versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.109 no.3 São Paulo set. 2017
https://doi.org/10.5935/abc.20170134
Em se tratando de pacientes pediátricos com hipertensão pulmonar associada a cardiopatia congênita (HP-CC), a decisão pela cirurgia pode ser difícil, dependendo do cenário diagnóstico. A maioria dos pacientes com comunicação entre as câmaras cardíacas ou os grandes vasos pode agora ser operada de maneira segura e com excelentes resultados. A HP apresenta complicações em menos de 10% dos casos. Em geral, considera-se o encaminhamento precoce para cirurgia a melhor estratégia para evitar complicações. Isso é inquestionável. Entretanto, o encaminhamento tardio ainda é um problema em países em desenvolvimento e áreas carentes. Ademais, deve-se reconhecer que a vasculopatia pulmonar grave pode estar presente numa fase precoce da vida, levando à especulação de que lesões vasculares possam se desenvolver a partir do nascimento, ou até antes. Anormalidades vasculares pulmonares moderadas a graves limitam o sucesso da correção das anomalias cardíacas. Em primeiro lugar, as denominadas crises hipertensivas pulmonares pós-operatórias são relativamente infrequentes na atualidade, mas ainda se associam a altas taxas de mortalidade (>20%).1 O manejo do paciente requer sofisticado armamentário de suporte à vida, como a oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO). Em segundo, os pacientes que sobrevivem ao pós-operatório imediato podem permanecer com risco de HP persistente pós-operatória, que se associa com mau desfecho em comparação às outras etiologias de HP pediátrica.2 Portanto, ao se conscientizarem dessas complicações, clínicos e cirurgiões precisam se unir e planejar a melhor estratégia terapêutica de maneira individual.
Por muito tempo, o cateterismo cardíaco (com teste de vasorreatividade pulmonar aguda, TVA) foi considerado o padrão-ouro para avaliação de HP-CC. Na maioria dos centros terciários, a informação fornecida pelo cateterismo ocupa uma alta posição hierárquica no processo de decisão pela operação de pacientes com HP-CC. Além disso, subclassificações da HP-CC conforme a gravidade da doença são baseadas em parâmetros hemodinâmicos. Entretanto, nem a obtenção nem a interpretação dos dados do cateterismo são fáceis, em especial na população pediátrica, por várias razões:
1- o procedimento, em geral, é realizado sob anestesia geral, com ventilação mecânica e relaxamento muscular, estando, portanto, fora das condições fisiológicas;
2- até mesmo a hipotensão sistêmica leve (como a consequente à hidratação inadequada relacionada aos efeitos dos anestésicos) impossibilita a análise dos resultados em indivíduos com shunts sistêmico-pulmonar;
3- a medida direta do consumo de oxigênio, essencial ao cálculo dos fluxos sanguíneos pulmonar e sistêmico, não é realizada em muitas instituições;
4- óxido nítrico inalante é caro, não estando disponível em muitos centros, o que limita o desempenho do TVA; sabe-se ser inapropriada a exposição da circulação pulmonar a oxigênio ~100% para se testar a vasorreatividade, pois leva a resultados imprecisos; e
5- não há consenso quanto ao protocolo para o TVA na população pediátrica, não se correlacionando a magnitude da resposta com o desfecho em CC.3 O cateterismo cardíaco permanece uma etapa importante na avaliação de HP-CC,4 mas, devido a essas dificuldades, seus dados devem ser considerados como parte do cenário diagnóstico integral.
Na era das drogas específicas para manejo da HP, tentou-se tratar pacientes inoperáveis (indivíduos mais idosos com elevada resistência vascular pulmonar e, por vezes, shunt bidirecional através das comunicações) com o objetivo de torná-los operáveis. Tal abordagem ficou conhecida como “estratégia tratar e reparar”. Entretanto, não houve evidência suficiente para embasar tal recomendação de maneira generalizada.5 Se por um lado, não há garantia de que as drogas permanecerão efetivas no longo prazo, por outro, a persistência de HP grave é uma complicação preocupante após correção de shunts cardíacos congênitos, com significativa redução de sobrevida.2 Frequentemente, a reabertura da comunicação requer reoperação com circulação extracorpórea, um procedimento de alto risco para pacientes com HP. Em alguns casos, pode-se optar pelo reparo da lesão extracardíaca sem a correção da comunicação intracardíaca, ou ainda pelo fechamento parcial do defeito.
A escolha da melhor estratégia terapêutica na HP-CC, em especial na população pediátrica, deve ser feita em bases individuais. Às vezes, deve-se considerar a cirurgia mesmo sem a perspectiva de completa normalização hemodinâmica. Esse pode ser o caso, por exemplo, de uma criança com comunicação interventricular não restritiva e HP, com grave regurgitação mitral e ventrículo esquerdo quase insuficiente. Nesse caso, a cardiopatia esquerda provavelmente representará maior limitação à vida do que a própria HP. Assim, poderíamos tentar definir operabilidade no sentido geral, sem relacioná-la com qualquer ponto de corte de um índice específico. Um paciente deve ser considerado operável quando, com base em todos os dados diagnósticos, uma equipe multiprofissional estiver convencida de que a cirurgia pode ser realizada com riscos aceitáveis, vislumbrando-se significativos benefícios em médio e longo prazo.
Gostaríamos de complementar tal visão do problema apresentando um resumo das características clínicas e parâmetros diagnósticos que vêm sendo usados para a tomada de decisão sobre a cirurgia na HP-CC, com ênfase na população pediátrica (Tabela 1). Devem ser consideradas a idade do paciente e a complexidade da anomalia cardíaca. Por exemplo, enquanto atualmente o truncus arteriosus é corrigido com sucesso em uma fase precoce da vida, ele se associa ao desenvolvimento de grave vasculopatia pulmonar com o aumento da idade. A ecocardiografia é útil para avaliar a gravidade da HP e a adaptação ou a disfunção ventricular direita, pois parâmetros numéricos, além de informação anatômica, podem ser obtidos. A ecocardiografia é particularmente útil quando medidas repetidas são necessárias nos pacientes pediátricos, antes e depois da operação. Por fim, o cateterismo cardíaco com medida direta da resistência vascular pulmonar deve ser considerado em todos os pacientes com defeitos do septo cardíaco não restritivos e sem história de insuficiência cardíaca congestiva e comprometimento do desenvolvimento. Em lugar de se considerar apenas um único parâmetro, a melhor política é usar a abordagem diagnóstica holística nesses pacientes delicados.6 Quanto à decisão sobre a cirurgia, “negligência benigna” é provavelmente a melhor atitude humanista quando os riscos superam os benefícios. Caso contrário, a decisão pela cirurgia deve ser baseada em múltiplos aspectos diagnósticos e na opinião de uma equipe multiprofissional de especialistas.
Tabela 1 Características clínicas e parâmetros invasivos e não invasivos a serem considerados na tomada de decisão sobre cirurgia em pacientes pediátricos com hipertensão pulmonar associada a cardiopatia congênita
Cenário favorável | Parâmetros | Cenário desfavorável |
---|---|---|
< 9 meses | Idade | > 2 anos |
Defeito pré-tricúspide ou simples pós-tricúspide | Complexidade da anomalia cardíaca | Defeitos complexos Truncus arteriosus Transposição dos grandes vasos Comunicação atrioventricular na síndrome de Down |
Presente na história clínica / exame físico | Insuficiência cardíaca congestiva | Ausente |
Congestão pulmonar | ||
Comprometimento do desenvolvimento | ||
> 93%, sem gradiente | Saturação sistêmica de oxigênio, gradiente braço direito vs. extremidades inferiores | < 90%, com gradiente |
Parâmetros ecocardiográficos | ||
> 2,5 | Razão fluxo sanguíneo pulmonar/sistêmico (Qp/Qs) | < 2,0 |
> 24 cm | Integral velocidade-tempo do fluxo sanguíneo nas veias pulmonares |
< 20 cm |
Esquerda para direita | Direção do fluxo através da comunicação cardíaca | Bidirecional |
Cateterismo cardíaco | ||
≥ 20% | % de redução na razão resistência vascular pulmonar/sistêmica (Rp/Rs) a partir do basal, durante inalação de óxido nítrico (NO) | < 20% |
< 5,0 unidades Wood•m2 | Nível de resistência vascular pulmonar obtida com NO | > 8,0 unidades Wood•m2 |
< 0,27 | Menor Rp/Rs obtida durante inalação de NO | > 0,33 |