versão impressa ISSN 1808-8694
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.79 no.6 São Paulo nov./dez. 2013
http://dx.doi.org/10.5935/1808-8694.20130132
A Síndrome de Apneia Obstrutiva do Sono (SAOS) define-se como um distúrbio da respiração durante o sono e caracteriza-se por uma obstrução parcial prolongada da via aérea superior e/ou obstrução completa intermitente, que interrompe a ventilação normal durante o sono e a estrutura normal do sono1.
A SAOS da criança surgiu como um tema importante, não só devido à sua alta prevalência, mas também por se associar a diferentes comorbidades, algumas das quais podem ter implicações futuras na vida adulta. Além disso, está agora bem estabelecido que a sua fisiopatologia é diferente da SAOS do adulto. Apesar da sua prevalência ainda não ser conhecida, estima-se que afeta 1%-2% das crianças, sendo mais frequente entre os 2 e os 8 anos, época em que há maior hipertrofia do anel de Waldeyer2.
A SAOS constitui a principal indicação para a realização de amigdalectomia e adenoidectomia nas crianças. Nas últimas duas décadas, constatou-se uma diminuição progressiva do número de cirurgias de adenoamigdalectomia por infecções recorrentes e um aumento do seu número por SAOS3. A cirurgia tem-se demonstrado eficaz no controle das sequelas neurocognitivas da SAOS, tais como o baixo rendimento escolar e a síndrome de hiperatividade e déficit de atenção; na melhoria da fração de ejecção ventricular esquerda e direita, e na diminuição dos níveis de biomarcadores inflamatórios4. No entanto, a SAOS da criança permanece subdiagnosticada5 e, portanto, subtratada. A polissonografia é, atualmente, o exame padrão ouro no diagnóstico da SAOS na criança; no entanto, é um exame dispendioso, demorado e nem todos os laboratórios do sono fazem este exame na criança. O diagnóstico correto e a decisão de quando intervir cirurgicamente é difícil devido à limitada disponibilidade de medidas objetivas na determinação do grau de gravidade da SAOS.
Recentemente, Franco et al.6 desenvolveram um questionário para avaliar o impacto da SAOS na criança e nos seus cuidadores baseado em 18 perguntas. Este instrumento, designado de OSA-18, inquire os cuidadores em cinco domínios: distúrbios do sono, sintomas físicos, sintomas emocionais, função diurna e preocupações do cuidador; cada item tem uma pontuação numa escala ordinal de 7 pontos (de 1-"nunca" a 7-"sempre").
O questionário OSA-18 demonstrou ser simples e de rápida realização, podendo ser utilizado no contexto clínico ou em estudos de investigação. A sua validade foi estabelecida na população de língua inglesa.
O objetivo do nosso trabalho foi traduzir, adaptar culturalmente e validar a versão portuguesa do OSA-18 (OSA-18-pv).
O questionário OSA-18 original (Anexo 1) foi vertido por dois clínicos bilíngues e, seguidamente, traduzido novamente para a língua inglesa, e, finalmente, obteve-se a versão em língua portuguesa.
Este estudo foi realizado entre março 2011 e março 2012, na consulta específica da Síndrome Obstrutiva de Apneia do Sono da Criança, no Centro Hospitalar do Alto Ave, em Guimarães, Portugal. O protocolo foi aprovado pela Comissão de Ética da instituição. Os critérios de inclusão foram (1) idade entre 2 e 12 anos; (2) história de distúrbio respiratório do sono por um período superior a 3 meses sugestivo de SAOS. Os critérios de exclusão foram (1) existência de dismorfias craniofaciais, (2) distúrbios psiquiátricos (exceto déficit de atenção e hiperatividade) e (3) doenças neuromusculares. O questionário foi preenchido pelos cuidadores das crianças, no contexto de consulta, na presença de um médico. Um pré-teste com 10 questionários foi realizado para avaliar as dificuldades que a escala podia apresentar e se o entrevistado tinha compreendido devidamente as perguntas. Algumas correções foram realizadas considerando o contexto cultural e socioeconômico português. A versão final do OSA-18 (Anexo 2) foi consequentemente aplicada aos primeiros 51 cuidadores das crianças que perfaziam os critérios e com diagnóstico clínico de SAOS.
A informação recolhida foi introduzida numa base de dados informatizada desenvolvida, especificamente, pelo departamento de informática do hospital. Os dados foram tratados com o software de análise estatística SPSS (Statistical Package for the Social Sciences), na sua versão 19 (SPSS, Inc, USA).
Uma análise estatística dos dados demográficos e clínicos foi realizada (idade, sexo, índice socioeconômico de Graffar7, nível de escolaridade dos cuidadores, antecedentes de amigdalites de repetição, classificação de Friedman8 para avaliação da posição da língua e do grau de hipertrofia amigdalina, avaliação da hipertrofia adenóidea).
A validação do questionário foi realizada segundo o seu grau de consistência interna (modelo de Cronbach α) por meio do nível de homogeneidade entre os diferentes itens do questionário (adequado se > 0,70).
Para variáveis quantitativas, uma correlação entre cada item individual e a pontuação total do OSA-18-pv foi avaliada utilizando o coeficiente de Pearson. Uma correlação de Pearson superior a 0,20 indica a existência de validade convergente.
A amostra era composta por 51 crianças caucasianas, 35 eram do sexo masculino (69%), 16 eram do sexo feminino (31%) e a média de idade era de 5 ± 2 anos (faixa de 2-11 anos), com quartis superiores e inferiores de 4 e 6 anos.
Segundo a classificação socioeconômica de Graffar, uma criança pertencia à classe I (2%), duas à Classe II (4%), 35 à Classe III (69%), 13 à Classe IV (25%) e nenhuma à classe V.
Dois dos cuidadores (4%) concluíram o ensino superior, três (6%) tinham completado o Ensino Secundário ou Superior Técnico, 11 (22%) possuíam curso secundário incompleto ou Inferior Técnico, 35 (69%) completaram o ensino primário.
Quando avaliamos a existência de história de amigdalites recorrentes, 26 crianças (51%) preenchiam os critérios de Paradise9. No exame físico, 31 crianças (61%) apresentaram grau de hipertrofia amigdalina de Friedman de 3 ou 4; e os restantes 20 (39%) um grau 2. A posição da língua, segundo a classificação de Friedman, era grau I em 18 crianças (35%) e grau II nas restantes 33 crianças (65%). O grau de hipertrofia adenóidea foi avaliado por cefalometria, determinada pela relação entre a largura do tecido adenóideo e o diâmetro ântero-posterior da nasofaringe, após desenhar uma linha tangencial à sincondrose esfeno-occipital intersectando o palato mole. Quinze porcento das crianças apresentavam hipertrofia adenóidea de grau 2 (com razão adenoide-nasofaringe de 26%-50%), 26% de grau 3 (razão de 51% a 75%) e 59% de grau 4 (razão > 75%).
O inquérito foi concluído durante a consulta, na presença do clínico. O tempo médio de conclusão do questionário foi de 7 minutos (entre 4 e 13 minutos). Cinco participantes (10%) consideraram o questionário de difícil compreensão. Relativamente ao item "distúrbios do sono", a percentagem de crianças que apresentaram uma pontuação de cinco ou superior (o que significa que o sintoma estava presente, pelo menos, "uma boa parte do tempo") foi de: 76% para o ronco alto, 41% para pausas respiratórias durante o sono, 33% para sensação de asfixia e 53% para o sono fragmentado ou inquieto. Relativamente ao item "sintomas físicos", a respiração bucal esteve presente, pelo menos, uma "boa parte do tempo", em 37 crianças (73%), as infecções respiratórias foram frequentes em 18 (35%), a obstrução nasal e rinorreia em 27 (53%), e disfagia em 11 (22%). Os sintomas emocionais (item 9-11) e as funções diurnas (item 12-14) foram os dois domínios com a pontuação média mais baixa. Cerca de 59% dos cuidadores sentiam-se preocupados com a saúde da criança, 59% também sentiram a preocupação de que a criança não estava respirando ar suficientemente, 33% consideraram que esses problemas interferiam com o desempenho nas atividades diárias e 33% sentiam-se frustrados com a condição da criança na maior parte do tempo (Tabela 1).
Tabela 1 OSA-18-PV - Respostas aos itens individuais de 51 crianças usando uma escala de 7 pontos (1) nunca, 2) quase nunca, 3) poucas vezes, 4) algumas vezes, 5) bastantes vezes, 6) quase sempre, 7) sempre).
Item | Subgrupo | Conteúdo | Respostas do exame com uma pontuação ≥ 5 (%) | média da pontuação por grupo |
1 | Distúrbio do sono | Ronco alto | 39 (76) | |
2 | Distúrbio do sono | Pausas na respiração | 21 (41) | 4,64 |
3 | Distúrbio do sono | Engasgos/respiração ofegante | 17 (33) | |
4 | Distúrbio do sono | Sono fragmentado | 27 (53) | |
5 | Sintomas físicos | Respiração bucal | 37 (73) | |
6 | Sintomas físicos | Resfriados/IVAs | 18 (35) | 4,25 |
7 | Sintomas físicos | Rinorreia | 27 (53) | |
8 | Sintomas físicos | Disfagia | 11 (22) | |
9 | Problemas emocionais | Oscilações de humor | 11 (22) | |
10 | Problemas emocionais | Agressividade/hiperactividade | 15 (29) | 2,80 |
11 | Problemas emocionais | Problemas disciplinares | 9 (18) | |
12 | Problemas do cotidiano | Hipersonia | 8 (16) | |
13 | Problemas do cotidiano | Defice de atenção | 12 (23) | 2,88 |
14 | Problemas do cotidiano | Dificuldade em acordar | 10 (20) | |
15 | Opinião do informante | Preocupação com a saúde da criança | 30 (59) | |
16 | Opinião do informante | Pensa que criança não está a receber ar suficiente | 30 (59) | 4,18 |
17 | Opinião do informante | Perda de actividades diárias | 17 (33) | |
18 | Opinião do informante | Frustração do cuidador | 17 (33) |
Uma análise de confiabilidade foi realizada em SPSS por meio da análise da consistência interna pelo alfa de Cronbach com um resultado de 0,821, considerando todos os itens da investigação. A validade convergente foi averiguada usando o teste de correlação de Pearson, e cada item questionado tinha uma correlação estatisticamente significativa com a pontuação total do OSA-18 e apresentou um coeficiente de Pearson superior a 0,20 (Tabela 2).
Tabela 2 Correlação de Pearson entre cada item individual e a pontuação total de OSA-18-pv e nível de significância (n = 51).
Item | Conteúdo | Correlação de Pearson com OSA-18-pv nível Pontuação | Total Significância(p) |
1 | Ronco alto | ,528** | ,000 |
2 | Pausas na respiração | ,410** | ,001 |
3 | Engasgos/respiração ofegante | ,378** | ,003 |
4 | Fragmentação do sono | ,454** | ,000 |
5 | Respiração bucal | ,452** | ,000 |
6 | Resfriados frequentes/ IVAs | ,498** | ,000 |
7 | Rinorreia | ,612** | ,000 |
8 | Disfagia | ,405** | ,002 |
9 | Alterações de humor | ,623** | ,000 |
10 | Agressividade/ Hiperatividade | ,607** | ,000 |
11 | Problemas disciplinares | ,377** | ,003 |
12 | Hipersonia | ,371** | ,004 |
13 | Déficit de atenção | ,318* | ,011 |
14 | Dificuldade em acordar | ,236* | ,048 |
15 | Cuidador preocupado com a saúde da criança | ,541** | ,000 |
16 | Cuidador pensa que a criança não está a receber ar suficiente | ,695** | ,000 |
17 | Falha nas atividades diárias | ,699** | ,000 |
18 | Frustração do cuidador | ,704** | ,000 |
*Correlação é significativa no nível de 0,05 (1-tailed).
**Correlação é significativa no nível de 0,01 (1-tailed).
Com base na pontuação total do OSA-18-pv, o impacto da SAOS na qualidade de vida era leve em 14 casos (28%), moderado em 22 (43%) e grave em 15 (29%) (Tabela 3).
Tabela 3 Índice de impacto na qualidade de vida da SAOS em 51 crianças.
OSA-18-pv Pontuação total | Impacto na qualidade de vida | Frequência (n) | Percentagem (%) |
< 60 | Leve | 14 | 27,5 |
[60-80] | Moderado | 22 | 43,1 |
≥ 80 | Grave | 15 | 29,4 |
O OSA-18 é um teste fácil e rápido, com alta confiabilidade e consistência, para avaliar os aspectos subjetivos na qualidade de vida das crianças com SAOS6. Neste estudo, demonstrou-se que o OSA-18-pv é uma tradução adequada da sua versão em inglês, como demonstrado pela alta confiabilidade com um alfa de Cronbach de 0,821 e alta consistência com uma correlação entre os itens individuais e a pontuação total com coeficiente Pearson > 0,20 e p < 0,05. Os cuidadores das crianças acharam o questionário de fácil compreensão, ainda que os cuidadores de nível de educação baixo e os de nível socioeconômico médio-baixo, com apenas cinco (9,8%) indivíduos, consideraram-no de difícil compreensão.
Este questionário permite aos médicos uma melhor avaliação do impacto da SAOS na criança e na sua vida familiar, bem como selecionar melhor as diferentes categorias de tratamento quando combinada com outros parâmetros clínicos e objetivos. É um teste rápido e que pode ser usado por médicos de diferentes especialidades.
Por meio de um protocolo orientador e, por todos os dados terem sido recolhidos pelo mesmo investigador, foi possível a realização de um estudo consistente e fiável. O nosso protocolo da Síndrome de Apneia Obstrutiva do Sono10 inclui uma anamnese sistematizada, inquirindo os cuidadores acerca dos sinais e sintomas noturnos relacionados com a doença obstrutiva, incluindo parassonias, sinais diurnos e sintomas de hipertrofia adenoamigdalina e problemas cognitivos e comportamentais. A segunda parte do protocolo é a aplicação de OSA-18-pv aos cuidadores das crianças, a fim de avaliar o impacto da doença nas suas vidas. Finalmente, um exame físico completo, que inclui a avaliação otorrinolaringológica, uma análise do desenvolvimento estato-ponderal e um exame cardiovascular.
No questionário OSA-18-pv, os sintomas mais frequentemente referidos foram perturbações do sono (item 1 a 4), seguindo-se os sintomas físicos (item 5 a 9) e as preocupações do cuidador (item 16 a 18), resultados semelhantes aos encontrados nos estudos publicados na literatura6. Problemas emocionais e diurnos (item 10 a 15) foram os domínios com a menor pontuação média, apesar de serem sintomas frequentemente relacionados com a SAOS, segundo a literatura11, e interferirem significativamente na qualidade de vida dos doentes com SAOS. O OSA-18 tem ainda a vantagem de considerar os problemas neurocomportamentais das crianças, comparativamente à polissonografia, que não leva em consideração a componente psíquica.
O OSA-18-pv é um instrumento de fácil uso e rápido, importante na determinação da qualidade de vida dos doentes com SAOS e útil para ser utilizado em estudos de investigação futuros. São necessárias mais pesquisas científicas na área da SAOS infantil, a fim de determinar critérios de diagnóstico, de correlacionar dados dos questionários de qualidade de vida e os parâmetros clínicos com os resultados da polissonografia, de determinar quando é necessário realizar estudos poligráficos do sono/polissonografia, para permitir a referenciação atempada ao otorrinolaringologista e a identificação dos casos que beneficiem com a cirurgia.