Compartilhar

Quando Operar Pacientes Pediátricos com Cardiopatia Congênita e Hipertensão Pulmonar

Quando Operar Pacientes Pediátricos com Cardiopatia Congênita e Hipertensão Pulmonar

Autores:

Antonio Augusto Lopes,
Ana Maria Thomaz

ARTIGO ORIGINAL

Arquivos Brasileiros de Cardiologia

versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170

Arq. Bras. Cardiol. vol.109 no.3 São Paulo set. 2017

https://doi.org/10.5935/abc.20170134

Em se tratando de pacientes pediátricos com hipertensão pulmonar associada a cardiopatia congênita (HP-CC), a decisão pela cirurgia pode ser difícil, dependendo do cenário diagnóstico. A maioria dos pacientes com comunicação entre as câmaras cardíacas ou os grandes vasos pode agora ser operada de maneira segura e com excelentes resultados. A HP apresenta complicações em menos de 10% dos casos. Em geral, considera-se o encaminhamento precoce para cirurgia a melhor estratégia para evitar complicações. Isso é inquestionável. Entretanto, o encaminhamento tardio ainda é um problema em países em desenvolvimento e áreas carentes. Ademais, deve-se reconhecer que a vasculopatia pulmonar grave pode estar presente numa fase precoce da vida, levando à especulação de que lesões vasculares possam se desenvolver a partir do nascimento, ou até antes. Anormalidades vasculares pulmonares moderadas a graves limitam o sucesso da correção das anomalias cardíacas. Em primeiro lugar, as denominadas crises hipertensivas pulmonares pós-operatórias são relativamente infrequentes na atualidade, mas ainda se associam a altas taxas de mortalidade (>20%).1 O manejo do paciente requer sofisticado armamentário de suporte à vida, como a oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO). Em segundo, os pacientes que sobrevivem ao pós-operatório imediato podem permanecer com risco de HP persistente pós-operatória, que se associa com mau desfecho em comparação às outras etiologias de HP pediátrica.2 Portanto, ao se conscientizarem dessas complicações, clínicos e cirurgiões precisam se unir e planejar a melhor estratégia terapêutica de maneira individual.

Por muito tempo, o cateterismo cardíaco (com teste de vasorreatividade pulmonar aguda, TVA) foi considerado o padrão-ouro para avaliação de HP-CC. Na maioria dos centros terciários, a informação fornecida pelo cateterismo ocupa uma alta posição hierárquica no processo de decisão pela operação de pacientes com HP-CC. Além disso, subclassificações da HP-CC conforme a gravidade da doença são baseadas em parâmetros hemodinâmicos. Entretanto, nem a obtenção nem a interpretação dos dados do cateterismo são fáceis, em especial na população pediátrica, por várias razões:

  • 1- o procedimento, em geral, é realizado sob anestesia geral, com ventilação mecânica e relaxamento muscular, estando, portanto, fora das condições fisiológicas;

  • 2- até mesmo a hipotensão sistêmica leve (como a consequente à hidratação inadequada relacionada aos efeitos dos anestésicos) impossibilita a análise dos resultados em indivíduos com shunts sistêmico-pulmonar;

  • 3- a medida direta do consumo de oxigênio, essencial ao cálculo dos fluxos sanguíneos pulmonar e sistêmico, não é realizada em muitas instituições;

  • 4- óxido nítrico inalante é caro, não estando disponível em muitos centros, o que limita o desempenho do TVA; sabe-se ser inapropriada a exposição da circulação pulmonar a oxigênio ~100% para se testar a vasorreatividade, pois leva a resultados imprecisos; e

  • 5- não há consenso quanto ao protocolo para o TVA na população pediátrica, não se correlacionando a magnitude da resposta com o desfecho em CC.3 O cateterismo cardíaco permanece uma etapa importante na avaliação de HP-CC,4 mas, devido a essas dificuldades, seus dados devem ser considerados como parte do cenário diagnóstico integral.

Na era das drogas específicas para manejo da HP, tentou-se tratar pacientes inoperáveis (indivíduos mais idosos com elevada resistência vascular pulmonar e, por vezes, shunt bidirecional através das comunicações) com o objetivo de torná-los operáveis. Tal abordagem ficou conhecida como “estratégia tratar e reparar”. Entretanto, não houve evidência suficiente para embasar tal recomendação de maneira generalizada.5 Se por um lado, não há garantia de que as drogas permanecerão efetivas no longo prazo, por outro, a persistência de HP grave é uma complicação preocupante após correção de shunts cardíacos congênitos, com significativa redução de sobrevida.2 Frequentemente, a reabertura da comunicação requer reoperação com circulação extracorpórea, um procedimento de alto risco para pacientes com HP. Em alguns casos, pode-se optar pelo reparo da lesão extracardíaca sem a correção da comunicação intracardíaca, ou ainda pelo fechamento parcial do defeito.

A escolha da melhor estratégia terapêutica na HP-CC, em especial na população pediátrica, deve ser feita em bases individuais. Às vezes, deve-se considerar a cirurgia mesmo sem a perspectiva de completa normalização hemodinâmica. Esse pode ser o caso, por exemplo, de uma criança com comunicação interventricular não restritiva e HP, com grave regurgitação mitral e ventrículo esquerdo quase insuficiente. Nesse caso, a cardiopatia esquerda provavelmente representará maior limitação à vida do que a própria HP. Assim, poderíamos tentar definir operabilidade no sentido geral, sem relacioná-la com qualquer ponto de corte de um índice específico. Um paciente deve ser considerado operável quando, com base em todos os dados diagnósticos, uma equipe multiprofissional estiver convencida de que a cirurgia pode ser realizada com riscos aceitáveis, vislumbrando-se significativos benefícios em médio e longo prazo.

Gostaríamos de complementar tal visão do problema apresentando um resumo das características clínicas e parâmetros diagnósticos que vêm sendo usados para a tomada de decisão sobre a cirurgia na HP-CC, com ênfase na população pediátrica (Tabela 1). Devem ser consideradas a idade do paciente e a complexidade da anomalia cardíaca. Por exemplo, enquanto atualmente o truncus arteriosus é corrigido com sucesso em uma fase precoce da vida, ele se associa ao desenvolvimento de grave vasculopatia pulmonar com o aumento da idade. A ecocardiografia é útil para avaliar a gravidade da HP e a adaptação ou a disfunção ventricular direita, pois parâmetros numéricos, além de informação anatômica, podem ser obtidos. A ecocardiografia é particularmente útil quando medidas repetidas são necessárias nos pacientes pediátricos, antes e depois da operação. Por fim, o cateterismo cardíaco com medida direta da resistência vascular pulmonar deve ser considerado em todos os pacientes com defeitos do septo cardíaco não restritivos e sem história de insuficiência cardíaca congestiva e comprometimento do desenvolvimento. Em lugar de se considerar apenas um único parâmetro, a melhor política é usar a abordagem diagnóstica holística nesses pacientes delicados.6 Quanto à decisão sobre a cirurgia, “negligência benigna” é provavelmente a melhor atitude humanista quando os riscos superam os benefícios. Caso contrário, a decisão pela cirurgia deve ser baseada em múltiplos aspectos diagnósticos e na opinião de uma equipe multiprofissional de especialistas.

Tabela 1 Características clínicas e parâmetros invasivos e não invasivos a serem considerados na tomada de decisão sobre cirurgia em pacientes pediátricos com hipertensão pulmonar associada a cardiopatia congênita 

Cenário favorável Parâmetros Cenário desfavorável
< 9 meses Idade > 2 anos
Defeito pré-tricúspide ou simples pós-tricúspide Complexidade da anomalia cardíaca Defeitos complexos
Truncus arteriosus
Transposição dos grandes vasos
Comunicação atrioventricular na síndrome de Down
Presente na história clínica / exame físico Insuficiência cardíaca congestiva Ausente
Congestão pulmonar
Comprometimento do desenvolvimento
> 93%, sem gradiente Saturação sistêmica de oxigênio, gradiente braço direito vs. extremidades inferiores < 90%, com gradiente
Parâmetros ecocardiográficos
> 2,5 Razão fluxo sanguíneo pulmonar/sistêmico (Qp/Qs) < 2,0
> 24 cm Integral velocidade-tempo do fluxo sanguíneo
nas veias pulmonares
< 20 cm
Esquerda para direita Direção do fluxo através da comunicação cardíaca Bidirecional
Cateterismo cardíaco
≥ 20% % de redução na razão resistência vascular pulmonar/sistêmica (Rp/Rs) a partir do basal, durante inalação de óxido nítrico (NO) < 20%
< 5,0 unidades Wood•m2 Nível de resistência vascular pulmonar obtida com NO > 8,0 unidades Wood•m2
< 0,27 Menor Rp/Rs obtida durante inalação de NO > 0,33

REFERÊNCIAS

1 Lindberg L, Olsson AK, Jögi P, Jonmarker C. How common is severe pulmonary hypertension after pediatric cardiac surgery? J Thorac Cardiovasc Surg. 2002; 123(6):1155-63. PMID: 12063463
2 Haworth SG, Hislop AA. Treatment and survival in children with pulmonary arterial hypertension: the UK Pulmonary Hypertension Service for Children 2001-2006. Heart. 2009; 95(4):312-7. doi: 10.1136/hrt.2008.150086
3 Giglia TM, Humpl T. Preoperative pulmonary hemodynamics and assessment of operability: is there a pulmonary vascular resistance that precludes cardiac operation? Pediatr Crit Care Med. 2010; 11(2 Suppl):S57-S69. doi: 10.1097/PCC.0b013e3181d10cce
4 Lopes AA, O'Leary PW. Measurement, interpretation and use of haemodynamic parameters in pulmonary hypertension associated with congenital cardiac disease. Cardiol Young. 2009;19:431-5. PMID: 19419599
5 Beghetti M, Galiè N, Bonnet D. Can "inoperable" congenital heart defects become operable in patients with pulmonary arterial hypertension? Dream or reality? Congenit Heart Dis. 2012; 7(1):3-11. doi: 10.1111/j.1747-0803.2011.00611.x
6 Lopes AA, Barst RJ, Haworth SG, Rabinovitch M, Al Dabbagh M, Del Cerro MJ, et al. Repair of congenital heart disease with associated pulmonary hypertension in children: what are the minimal investigative procedures? Consensus statement from the Congenital Heart Disease and Pediatric Task Forces, Pulmonary Vascular Research Institute (PVRI). Pulm Circ. 2014;4(2):330-41. doi: 10.1086/675995. Erratum in: Pulm Circ. 2014;4(3):531.