versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.2 Rio de Janeiro fev. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018232.27572016
O conceito de saúde proposto, em 1947, pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença”, introduziu as discussões acerca da importância dos aspectos subjetivos da saúde1. Para além de indicadores somáticos, a saúde passou a abranger também como o indivíduo se sente em relação aos diferentes domínios da sua vida.
A ‘qualidade de vida relacionada à saúde’ (QVRS) tem sido definida como um construto multidimensional e subjetivo2–4. Abarcando aspectos físicos, sociais, psicológicos e funcionais do bem-estar de indivíduos, a QVRS implica em um modelo compreensivo da saúde subjetiva. Nesta perspectiva, a sua investigação é importante para o entendimento do impacto de doenças, a avaliação de intervenções em saúde para doentes crônicos, o reconhecimento de subgrupos vulneráveis, bem como a priorização na alocação de recursos na saúde2.
Os determinantes de saúde e doença transitam nos campos social e psicológico, particularmente no período da adolescência, uma vez que o indivíduo vivencia experimentações e transformações. Como envolve uma fase de construção de identidade, tais vivências podem levar a comportamentos de risco, moldando os seus atributos e atitudes na adultez e velhice. Um conhecimento mais profundo sobre como os adolescentes percebem suas vidas permite uma maior compreensão sobre a sua saúde. Como discutido em alguns estudos internacionais que investigaram a QVRS de adolescentes escolares5,6, esse aprofundamento pode ser uma ferramenta de gestão, com vias à orientar a organização de recursos e processos de tomada de decisão para a melhoria da qualidade de vida dos escolares4,7.
No âmbito da adolescência há um predomínio de estudos que investigam a percepção de QVRS em doentes crônicos, desenvolvidos principalmente em ambientes hospitalares ou ambulatoriais. Em contrapartida, nota-se um recente interesse no estudo de grupos considerados saudáveis sendo realizados, portanto, em outros contextos4,8. De grande relevância, um destes ambientes é o escolar por oportunizar o reconhecimento e monitoramento de adolescentes vulneráveis a uma baixa qualidade de vida relacionada à saúde.
Assim, ao aceitar-se que a escola pode propiciar um ambiente mediador e até mesmo promotor de ações voltadas para a melhoria da QVRS de seus alunos, faz-se necessário ampliar o conhecimento sobre o tema. A proposta deste estudo é avaliar a QVRS de adolescentes escolares do Rio de Janeiro e Região metropolitana, em função do tipo de escola a que pertencem (pública ou privada) e de suas características demográficas e econômicas. Espera-se que a divulgação dos resultados do estudo possa fomentar o debate sobre as iniquidades em saúde e estratégias de redução do problema.
Trata-se de um estudo transversal com 807 adolescentes do 6° ano do ensino fundamental de quatro escolas da rede privada do Rio de Janeiro e São Gonçalo, e duas escolas da rede pública de Niterói.
O estudo atual concerne à linha de base de uma das coortes de acompanhamento do Estudo Longitudinal de Avaliação Nutricional de Adolescentes - ELANA (2010-2014). Eram elegíveis ao estudo de fundo todos os adolescentes matriculados e efetivamente cursando o referido período, exceto àqueles com alguma condição física ou mental que impossibilitasse as avaliações propostas; ser gestante ou lactante; e/ou estar em tratamento medicamentoso para obesidade. Dentre os 943 alunos elegíveis, 21 não foram autorizados pelos pais a participar da pesquisa, 35 se recusaram a participar do estudo, 2 foram excluídos por não pertencerem à faixa etária de interesse e 78 não foram encontrados, ficando a amostra final com 807 indivíduos.
As informações sobre a percepção de QVRS dos adolescentes foram obtidas a partir do instrumento Kidscreen9. Trata-se de uma ferramenta genérica usada para avaliação e monitoramento da QVRS de crianças e adolescentes entre 8 e 18 anos, tanto saudáveis quanto portadores de doenças crônicas. Os itens identificam a frequência e intensidade de comportamentos/sentimentos ou atitudes específicas em um período recordatório de uma semana à aplicação do instrumento. Neste estudo, utilizou-se a versão reduzida, com 27 itens que compõem cinco dimensões, viz., ‘Saúde e Atividade Física’, ‘Bem -estar Psicológico’, ‘Autonomia e Relação com os Pais’, ‘Amigos e Apoio Social’ e ‘Ambiente Escolar’. As respostas aos itens têm cinco níveis ordinais de qualificação (de ‘muito ruim’ a ‘excelente’, de ‘nada’ a ‘totalmente’ ou de ‘nunca’ a ‘sempre’). Os itens e respectivas categorias da versão utilizada podem ser encontrados em Gaspar e Matos4.
Como os itens do Kidscreen cumprem com os pressupostos do Modelo Rasch9 de medida, seguiu-se as recomendações dos proponentes do instrumento de utilizar as escalas nesta metria intervalar10. Sendo assim, os escores brutos totais de cada dimensão foram substituídos por valores Rasch equivalentes, estimados no estudo europeu do Kidscreen em treze países (agregado) e fornecidos em uma sintaxe de referência10. Em seguida, os valores Rasch foram substituídos por Escores-T, tornando mais inteligível a interpretação das dimensões. Conforme recomendado no Manual do Kidscreen10, os Escores T foram especificados, por dimensões, para conter médias 50 e desvios-padrão 10, ou seja, valores entre 45 e 55 (50 ± 0.5*10) indicariam uma percepção de QVRS ‘normal’ ou ‘comum’, ao passo que valores abaixo de 45 indicariam uma percepção de QVRS negativa/ruim, e valores acima de 55 indicariam uma percepção de QVRS positiva/boa. Os três passos foram implementados em uma rotina ad hoc programada no software Stata 1310,11.
As escolas foram categorizadas em públicas e privadas. As características demográficas foram representadas por sexo e faixa etária. Para fins descritivos e visando uma sintonia com o estudo europeu do Kidscreen, separou-se os adolescentes de 10 e 11 anos dos adolescentes de 12 a 17 anos.
As características económicas das famílias dos adolescentes foram representadas através de um indicador construído a partir de informações sobre a posse de bens duráveis no domicílio, conforme metodologia empregada por Szwarcwald et al., 200512. Denominado ‘Indicador de Bens (IB)’, o índice é calculado por IB = Σi (1 - fi)bi, em que i varia de 1 a 8 patrimónios (bens) e bt. = 1 ou 0 na presença ou ausência de televisor em cores; videocassete ou DVD; rádio; banheiro; automóvel; máquina de lavar roupas; geladeira e freezer (aparelho independente ou parte de geladeira duplex). O peso atribuído à presença de cada item é dado pelo complemento de sua frequência na população estudada (fi). Quanto mais raro o bem, tanto maior o seu peso no escore total12. O indicador foi ainda refinado mediante a adição de um ponderador que considera a quantidade do bem i encontrada no domicílio (e não somente se este existe ou não no domicílio). Esta variante é calculada por IBW = Σi (1 - fi)biW, sendo w = 0 a k, e k indica a quantidade do bem i no domicílio.
As variáveis IB e sua variante IBw foram as que mais demandaram exploração. Ao escrutínio de diversas formas de agrupamentos centilificados, a que se mostrou mais promissora como marcadora de risco foi a variável IBw em quintos. Implementado no programa fracpoly do software Stata11, o alisamento via polinomial fracionado mostrou uma clara diferença entre o primeiro e os demais quintos quanto ao Escore-T de todas as cinco dimensões do Kidscreen. Houve um nítido aclive do primeiro para o segundo quinto, seguindo-se um platô. Sendo assim, utilizou-se a forma dicotomizada, da variável inicialmente em quintos, para separar o subgrupo de menor posse de bens — pressupostamente o ‘menos favorecido economicamente’— dos demais grupos agregados.
Além de análises univariadas simples, foram implementadas análises de variância e modelos de regressão via polinomiais fracionados com o intuito de examinar as relações entre as variáveis de especificação de subgrupos (sexo, idade, tipo de escola e posição económica) e as variáveis de interesse central (dimensões da QVRS em Escores T) quanto a possíveis pontos de inflexão.
Para avaliar a percepção diferencial de QVRS estratificada por tipo de escola, sexo, faixa etária e posse de bens, utilizou-se o Teste T de Student, considerando um nível de significância estatístico de 5%.
Implementou-se ainda uma ‘modelagem de predição’ com vista à avaliação de diferentes cenários de QVRS, segundo combinações das variáveis selecionadas. Para tal, foram ajustados modelos de regressão linear, dado que as cinco variáveis ‘dependentes’ das dimensões do Kidscreen metrificadas em Escores-T têm distribuição aproximadamente gaussiana. Para as projeções de Escores T médios por subgrupos (cenários), utilizou-se o comando de pós estimação margins do software Stata11. Inicialmente, foram projetadas todas as combinações por sexo, idades fixadas em 10, 13 e 16 anos; os dois tipos de escola (pública e privada); e segundo a variável dicótoma IBw identificando a ‘posição económica’. Subsequentemente, foram avaliados novos cenários de projeção para cada dimensão do Kidscreen, considerando apenas as variáveis que se mostraram estatisticamente significantes (p-valor < 0,05) às análises preliminares.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
A Tabela 1 apresenta o perfil dos adolescentes estudados. Do total de 807 adolescentes da amostra, um pouco mais da metade são do sexo masculino e estudam na rede de ensino privada. Ainda que a maioria tenha 10 ou 11 anos de idade, conforme se esperaria para o 6° ano do ensino fundamental, pelo menos 30% encontravam-se acima dos 12 anos.
Tabela 1 Características da população de estudo quanto a aspectos demográficos e econômicos.
Variáveis | N | %* | ||
---|---|---|---|---|
Sexo | ||||
Masculino | 435 | 54,0 | (50,4 – 57,3) | |
Feminino | 372 | |||
Idade | ||||
Entre 10 e 11 anos | 568 | 70,7 | (67,5 – 73,8) | |
Entre 12 e 17 anos | 235 | |||
Rede de ensino | ||||
Privada | 507 | 63,0 | (59,5 – 66,2) | |
Pública | 299 | |||
Indicador de bens ponderado | ||||
Grupo com maior posse de bens (2° a 4° quintis) | 622 | 80,3 | (77,3 – 82,9) | |
Grupo com menor posse de bens (1° quintil) | 153 |
Fonte: ELANA. Rio de Janeiro, 2010.
Nota:
*Entre parênteses: limites de confiança de 95%.
A Tabela 2 apresenta as diferenças na percepção de QVRS segundo faixa etária, sexo, tipo de escola e posição econômica. Ainda que apresentando alguma diferença relevante à estratificação em subgrupos, a maior parte dos adolescentes possui uma percepção positiva da QVRS em todas as suas dimensões. Nota-se que os adolescentes de 10 e 11 anos apresentaram valores mais elevados que os demais em todas as dimensões. As diferenças segundo sexo, no entanto, não são tão marcantes. Meninas apresentaram valores superiores aos dos meninos em quase todas as dimensões do instrumento, exceto na ‘Saúde e Atividade Física’. Destacam-se também os subgrupos ‘tipo de escola’ e ‘posição econômica’, onde os valores médios de Escores-T de alunos de escolas privadas e maior posse de bens são superiores aos das escolas públicas e menor posse de bens em todas as dimensões. Observa-se ainda que os adolescentes mais velhos, os de escola pública e/ou aqueles com menor posse de bens foram os únicos a apresentar valores de Escores-T abaixo de 45, e mesmo assim, apenas na dimensão Autonomia e Relação com os Pais’.
Tabela 2 Percepçao diferencial de QVRS em função da faixa etária, sexo, tipo de escola e posse de bens dos adolescentes estudados.
Dimensãoa | Faixa etária | Sexo | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
10-11 | 12-17 | Masculino | Feminino | |||
Saúde e Atividade Física | 49,5 (48,7-50,3) | 48,1 (46,7-49,4) | 50,3 (49,4-51,1) | 47,6 (46,5-48,6) | *** | |
Bem-Estar Psicológico | 50,1 (49,3-50,9) | 47,1 (45,8-48,4) | *** | 49,0 (48,1-49,9) | 49,4 (48,4-50,5) | |
Autonomia e Relação com os Pais | 47,8 (46,9-48,6) | 44,2 (42,6-45,9) | *** | 46,7 (45,7-47,7) | 46,8 (45,6-48,0) | |
Amigos e Apoio Social | 51,8 (51,0-52,6) | 49,5 (48,1-51,0) | ** | 49,4 (48,4-50,4) | 53,1 (52,1-54,1) | *** |
Ambiente Escolar | 55,0 (54,3-55,7) | 51,0 (49,6-52,3) | *** | 52,6 (51,6-53,5) | 55,1 (54,2-56,0) | *** |
Dimensãoa | Tipo de escola | Bens | ||||
Pública | Privada | Menos | Mais | |||
Saúde e Atividade Física | 47,0 (45,9-48,2) | 50,2 (49,4-51) | *** | 46,5 (44,8-48,1) | 49,6 (48,9-50,4) | *** |
Bem-Estar Psicológico | 46,9 (45,7-48,2) | 50,5 (49,7-51,3) | *** | 47,2 (45,3-49,0) | 49,7 (49,0-50,5) | ** |
Autonomia e Relação com os Pais | 43,6 (42,2-45,0) | 48,5 (47,6-49,3) | *** | 43,2 (41,2-45-2) | 47,8 (46,9-48,6) | *** |
Amigos e Apoio Social | 48,5 (47,2-49,8) | 52,6 (51,8-53,3) | *** | 49,9 (48,2-51,6) | 51,6 (50,8-52,3) | |
Ambiente Escolar | 51,9 (50,7-53,1) | 54,8 (54,1-55,6) | *** | 52,5 (50,9-54,0) | 54,2 (53,5-54,9) | ** |
aEscores-T médios segundo o instrumento Kidscreen de 27 itens.
*p-valor 0,05-0,01
**p-valor 0,01-0,001
***p-valor < 0,001.
A Tabela 3 mostra os Escores-T médios e os respectivos intervalos de confiança, estimados segundo as diferentes combinações das variáveis de especificação de subgrupos que apresentaram significância estatística na análise preliminar. Em cada dimensão da QVRS, são perceptíveis crescentes cenários de vulnerabilidade. A diagramação em matizes de cinza procura evidenciar este gradiente. De um modo geral, os cenários de projeção segundo dimensões sugerem uma pior percepção de QVRS (1) entre as meninas de escolas públicas e com menor posse de bens (‘Saúde e Atividade Física); (2) entre os de escolas públicas e mais próximos da fase adulta (‘Bem-estar Psicológico’); (3) entre os estudantes de escolas públicas com menor posse de bens (‘Autonomia e Relação com os Pais’); (4) entre meninos de escolas públicas (‘Amigos e Apoio Social’); e (5) meninos com idade na segunda fase da adolescência (‘Ambiente Escolar’).
Tabela 3 Escores-T projetados, segundo subgrupos populacionais, referentes às dimensões de QVRS do Kidscreen.
Obs 1: O marcador indica o cenário mais vulnerável, com valor abaixo do limite inferior pré-estabelecido (45) e o marcador
indica o cenário com valor acima do limite superior pré-estabelecido (55). Obs 2: Na modelagem de predição o número de indivíduos corresponde a 775. Assumindo aleatoriedade dos dados faltantes, utilizou-se o recurso ‘listwise deletion’ à regressão.
As percepções de qualidade de vida foram satisfatórias na amostra como um todo, com valores abaixo do limite inferior apenas na dimensão autonomia e relação com os pais. Quando comparados com os resultados dos diferentes países do estudo europeu do Kidscreen10, nota-se, de uma maneira geral, que os adolescentes estudados percebem sua QVRS de forma mais positiva, ainda que suas condições de vida sejam inferiores à dos adolescentes europeus.
Corroborando o observado em parte dos resultados do estudo europeu do Kidscreen13 e em outros países, como Argentina e Portugal4,6,14, adolescentes entre 10 e 11 anos tendem a perceber suas QVRS de forma mais positiva, em comparação aos adolescentes próximos da fase adulta. Segundo Borges et al.15, as alterações biopsicossociais específicas desta fase despertam questões cognitivas e emocionais que se traduzem na diminuição da percepção de saúde positiva, conforme os adolescentes vão ficando mais velhos.
Confirmando esta primeira impressão, observou-se na modelagem de predição que as percepções dos adolescentes se tornam mais negativas, à medida que a idade avança, tanto na dimensão que trata dos aspectos psicológicos do bem-estar, como na que tange o ambiente escolar no qual o aluno está inserido. Considerando que o ‘Bem-Estar Psicológico’ encerra itens que exploram as emoções positivas, como a satisfação com a vida e os sentimentos de tristeza e solidão, estes achados traduzem uma maior vulnerabilidade às percepções de infelicidade e desamparo, conforme os adolescentes se aproximam à fase adulta. Outros estudos7,16 também têm mostrado que os adolescentes mais velhos tendem a apresentar mais emoções depressivas e estressantes, além de sentimentos de solidão muito característicos da fase de transição entre a adolescência e adultez. Em relação ao ‘Ambiente Escolar’, que trata da percepção do adolescente sobre sua capacidade cognitiva, de aprendizagem e concentração, assim como os seus sentimentos pela escola e professores, estes achados podem estar conexos às próprias características de alguns alunos que já não pertenciam à faixa etária considerada adequada para o 6° ano do ensino fundamental, seja por reprovação escolar, seja por atrasos no ingresso aos estudos ou adaptação curricular.
Além disso, os adolescentes entre 12 e 17 anos apresentaram um valor de QVRS considerado negativo/ruim (abaixo de 45) para a dimensão ‘autonomia e relação com os pais’, que trata de questões associadas ao manejo do tempo livre com autonomia, recursos financeiros e interação com os pais. Segundo o relatório da UNICEF sobre a situação da adolescência brasileira, a percepção negativa desta dimensão de QVRS pode estar atrelada à própria etapa evolutiva na qual estes adolescentes se encontram, caracterizada por novas responsabilidades e menor tempo livre para lazer, impaciência com situações de dependência e restrição financeira, além de constantes advertências de seus pais17. Seriam interessantes ações que buscassem uma maior aproximação e diálogo da escola com os adolescentes para uma maior compreensão das relações entre estes e sua família. Certamente, estratégias promotoras de saúde, que se baseiem no apoio, no acolhimento, no desenvolvimento da autonomia e do protagonismo juvenil, incluindo tanto adolescentes como suas famílias, também contribuiriam.
A percepção de QVRS segundo o sexo dos adolescentes concorda com os resultados do estudo europeu do Kidscreen, no qual os meninos apresentaram valores mais elevados apenas na dimensão relacionada aos aspectos físicos13. Tais achados na dimensão ‘Saúde e Atividade Física’ para os meninos podem ser decorrentes dos diferentes papeis de gênero ainda presentes na sociedade brasileira. De acordo com Oliveira et al.18, a participação dos meninos em esforços físicos intensos e esportes é mais valorizada desde muito cedo, enquanto que entre as meninas existe um menor estímulo social para esta prática, com maior direcionamento às tarefas domésticas e brincadeiras que envolvem o cuidado com o lar, atividades manuais, entre outras. Salles-Costa et al.19 também identificaram a presença de padrões de gênero na prática esportiva entre funcionários administrativos de uma universidade pública situada no município do Rio de Janeiro, destacando que é reconhecida uma maior participação masculina em atividades físicas coletivas, como futebol, vôlei e tênis, e feminina em atividades praticadas individualmente (ginásticas, danças, caminhadas). Neste sentido, os resultados obtidos podem estar também relacionados ao tipo de atividade/esportes comum ente adotados nas aulas de educação física das escolas, em geral praticados coletivamente.
O cenário mais vulnerável nesta dimensão é composto pelas meninas de escolas públicas, com famílias menos abastadas. Como já discutido, tal cenário concorda com a literatura quanto ao gênero, porém difere de outros estudos quanto ao papel do tipo de escola e da condição econômica. Em um estudo com 5.249 adolescentes escolares, Hallal et al.20 constataram que o sedentarismo esteve associado positivamente ao sexo feminino, estratos socioeconômicos mais elevados e estudar em escolas privadas. Similarmente, em um estudo com 592 escolares, Oliveira et al.18 observaram que os alunos matriculados na rede pública apresentavam maiores níveis de atividade física do que aqueles da rede privada. Contendem os autores que estes resultados se relacionam às atividades de lazer sem custos, tais como brincadeiras e esportes de rua, bem como o deslocamento mais ativo para a escola devido à relativa falta de recursos financeiros para o transporte. Em contrapartida, os alunos de escolas privadas teriam mais acesso aos recursos tecnológicos e, assim, maior tempo dedicado às atividades sedentárias, tais como o vídeo game e o computador.
Os achados quanto aos subgrupos ‘tipo de escola’ e ‘posição econômica’ parecem indicar que os adolescentes das escolas públicas e de famílias menos abastadas percebem todas as dimensões da QVRS de forma mais negativa. Na dimensão que explora o apoio social e a relação com os amigos, os meninos de escolas públicas compuseram o cenário mais vulnerável na modelagem de predição, o que pode indicar uma percepção de exclusão e falta de aceitação por parte dos pares nestas escolas. Tais resultados chamam atenção para a possibilidade das escolas privadas terem um impacto mais positivo no bem-estar subjetivo dos adolescentes, seja pelas atividades que são desenvolvidas em seu espaço, seja pelo vínculo existente entre a comunidade escolar e o aluno. Estes achados são de difícil contraste com a literatura devido à ausência de estudos que considerassem essas variáveis, da forma como estruturadas no estudo atual.
Uma questão importante a ser considerada também é a possibilidade do tipo de escola na qual o adolescente está matriculado refletir aspectos socioeconômicos de sua família. Neste caso, os resultados encontrados apontariam para a mesma direção daqueles referentes à posse de bens domiciliar, sugerindo que uma melhor condição econômica influenciaria positivamente a saúde subjetiva dos adolescentes estudados. Essa reflexão é condizente com os valores de QVRS encontrados para a dimensão ‘Autonomia e Relação com os Pais’, onde os adolescentes mostraram uma percepção negativa dos itens componentes21.
Os resultados deste estudo devem ser vistos à luz de seus pontos fortes e limitações. Dentre os positivos destaca-se o rigor metodológico utilizado no processamento e análise das variáveis de interesse central, tal como recomendado pelo Grupo Europeu do Kidscreen, o que permitiu uma sintonizada comparabilidade externa. Ainda que as versões reduzidas do Kidscreen requeiram aprofundamento psicométrico no Brasil, o instrumento possui um histórico de mais de trinta adaptações transculturais e ampla utilização em diferentes países e contextos. Uma lacuna preenchida pela pesquisa se refere à proposta de estudar a percepção da QVRS de adolescentes brasileiros no ambiente escolar e considerados saudáveis a priori, tendo em vista que a maioria dos estudos sobre QVRS são direcionados às crianças e adolescentes com doenças crônicas ou incapacidades22,23.
A casuística restrita a algumas escolas poderia ser vista como uma limitação do estudo e, portanto, seria importante desenvolver novos estudos de metodologia similar em populações mais abrangentes. Outra limitação do estudo é o fato de que algumas características descritoras potencialmente de interesse na composição dos cenários de projeção, tais como, composição familiar, performance escolar, morbidades, dentre outras não puderam ser estudadas por não serem de interesse do estudo de fundo (ELANA).
Os achados deste estudo dão uma clara ideia de que a dinâmica envolvida nos contextos socializadores do adolescente (família, escola, pares, comunidade) pode influenciar as diversas facetas da QVRS. Frente a um grupo etário com questões tão variadas, que envolvem desde riscos e vulnerabilidades a necessidades individuais e ambientais, a modelagem de predição procurou dar alguma luz à confluência de suas características, apresentando cenários de vulnerabilidade por dimensão da QVRS.
Segundo Burt24, os programas de atenção aos adolescentes são frequentemente voltados para a solução de problemas específicos e tais intervenções focais têm se mostrado pouco efetivas. Portanto, parece necessário investir em ações articuladas para a saúde integral devido à falta de eficiência de práticas isoladas e de estratégias de intervenção apropriadas ao perfil do adolescente25. Neste sentido, um dos contextos mais auspiciosos no processo de desenvolvimento do adolescente é o escolar, pela possibilidade de ser um polo de integração do ambiente familiar, comunitário e social, observando o aluno de forma holística. Para tanto, suas ações necessitam ir além daquelas voltadas à performance escolar, oportunizando uma revisão dos programas escolares e projetos educativos de forma a orientar estratégias de promoção de saúde também neste ambiente15.
As intervenções que visam à saúde integral nas escolas requerem ações pedagógicas dinâmicas que façam da escola um espaço de singularização, onde seus alunos possam se desenvolver de forma consciente, crítica e criativa26. A condução desse processo se expressa na utilização de instrumentos e estratégias pedagógicas que promovam mudanças na organização da escola, como inovações curriculares e capacitação permanente de professores para uso de metodologias participativas.
Os resultados deste estudo apontam, de modo geral, que existe um gradiente interno importante que particulariza e vulnerabiliza alguns subgrupos. Esses achados corroboram os de outros estudos que vêm sinalizando a importância de se estudar a QVRS em ambientes escolares, visando identificação de subgrupos de escolares que mereçam uma atenção especial em seus ambientes de socialização. Sendo a escola o espaço social mais presente na vida dos adolescentes, esta deve ser local privilegiado para a realização de projetos que acolham e que fortaleçam estes adolescentes com relação não só ao cuidado com sua própria saúde, mas também os estimule a serem agentes protagonistas na compreensão e redução de suas vulnerabilidades27.