Print version ISSN 0103-2100On-line version ISSN 1982-0194
Acta paul. enferm. vol.28 no.4 São Paulo July/Aug. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201500059
O número de indivíduos vivendo com HIV é crescente, o que se deve, entre outros fatores, à diminuição da taxa de mortalidade, consequente, sobretudo à introdução da política de acesso universal a terapia antirretroviral.(1)
A situação epidemiológica indicava que, até o final de 2013,(1) 35 milhões de pessoas viviam com o HIV/AIDS no mundo, e dessas, 15,9 milhões eram mulheres. Apesar da razão entre homem e mulher ter diminuído em alguns países, as mulheres representam 50% de todos os adultos vivendo com HIV.(2)
Com isso, em países onde o acesso a terapia antiretroviral é uma realidade, a percepção sobre a doença foi alterada de fatal para uma condição crônica de saúde.(3) O número de pessoas que recebem terapia antiretroviral na América Latina e no Caribe aumentou de 210.000, em 2003, para 795.000 em 2013, representando 56% das pessoas que precisam de tratamento e 44% de todas as pessoas com HIV.(4)
Conviver com o Vírus da Imunodeficiência Humana representa, muitas vezes, a necessidade de lidar com sintomas depressivos, com o estigma e discriminação da doença, além da necessidade de apoio social.(5) Concomitante, tem-se os efeitos adversos do regime terapêutico, além de enfrentamentos contra o preconceito percebidos pelos indivíduos com HIV.(6) Todos esses aspectos ressaltam a importância da avaliação da qualidade de vida.(7)
A revelação do diagnóstico da infecção pelo HIV, provoca alteração na vida da mulher, como abandono de emprego, demissão, restrição das atividades no lar, abnegação de atividades agradáveis devido a manifestações da doença. A possibilidade de perdas relacionadas ao comprometimento físico associadas com a dificuldade de conviver com uma doença crônica, que ainda agrega estigma e discriminação, podem desencadear isolamento e solidão.(8)
O papel social exercido por homens e mulheres e a desigualdade existente repercute, de forma negativa, na qualidade de vida de mulheres vivendo com HIV. Pesquisas com diferentes populações revelam o comprometimento da qualidade de vida quando comparada a dos homens.(9,10)
A qualidade do acesso ao tratamento também influencia a qualidade de vida.(11) As mulheres portadoras de HIV apresentam escores médios mais altos de sintomas depressivos e menor qualidade de vida do que mulheres não infectadas.(12)
O objetivo deste estudo é analisar a qualidade de vida de mulheres portadoras do HIV.
Trata-se de um estudo transversal realizado em serviço ambulatorial especializado situado no interior do estado de São Paulo, região sudeste do Brasil.
A amostra não-probabilística do estudo foi constituída por 40 mulheres portadoras de HIV com consulta previamente agendada no período de janeiro a julho de 2011, que atenderam aos critérios de inclusão: ter idade igual ou superior a 18 anos, ter ciência da sua infecção pelo HIV/AIDS por no mínimo seis meses e realizar acompanhamento clínico ambulatorial no local de estudo. Como critérios de exclusão foram: gravidez, período puerperal e/ou apresentar doença psiquiátrica.
A coleta de dados foi realizada pelos pesquisadores, em sala privativa, por meio de entrevista individual com duração média de 15 a 20 minutos.
Os instrumentos utilizados foram: questionário sociodemográfico e clínico e instrumento WHOQOL-HIV bref, elaborado pela OMS, traduzido e validado na língua portuguesa. Trata-se de um instrumento de qualidade de vida para indivíduos com HIV/AIDS, cuja versão abreviada reúne 31 questões distribuídas em seis domínios: Físico, Psicológico, Nível de Independência, Relações Sociais, Meio Ambiente e Espiritualidade.(13) Cada domínio pode ser pontuado de 0 (pior QV) a 100 (melhor QV).(14)
Os dados foram inseridos em planilha do MicrosoftOfficeExcel®for Windows 2007 e analisados por meio do programa Statistical Package for the Social Sciences, versão 18.0. Foi realizado o teste de Kolmogorov-Smirnov para avaliar a normalidade das distribuições de médias amostrais. Foi utilizada a sintaxe para calcular os escores de cada item do instrumento, oferecida pelo Grupo de Pesquisa em Qualidade de Vida no Brasil, versão em português.(14) Os testes Mann-Whitney e Kruskal-Wallis foram empregados para analisar diferença entre as médias ou medianas dos escores de qualidade de vida. O coeficiente de Spearman foi utilizado para analisar possíveis correlações.
O desenvolvimento do estudo atendeu as normas nacionais e internacionais de ética em pesquisa envolvendo seres humanos.
Foram incluídas 40 mulheres com idade entre 22 a 69 anos, com média de 41 anos e maioria (57,5%) na faixa etária entre 30 e 50 anos. Referente ao relacionamento 22 (55,0%) estavam em um relacionamento e 18 (45,0%) referiram não estar em um relacionamento. Quanto à escolaridade, considerou-se anos completos de estudo, predominando até oito anos em 25(62,5%) participantes. Sobre o vínculo empregatício e renda, 22(55,0%) não possuíam vínculo e 27(67,5%) tinham renda mensal de um a três salários mínimos.
Quanto ao tempo de diagnóstico de HIV 50,0% (19) tinham até cinco anos de diagnóstico e 28,9% (11) apresentavam mais de 11 anos. Na avaliação da contagem de linfócitos T CD4+, identificou-se predomínio da faixa acima de 350 células/mm3 em 26(65,0%) mulheres, e apenas 5 (12,5%) tinham resultado abaixo de 200 células/mm3. Sobre a carga viral, 22(55,0%) pacientes apresentaram contagem indetectável.
No que tange à fase clínica da infecção/doença, 24(60,0%) entrevistadas foram classificadas como caso de AIDS, 9(23,7%) como HIV assintomático, e 5(13,1%) HIV sintomático.
Quanto ao uso de terapia antiretroviral, a maioria, 32(80,0%) das participantes utilizavam-na, sendo que o tempo de uso variou de nove meses a 13 anos e seis meses, com média de sete anos.
Quanto aos domínios que compõem o WHOQOL-HIV bref, o que apresentou menor escore médio foi Meio Ambiente (52,1), sendo a pontuação mais elevada no domínio Espiritualidade (59,5) (Tabela 1).
Tabela 1 Distribuição dos escores dos domínios do WHOQOL-HIV bref
Domínios | Número de itens | Média | Máximo | Mínimo | Desvio-Padrão |
---|---|---|---|---|---|
Físico | 4 | 58,8 | 80 | 32 | 32 |
Psicológico | 5 | 57,6 | 80 | 22 | 22 |
Nível de independência | 4 | 57,6 | 80 | 32 | 32 |
Relações sociais | 4 | 55,9 | 80 | 24 | 24 |
Meio ambiente | 8 | 52,1 | 68 | 40 | 40 |
Espiritualidade | 4 | 59,5 | 80 | 36 | 36 |
Natabela 2observamos maior escore no domínio espiritualidade entre as mulheres que estão em um relacionamento estável (62,36), que se declararam bissexual (72,00), sem parceria sexual (64,31) e com renda entre 1 e 3 salários mínimos (62,07).
Tabela 2 Variáveis sociodemográficas e domínios
Variáveis | Físico | Psicológico | Nível de independência | Relações sociais | Meio ambiente | Espiritualidade |
---|---|---|---|---|---|---|
Idade | ||||||
20 |- 30 | 70,00 | 56,53 | 54,00 | 56,67 | 51,00 | 66,00 |
30 |- 50 | 56,00 | 55,93 | 58,78 | 53,04 | 51,91 | 56,35 |
> 50 | 58,55 | 61,67 | 57,09 | 61,45 | 53,09 | 62,55 |
Relacionamento Estável | ||||||
Está em um relacionamento | 58,00 | 57,45 | 59,27 | 54,18 | 52,18 | 62,36 |
Não está em um relacionamento | 59,78 | 57,78 | 55,56 | 58,00 | 52,00 | 56,00 |
Orientação sexual | ||||||
Heterossexual | 58,56 | 57,27 | 57,64 | 56,00 | 52,21 | 59,18 |
Bissexual | 68,00 | 70,40 | 56,00 | 52,00 | 48,00 | 72,00 |
Parceria sexual | ||||||
Sim | 60,30 | 57,13 | 56,59 | 56,00 | 51,48 | 57,19 |
Não | 55,69 | 58,58 | 59,69 | 55,69 | 53,38 | 64,31 |
Anos de estudo | ||||||
≤ 8 | 55,20 | 57,86 | 56,64 | 55,20 | 51,36 | 59,52 |
>8 | 64,80 | 57,17 | 59,20 | 57,07 | 53,33 | 59,47 |
Situação de trabalho | ||||||
Empregada | 58,00 | 59,56 | 59,33 | 54,00 | 52,56 | 59,78 |
Desempregada | 59,45 | 56,00 | 56,18 | 57,45 | 51,73 | 59,27 |
Renda | ||||||
Não tem renda | 52,80 | 55,68 | 52,00 | 58,40 | 46,80 | 56,80 |
Menos de 1 salário mínimo* | 57,50 | 56,00 | 54,50 | 54,50 | 53,25 | 52,50 |
Entre 1 e 3 salários mínimo | 60,30 | 58,43 | 59,56 | 55,85 | 52,74 | 62,07 |
*Salário Mínimo, valor vigente durante a pesquisa de R$ 545,00. Em dólares US326,34 (US1,00 = R$1,67)
As mulheres com níveis de linfócitos T CD4+ >350 cel/mm3, obtiveram escores no domínio espiritualidade maiores quando comparadas àquelas com nível de T CD4+ <200 cel/mm3 (Tabela 3). Em relação a detecção de carga viral observou-se que as pessoas com menor carga viral, apresentavam melhor avaliação de qualidade de vida nos domínios físico e espiritualidade quando comparados com indivíduos cujas cargas virais estavam mais elevadas. Quanto à TARV identificou-se que as usuárias dessa terapêutica obtiveram melhores escores no domínio nível de independência.
Tabela 3 Variáveis sociodemográficas e domínios.
Variáveis | Físico | Psicológico | Nível de independência | Relações sociais | Meio ambiente | Espiritualidade |
---|---|---|---|---|---|---|
Tempo de ciência do diagnóstico de HIV (anos) | ||||||
1 |- 5 | 57,05 | 54,74 | 53,89 | 59,37 | 50,42 | 54,95 |
6 |- 10 | 62,00 | 64,80 | 64,50 | 58,00 | 52,25 | 63,00 |
>11 | 62,18 | 59,35 | 61,09 | 49,45 | 55,82 | 65,09 |
T CD4+ (células/mm3) | ||||||
< 200 | 52,80 | 56,96 | 59,20 | 51,20 | 47,60 | 44,00 |
201 a 350 | 60,44 | 59,38 | 59,56 | 57,78 | 53,11 | 64,00 |
> 350 | 59,38 | 57,11 | 56,62 | 56,15 | 52,62 | 60,92 |
Carga viral (cópias/ml) | ||||||
Indetectável | 62,18 | 59,05 | 59,45 | 56,36 | 53,91 | 61,09 |
Detectável | 54,67 | 55,82 | 55,33 | 55,33 | 49,89 | 57,56 |
Classificação da infecção | ||||||
Assintomática | 63,56 | 52,98 | 59,56 | 53,78 | 51,33 | 61,33 |
Sintomática | 57,60 | 52,48 | 51,20 | 58,40 | 51,60 | 60,80 |
AIDS | 57,33 | 61,07 | 58,67 | 56,67 | 52,50 | 58,17 |
Percepção do estado de saúde | ||||||
Ruim | 44,00 | 41,60 | 32,00 | 46,00 | 45,00 | 56,00 |
Nem Ruim, Nem Bom | 42,00 | 48,53 | 52,67 | 55,33 | 53,67 | 50,67 |
Boa | 60,94 | 57,60 | 55,53 | 54,59 | 49,29 | 58,12 |
Muito boa | 65,07 | 63,36 | 65,33 | 58,93 | 55,60 | 65,07 |
Uso de terapia antirretroviral (TARV) | ||||||
Sim | 52,80 | 56,96 | 59,20 | 51,20 | 47,60 | 44,00 |
Não | 60,25 | 57,60 | 55,25 | 60,25 | 53,25 | 64,00 |
Interrompeu | 59,16 | 57,77 | 59,16 | 53,47 | 52,32 | 59,79 |
Como limitação dos resultados deste estudo, destaca-se o desenho transversal e a utilização de amostra não-probabilística em um único serviço de saúde, o que restringe a generalização dos dados.
Quanto à qualidade de vida, detectou-se que o domínio que apresentou melhor desempenho foi o da Espiritualidade, o qual avalia questões como perdão e culpa, preocupação sobre o futuro, morte e o morrer.
Estar em um relacionamento, foi percebido como melhor escore para o domínio nível de independência e espiritualidade.
O uso de terapia antiretroviral apontou melhor escore no domínio espiritualidade. Outro estudo relatou melhor qualidade de vida também nos domínios físico, psicológico, nível de independência e espiritualidade.(15)
O domínio Físico obteve o segundo melhor escore de qualidade de vida. Esse domínio avalia questões como dor e desconforto, energia e fadiga, sono e descanso e sintomas da infecção.(13) Houve diferença em relação à quantificação de carga viral e o domínio físico, sendo que quanto menor a carga viral, maior o escore do domínio Físico.
Os escores estabelecidos no domínio Relações Sociais, avaliam os relacionamentos pessoais, apoio social e atividade sexual, obteve o segundo pior desempenho. Neste estudo, os menores escores observados para este domínio foram estar em um relacionamento, estar empregada, bissexualidade declarada e não ter parceiro sexual.
Ao domínio Meio Ambiente foi atribuído o menor escore. Esse domínio avalia a segurança física, situação financeira, o ambiente físico em relação à poluição, ruído, trânsito, clima e condições de lugar onde se vive. Contudo, constatou-se diferença entre os escores do domínio meio ambiente em relação à carga viral identificando-se que quanto menor a carga viral melhor a avaliação em todos os domínios, e quando os valores de CD4 estão acima de 350 células/mm3 melhor o escore no domínio espiritualidade. Diferentemente do estudo que relata para aqueles com contagem de CD4 ≥ 350 células/mm3 melhores níveis de qualidade de vida nos domínios físico, psicológico e nível de independência.(15)
A Espiritualidade foi o domínio com melhor desempenho, seguido do domínio Físico. Os menores escores médios foram observados nos domínios Meio Ambiente e Relações Sociais.