On-line version ISSN 1982-0194
Acta paul. enferm. vol.27 no.3 São Paulo May/June 2014
http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201400039
A doença renal crônica é considerada um problema de saúde pública, que consiste na perda lenta, progressiva e irreversível da função renal, resultando na incapacidade dos rins exercerem suas funções básicas.(1,2)
O número de pacientes em tratamento dialítico vem aumentando gradualmente ao longo dos anos, de 42.695 no ano de 2000, para 91.314 em 2011, sendo a hemodiálise o tratamento mais comum.(3)
Durante a fase de tratamento, os portadores de insuficiência renal crônica podem ter a qualidade de vida relacionada à saúde alterada, pois há a ansiedade prévia e no momento do tratamento, a perda da autonomia, a dificuldade em lidar com uma doença irreversível e incurável, o problema em se deslocar diariamente ou semanalmente para hospitais, a queda dos níveis de vitalidade, a limitação para a realização das atividades da vida diária, em muitos casos a falta de suporte por parte dos familiares e amigos, prejudicando assim, tanto a saúde física quanto a saúde psíquica do paciente.(4)
Com o avanço da doença renal, os pacientes podem apresentar sintomas que afetam a sua vida diária. Nos estágios mais avançados, o seu impacto sobre o estado funcional e a qualidade de vida torna-se bastante perceptível. As terapias renais substitutivas, como a hemodiálise, corrigem parcialmente os sintomas percebidos pelo paciente e provocam mudanças adicionais no seu estilo de vida, as quais podem afetar a qualidade de vida.(5)
O objetivo deste estudo é avaliar a qualidade de vida relacionada a saúde de pacientes renais crônicos em tratamento dialítico.
Trata-se de um estudo transversal desenvolvido em um serviço público especializado situado no Estado de São Paulo, região sudeste do Brasil.
A amostra foi composta por 101 pacientes renais crônicos em tratamento hemodialítico, sendo os critérios de inclusão: 1) ter idade igual ou superior a 18 anos; 2) ter diagnóstico médico de insuficiência renal crônica; 3) realizar tratamento hemodialítico há pelo menos três meses.
O instrumento de pesquisa foi o Instrumento de Caracterização dos Sujeitos da Pesquisa e o Kidney Disease Quality of Life-Short Form (KDQOL-SF). O Instrumento de Caracterização dos Sujeitos é composto por questões referentes à identificação, dados sociodemográficos e de condições clínicas. O KDQOL-SF foi desenvolvido pelo grupo Working Group, em 1997 (versão 1.3) e validado no Brasil em 2003. O KDQOL-SF é aplicável a pacientes em diálise, com o objetivo de mensurar a QVRS, satisfazendo duas propriedades essenciais: a avaliação das dimensões que são importantes para a condição de saúde e a integração da informação oriunda dos domínios específicos e genéricos, possibilitando uma análise mais completa. O procedimento de pontuação é feita por dimensão do KDQOL-SF, sendo, portanto, analisadas separadamente. Sendo assim, não existe um valor único resultante da avaliação global da qualidade de vida relacionada a saúde mas escores médios para cada dimensão. Essa análise possibilita identificar os reais problemas relacionados à saúde dos pacientes, e verificar quais causam impacto na qualidade de vida.(6,7)
A pontuação final de cada dimensão varia em uma escala de 0 a 100, sendo que a pontuação mais alta reflete melhor qualidade de vida.(6)
Os dados do KDQOL-SF foram transportados para um programa de análise produzido e disponibilizado pelo Working Group. O programa também possui planilhas do Microsoft Excel®, que após inserir os resultados, automaticamente recodifica os dados dos itens com escores invertidos e calcula os escores por itens de cada dimensão.
Os dados coletados foram transportados para uma planilha do Microsoft Office Excel® e através de um programa estatístico foram realizadas as análises: a) descritiva: tabelas de frequência, com medidas de posição (média, mediana, mínima e máxima) e desvio padrão; coeficiente Alfa de Cronbach: verifica a consistência interna do KDQOL-SF. Considera-se boa confiabilidade para valores de alfa iguais ou superiores a 0,60.(7)
O desenvolvimento do estudo atendeu as normas nacionais e internacionais de ética em pesquisa envolvendo seres humanos.
As características sociodemográficas encontradas neste estudo estão descritas na tabela 1. Do total de 101 sujeitos que participaram da pesquisa, 69 sujeitos eram do sexo masculino, e 32 do sexo feminino. A idade variou de 24 a 88 anos, sendo que a faixa etária que apresentou maior percentual de participantes foi a de 50-59 anos com 27%. De acordo com a divisão por grupos etários, 57 sujeitos eram adultos, e 44 idosos. A etnia prevalente neste estudo foi à branca (n=50). Em relação à situação conjugal, a maioria era casada (n=56). Quanto à escolaridade, a maioria dos sujeitos tinha o 1º Grau Completo (n=28).
Tabela 1 Características sociodemográficas e clínicas
Variáveis | n(%) |
---|---|
Sexo | |
Feminino | 32(32) |
Masculino | 69(68) |
Faixa Etária (em anos) | |
18-29 | 4(4) |
30-39 | 11(11) |
40-49 | 14(14) |
50-59 | 28(27) |
60-69 | 25(25) |
70-79 | 12(12) |
80 ou mais | 7(7) |
Cor da pele | |
Branca | 50(49,5) |
Parda | 31(30,7) |
Negra | 20(19,8) |
Situação Conjugal | |
Casado | 56(55,5) |
Divorciado | 16(15,8) |
Viúvo | 13(12,8) |
Solteiro | 12(12) |
Outro | 4(3,9) |
Escolaridade | |
Nenhuma | 7(6,9) |
1º Grau Incompleto | 21(20,8) |
1º Grau Completo | 28(27,7) |
2º Grau Incompleto | 20(19,8) |
2º Grau Completo | 16(16) |
Ensino Superior Completo | 7(6,9) |
Ensino Superior Incompleto | 2(1,9) |
Renda* | |
Até ou igual a 1SM** | 25(26,6) |
De 1,1 a 2 SM | 29(30,8) |
De 2,1 a 3 SM | 24(25,5) |
Mais de 3 SM | 16(17,1) |
Religião | |
Católico | 68(67) |
Evangélico | 21(22) |
Espírita | 3(3) |
Testemunha de Jeová | 2(2) |
Nenhuma | 7(6) |
Doença de Base | |
Hipertensão arterial | 60(59,4) |
Diabetes mellitus II | 27(26,7) |
Glomerulopatias | 4(4) |
Genéticas/Hereditárias | 3(3) |
Outros | 7(6,9) |
Uso de Medicamentos | |
Sim | 101(100) |
Não | 0(0) |
Total | 101 |
Verifica-se que a maioria dos respondentes recebia de 1,1 a 2 salários mínimos (30,8%) e tinha a religião católica como crença.
Ainda na tabela 1 verifica-se que a doença de base mais prevalente foi a hipertensão arterial sistêmica (59,4%). Quanto ao uso de medicamentos, 100% dos respondentes faziam uso.
Na tabela 2 observa-se que a idade média dos sujeitos avaliados foi de 56,4 (±14,44) anos. Em relação às variáveis clínicas, o tempo médio de tratamento hemodialítico foi de 43,15 (±43,24) meses. No que se refere aos exames laboratoriais, os valores médios do hematócrito e albumina foram de 32,78 (±15,03%) e 3,78 (±0,47g/dl), respectivamente.
Tabela 2 Tempo de realização de hemodiálise e exames laboratoriais
Variável | n | Média (Dp)** | Mediana | Mínimo | Máximo |
---|---|---|---|---|---|
Idade (anos) | 101 | 56,40(14,44) | 58,00 | 24,00 | 88,00 |
Tempo de Hd*(meses) | 101 | 43,15(43,24) | 36,00 | 3,00 | 240,00 |
Hematócrito (%) | 101 | 32,78(5,03) | 33,30 | 19,20 | 47,40 |
Albumina (g/dl) | 101 | 3,78(0,47) | 3,80 | 2,10 | 6,90 |
Na tabela 3, estão descritos escores médios de qualidade de vida relacionada a saúde. Verifica-se que as dimensões que obtiveram os menores escores foram: “Função Física” (30,20), “Situação de Trabalho” (37,13), e “Funcionamento Físico” (46,68). Em contrapartida, obtiveram as maiores pontuações as dimensões “Função Cognitiva” (89,31), “Suporte Social (88,61) e “Função Sexual” (84,58).
Tabela 3 Qualidade de vida relacionada a saúde
Dimensões | Média (±Dp) | Mediana | Variação | Alpha de Cronbach |
---|---|---|---|---|
Sintomas/problemas | 76,09(±13,06) | 79,17 | 31-100 | 0,72 |
Efeitos da doença renal | 68,01(±14,83) | 68,75 | 31-100 | 0,60 |
Carga da doença renal | 51,36(±23,13) | 50,00 | 0-100 | 0,63 |
Situação de trabalho | 37,13(±28,68) | 50,00 | 0-100 | 0,32 |
Função cognitiva | 89,31(±13,57) | 93,33 | 47-100 | 0,60 |
Qualidade da interação social | 82,97(±12,45) | 86,67 | 33-93 | 0,42 |
Função sexual | 84,58(±20,94) | 93,75 | 25-100 | 0,79 |
Sono | 66,73(±17,27) | 70,00 | 20-95 | 0,70 |
Suporte social | 88,61(±20,13) | 100,00 | 17-700 | 0,71 |
Incentivo da equipe de diálise | 79,83(±22,77) | 75,00 | 0-100 | 0,76 |
Satisfação do paciente | 66,83(±20,61) | 66,67 | 0-100 | -- |
Funcionamento físico | 46,68(±31,39) | 45,00 | 10-100 | 0,60 |
Função física | 30,20(±35,59) | 25,00 | 15-90 | 0,92 |
Dor | 69,13(±32,43) | 80,00 | 32-88 | 0,78 |
Saúde geral | 49,36(±16,70) | 45,00 | 0-100 | 0,92 |
Bem estar emocional | 69,98(±14,08) | 72,00 | 0-100 | 0,65 |
Função emocional | 74,59(±31,67) | 100,00 | 10-90 | 0,57 |
Função social | 55,45(±26,01) | 62,50 | 13-54 | 0,67 |
Energia/Fadiga | 60,50(±18,51) | 60,00 | 25-61 | 0,74 |
Quanto à consistência interna do KDQOL-SF, a maioria das dimensões obteve valores de alpha de Cronbach satisfatórios (≥ 0,60).
Os limites dos resultados do estudo estão relacionados ao desenho transversal que não permite o estabelecimento de relações de causa e efeito.
O portador de insuficiência renal crônica em tratamento por hemodiálise convive com uma doença incurável com tratamento de longa duração. Além disso, a evolução da doença e suas complicações, leva a limitações e alterações na qualidade de vida do paciente e sua rede familiar, de amigos. Dos 101 sujeitos avaliados, evidenciou-se uma participação significativa do sexo masculino (68%). A Sociedade Brasileira de Nefrologia confirma no Censo Brasileiro de Diálise de 2011 que aproximadamente 57% dos pacientes renais crônicos eram homens, enquanto 42% eram do gênero feminino.(3)
Estudos observacionais apontam a prevalência da doença no sexo masculino.(8-11) Em outros estudos a prevalência ocorreu no sexo feminino.(12-14) Quanto à faixa etária, apesar do alto percentual de idosos (42%), a faixa etária mais prevalente foi de 50 a 59 anos. Este achado também foi encontrado em outro estudo, onde a faixa etária prevalente foi de 40 a 60 anos.(14) Quanto à cor da pele, a branca foi a mais prevalente, assim como em outros estudos.(8,10) Quanto à situação conjugal, verificou-se que a maioria dos sujeitos eram casados (55,5%). Resultados semelhantes foram encontrados por diversos estudos.(8-10,15,16) No que diz respeito à crença religiosa, a maioria dos respondentes relataram ser católicos (67,0%). Este achado vai ao encontro de estudos que trouxeram 57%, e 84% de seus sujeitos considerados como católicos.(17,18) Quanto à escolaridade, observou-se a predominância de pessoas com ensino fundamental completo (27,7%), sendo semelhante a estudos, onde 63,2% e 56,4% dos respondentes tinham o ensino fundamental completo.(6,19)
Em relação à renda, observou-se que a maioria recebia até dois salários mínimos (30,8%). Em demais estudos encontrados na literatura, os resultados foram condizentes, nos quais 34% e 46%, sendo a maioria dos sujeitos recebiam até ou igual um salário mínimo.(15,17)
Quanto às características clínicas, observou-se o maior predomínio de hipertensão arterial sistêmica (59,4%) como doença de base, seguida do diabetes mellitus (26,7%). Este achado vai ao encontro dos resultados de um estudo, que verificou que seus sujeitos possuíam como doença renal de base o diabetes mellitus e a hipertensão arterial, ultrapassando os 71% do total.(10)
Nesse estudo, a média do tempo de tratamento de hemodiálise foi de aproximadamente 43 meses (correspondendo à 3,6 anos). Resultados semelhantes foram encontrados na literatura, onde encontrou-se um tempo médio de tratamento hemodialítico de 40 meses.(11)
Em relação à albumina, o valor médio dos respondentes do presente estudo foi 3,78 (±0,47) g/dl. A albumina é o marcador mais comum utilizado para avaliar o estado nutricional de pacientes em hemodiálise. Coloca-se como índice recomendado para a albumina superior a 3,5 mg/dl, dessa forma pode-se considerar o resultado da presente pesquisa dentro da normalidade.(3,20)
Há publicações acerca do nível de albumina que encontraram médias mais altas (4,11mg/dl e 4,2g/dl, respectivamente).(11,12) Outra variável clínica analisada foi o resultado do exame laboratorial de hematócrito, utilizado como marcador de anemia, que tem como valor mínimo de referência de 33%.(21) Cabe salientar que diversos estudos indicam que a anemia causa prejuízo à qualidade de vida relacionada a saúde dos pacientes renais crônicos. Também existem evidências na literatura indicando que os pacientes hemodialisados apresentam uma melhora significativa na sobrevida quando o hematócrito normal é atingido.(22)
No presente estudo obteve-se valor médio de hematócrito de 32,78%, estando próximo ao valor mínimo esperado. Uma pesquisa realizada em dois hospitais espanhóis, com 53 pacientes em tratamento por diálise peritoneal, encontrou o valor médio de 33,46%.(13) Quanto ao uso de medicamentos, todos os participantes utilizam medicamentos. Foi encontrado em determinado estudo, um resultado médio de 4,1 medicamentos por dia para cada paciente em hemodiálise.(16)
Na avaliação da qualidade de vida relacionada a saúde obtiveram-se pontuações médias elevadas nos domínios “Função Cognitiva” (89.31), “Suporte Social” (88.61), “Função Sexual” (84.58) e “Qualidade de Interação Social” (82.97). O maior escore médio foi a “Função Cognitiva” (89,31). Apesar de ter obtido tal resultado, cabe salientar que os doentes renais crônicos constituem uma população de risco para o declínio cognitivo. Dessa forma, mesmo com um bom desempenho nessa dimensão, é necessária a avaliação periódica da função cognitiva desta população, uma vez que são múltiplos os fatores de risco para o comprometimento cognitivo dos doentes renais crônicos.(23) A segunda dimensão com a melhor percepção foi o “Suporte Social” (88,61). É significativa a importância do suporte social para o individuo, uma vez que este pode tornar-se um recurso essencial, já que a participação da família pode favorecer a melhor aceitação dos mesmos em relação à doença e ao tratamento. Outros trabalhos também obtiveram médias elevadas com escores médios de 79,1; 88,2 e 81,1.(6,13,15) Outra dimensão que apresentou pontuação média elevada no presente estudo foi a “Função Sexual” (84,58), há outros estudos com resultado semelhante.(6,15)
Contudo, foi constatado que ocorre uma redução nos níveis de qualidade de vida devido a disfunção erétil, que é uma condição bastante prevalente em portadores de insuficiência renal crônica. Sendo assim, os resultados no referido domínio do presente estudo devem ser analisados com cautela visto que a amostra dos pacientes que tiveram relação sexual nas últimas três semanas foi composta por 30 sujeitos, considerada baixa.(24)
Os menores escores médios de qualidade de vida relacionada a saúde foram: “Aspecto Físico” (30,20), “Situação de Trabalho” (37,13), “Funcionamento Físico” (46,68).
Neste contexto, os resultados encontrados sugerem que o conjunto de sintomas da doença, associados aos fatores do dia a dia dos pacientes, submetidos ao tratamento hemodialítico geram um impacto negativo. Cabe salientar ainda que o domínio “Aspecto Físico” pode ser o mais prejudicado na percepção dos pacientes renais crônicos.(15)
No presente estudo, a segunda dimensão com maior prejuízo foi “Situação de Trabalho”. O trabalho é a condição básica para a emancipação humana e faz parte da identificação de cada pessoa, portanto, se torna um dos valores mais preciosos do ser humano. Em função da doença e do tratamento, muitas vezes os pacientes precisam parar de trabalhar, o que influencia a qualidade de vida. Deixar de trabalhar ou diminuir a carga horária é um fator que se contrapõe ao estilo de vida que o indivíduo tinha antes, e dessa forma causa impacto negativo na qualidade de vida.(14)
A terceira dimensão com escore médio mais baixo foi “Funcionamento Físico”, indicando que há diminuição da capacidade para executar atividades de rotina diária ou trabalhar. Alguns estudos já têm sugerido a implantação de um programa de prática regular de exercícios para esta população.(25)
A qualidade de vida relacionada a saúde de pacientes renais crônicos em tratamento dialítico apresentou melhor percepção nos domínios “função cognitiva”, “suporte social”, “função sexual” e “qualidade de interação social” e maiores prejuízos nas dimensões “aspecto físico”, “situação de trabalho”, “funcionamento físico” e “saúde geral”.