino, que devem formar os futuros profissionais inserindo-os precocemente neste cenário para treino de habilidades e competências.