versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.12 Rio de Janeiro dez. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320172212.19782016
Transtornos mentais constituem a maior carga de incapacidade no mundo atual: no Estudo Global da Carga de Doenças de 2010 (Global Desase Burden Study 2010), os transtornos mentais e o uso de substâncias contribuíram com a maior proporção (22,9%) de Anos de Vida Vividos com Incapacidade (YLD). Os transtornos depressivos são particularmente importantes a serem investigados: na categoria de transtornos mentais e de uso de substâncias, os transtornos depressivos contribuíram com a maior proporção de YLD1. Esse padrão de carga de morbidade existe também no Brasil. Schramm et al.2 mostraram que doenças neuropsiquiátricas também revelam a maior proporção de YLD, no Brasil como um todo (34%) e no Nordeste (32,9%). Apesar desse impacto grande, a saúde mental está menos estudada em comparação com a saúde física. Poucos estudos examinam a associação entre raça/cor da pele e saúde mental no Brasil, ou até mesmo incluem raça como uma unidade de análise.
No geral, existe pouca pesquisa no Brasil que examinou desigualdades em saúde segundo raça/cor da pele, principalmente porque os pesquisadores não incluem questões sobre raça/cor nos instrumentos de pesquisa. Chor e Lima3 atribuem isso a três potenciais hipóteses: aceitação do “mito de democracia racial”; dificuldades em classificar raça/cor da pele e a oposição entre classe social e raça/cor da pele. Mesmo que o Brasil nunca tenha tido uma política legal ou formal de segregação racial, raça teve (e tem) influência na sociedade brasileira, já que existem desigualdades claras4,5.
A raça/cor da pele pode interferir nas oportunidades educacionais, financeiras e sociais, que uma pessoa recebe na sua vida, e, por isso, pode influenciar na sua posição socioeconômica6,7. Um marco teórico corrente para explicar o caminho que liga raça/cor da pele à prevalência dos transtornos mentais é que a exposição ao estresse é o mecanismo causal8. Segundo Williams et al.9, raça pode influenciar a exposição ao estresse por dois caminhos: 1) estresse ligado à estrutura social, status social, e papéis sociais, i.e. o estresse causado pelo fato de que raça é um determinante de posição socioeconômica; 2) o estresse ligado às experiências de discriminação e racismo.
Muitos dos estudos que foram publicados sobre a associação entre raça/cor da pele e saúde mental foram feitos nos Estados Unidos9–14. Como existe uma grande diferença entre os contextos sociais, culturais, e históricos entre os Estados Unidos e o Brasil, os resultados dos estudos realizados lá não necessariamente vão representar a associação entre raça/cor da pele e saúde mental no Brasil. Assim, o objetivo deste estudo é revisar sistematicamente a literatura sobre o tema raça/cor da pele e saúde mental no Brasil para entender essa associação no contexto brasileiro.
A busca dos artigos foi realizada em duas bases para conseguir captar todas as pesquisas publicadas sobre esse tema, na literatura internacional, usando a base PubMed, e na literatura brasileira, usando a base Lilacs. A chave de busca foi elaborada separadamente para cada base. Palavras chave foram escolhidas de acordo com o tema, com a ideia de usar termos mais amplos para capturar o maior número de pesquisas relacionadas a esse tema.
Primeiro, os sistemas foram consultados para encontrar os termos controlados para as palavras chave. Para a base de PubMed, esse sistema é MeSH (Medical Subject Headings), e, para Lilacs, esse sistema é o DeCS (Descriptores en Ciências de la Salud). Termos livres também foram incluídos para incluir artigos que ainda não haviam sido colocados no índex.
A busca no PubMed foi realizada com a seguinte chave de busca: (“Depression”[Mesh]) OR “Depressive Disorder”[Mesh]) OR “Anxiety Disorders”[Mesh]) OR “Stress, Psychological”[Mesh]) OR “Minor Psychiatric Disorders”) OR “Psychiatric Morbidity”) OR “Psychological Distress”) OR “Common Mental Disorders”)) AND (“Ethnic Groups”[Mesh]) OR Race) OR “Skin Color”) OR Black) OR White)) AND Brazil*.
A busca na base Lilacs foi realizada com a seguinte chave de busca: tw:(“Distúrbios Psíquicos Menores” OR “Transtornos Psiquiátricos Menores” OR “Distúrbios Psiquiátricos Menores” OR “Morbidade Psiquiátrica” OR “Transtornos Mentais Comuns” OR “Depressão” OR “Transtorno Depressivo” OR “Transtornos de Ansiedade” OR “Estresse Psicológico”) AND (“Distribuição por Raça ou Etnia” OR “Grupos Étnicos” OR “Desigualdades em Saúde” OR Raça OR “Cor da Pele” OR Branco OR Branca OR Negro OR Negra OR Preto OR Preta) AND (instance: “Regional”) AND (db:(“Lilacs”). Nenhum limite em relação a data, o ano, ou a língua foi aplicado a essa busca. O software StArt (State of the Art through Systematic Review) foi utilizado para facilitar o processo de revisão sistemática.
Somente estudos realizados sobre a prevalência desses transtornos foram incluídos nessa revisão sistemática, e apenas aqueles em que o transtorno foi o objetivo do estudo. Estudos que não incluíram raça ou cor da pele como uma variável foram excluídos. Ainda foram incluídos estudos populacionais, ou de grupo populacional, todavia estudos sobre grupos não populacionais (como os referentes à saúde mental em pessoas com uma doença física) foram excluídos. Assim, todos os estudos incluídos reportaram pelo menos a prevalência do transtorno mental segundo raça/cor da pele. Outros estudos também incluíram a variável raça/cor da pele na analise multivariada. Como a categorização racial e as associações entre raça e desfechos de saúde podem ser determinados culturalmente, essa revisão foi limitada ao contexto do Brasil, e somente estudos realizados no Brasil foram aceitos.
Depois da busca inicial, os títulos e resumos foram lidos para determinar a relevância de acordo com os critérios de inclusão e exclusão. Como nem sempre raça/cor da pele foi o foco principal do estudo, os artigos não foram eliminados neste primeiro momento, caso não tivessem mencionado raça/cor da pele como uma variável no resumo.
A busca na PubMed resultou em 70 artigos, e a busca no Lilacs resultou em 192 (Figura 1). Do total de 262 artigos identificados pelas buscas de chave, 209 foram excluídos por não atenderem os critérios de inclusão e exclusão. Como o software StArt identificou a maioria dos artigos duplicados na busca, cinco resultados foram eliminados por causa de duplicidade. Os textos completos de 48 artigos foram obtidos na íntegra para determinar se reportaram sobre raça/cor da pele pelo menos na analise bivariada. Dos 48 artigos, 17 artigos cumpriram esse requisito. Salienta-se que as listas de referência desses 17 artigos foram consultadas, e três artigos a mais foram identificados e julgados relevantes para serem incluídos nessa revisão.
A ferramenta do Instituto de Joanna Briggs para Avaliar Prevalência Criticamente (JBI-PCT) foi utilizada para avaliar a qualidade dos estudos incluídos nessa revisão, já que os estudos incluídos são transversais. Essa ferramenta consiste de dez perguntas sobre vários elementos do estudo, como o cálculo de amostra, a amostragem, se a análise estatística usada foi apropriada, e controle de confundimento15.
Dos 20 artigos identificados, seis não cumpriram os critérios mínimos de qualidade como descritos no JBI-PCT, principalmente devido a falta de randomização na amostragem ou amostra insuficiente. Dessa forma, um total de 14 artigos foi incluído nesse estudo (Figura 1).
Como pode ser visto na Tabela 1, três dos 14 artigos incluídos foram realizados com a população geral16–18, um com mulheres com mais de 35 anos de idade19, três com idosos20–22, dois com adultos jovens23,24, e cinco com mulheres grávidas ou mulheres que tiveram filhos nascidos vivos recentemente25–29.
Tabela 1 Informações sobre os estudos incluídos.
Autores | População do Estudo | Instrumento Usado | Prevalência segundo raça/cor da pele | Medida de Associação (IC 95%) | |
---|---|---|---|---|---|
Estudos de Depressão | |||||
Munhoz et al., 201316 | Adultos, 20+ (n = 2925) | PHQ-9 ponto de corte ≥ 9 |
Prevalência não relatado |
Razão de Prevalência
Preta: 0.72 (0.56-0.94) Outras: 1.12 (0.89-1.41) |
|
Pavão et al., 201217 | Adultos, 20+ (n = 3863) | Auto-relato que foi informado pelo médico que tem depressão | Prevalência não relatado |
Odds Ratio
Mulata: 1.00 (ref) Preta: 1.35 (0.91-2.01) |
|
Almeida-Filho et al., 200418 | Adultos (n = 2302) | PSAD do QMPA ponto de corte ≥ 23 no PSAD combinado com ≥ 13 no sub-escala | Branca: 9.4% Morena: 12.0% Mulata: 15.7% Preta: 11.2%† Não Branca (combinado): 12.7%† |
Odds Ratio
Moreno: 1.30 (0.85-2.01) Mulata: 1.78 (1.09-2.90) Preta: 1.14 (0.70-1.87) Não Branca (combinado): 1.40 (0.94-2.09) |
|
Estudos de Sintomas Depressivos | |||||
Guimarães et al., 200919 | Mulheres com mais de 35 anos de idade (n = 1249) | PRIME-MD, casos determinados pelo resposta de “sim” para três perguntas | Branca: 42.3% Mulata: 46.4% Preto: 52.8%* |
-- | |
Bretanha et al., 200520 | Idosos, 60+ (n = 1593) | GDS-15, ponto de cort ≥ 6 | Branca: 17.0% Preta: 17.1% Amarela/Parda/Indígena: 25.0% |
Razão de Prevalência
Preta: 0.96 (0.65-1.43) Amarela/Parda/Indígena: 1.41 (1.07-1.86) |
|
Quatrin et al., 201421 | Idosos, 60+ (n = 1007) | GDS-30, ponto de corte ≥ 11 | Branca: 27.5% Não Branca: 22.7% |
-- | |
Blay et al., 200722 | Idosos, 60+ (n = 6961) | 6-item versão do SPES Schedule (SPES), ponto de corte ≥ 2 | Branca: 37.8% Afro-Brasileira: 46.5% Amarela: 34.8% Multirracial: 45.7%* |
Odds Ratio
Afro-Brasileira: 1.22 (0.98-1.53) Amarela: 0.90 (0.35-2.32) Multirracial: 1.21 (0.99-1.48) |
|
Estudos de Transtornos Mentais Comuns | |||||
Anselmi et al., 200823 | Adultos jovens, 23-24 (n = 4285) | SRQ-20, ponto de corte ≥ 8 para mulheres, ≥ 6 para homens |
Homens: Branca: 21.9% Negra: 26.9%* Mulheres: Branca: 30.0% Negra: 41.1%* |
Razão de Prevalência
Homens: Negros: 1.18 (0.98-1.42) Mulheres: Negras: 1.25 (1.09-1.43) |
|
Bastos et al., 201424 | Estudantes de graduação (n = 424) | GHQ-12, ponto de corte ≥ 3 | Branca: 37.0%; Parda: 32.8%; Preta: 51.6% |
Odds Ratio
Negra: 0.9 (0.5-1.4) |
|
Estudos de depressão relacionado à gravidez | |||||
Faisal-Curry e Menezes, 200725 | Mulheres grávidas (n = 432) |
Depressão antenatal: BDI, ponto de corte ≥ 16 |
Branca: 19.9% Não Branca: 19.1%† |
Odds Ratio
Não Branca: 0.95 (0.5-1.81) |
|
Ansiedade antenatal: STAI, ponto de corte ≥ 41 | Branca: 58.8% Não Branca: 63.0%† |
Não Branca: 1.19 (0.70-2.00) | |||
Melo et al., 201126 | Mulheres grávidas, 18+ (n = 555) | Depressão Antepartum EDPS, ponto de corte ≥ 12 | Branca: 34.9% Não Branca: 65.1% |
Razão de Prevalência
Não Branca: 1.48 (1.09-2.01) |
|
Depressão Pós-partum EDPS, ponto de corte ≥ 12 |
Branca: não relatado Não Branca: 70.0% |
Não Branca: 1.85 (1.11-3.08) | |||
Pereira et al., 200927 | Mulheres grávidas (n = 331) |
Depressão durante a gravidez: CIDI |
Branca: 14.1% Não Branca: 14.3% |
-- | |
Tannous et al., 200828 | Mulheres que se encontravam entre 28 e 87 dias após o parto (n = 271) |
Depressão pós-natal: EDPS, ponto de corte ≥ 13 |
Branca:16.6%, Não Branca: 28.1%† |
Razão de Prevalência
Não Branca: 0.80 (0.49-1.32) |
|
Ruschi et al., 200729 | Mulheres de 15-45 anos que se encontravam entre 31 e 180 dias após o parto (n = 292) |
Depressão pós-natal: EDPS, ponto de corte ≥ 12 |
Branca: 47.8% Preta: 17.4% Parda: 34.8% |
-- |
Se não designado como outro, o grupo racial de referência é o grupo de pessoas Brancas.
*valor de p < 0.05;
†valor de p não relatado.
Todos os estudos incluídos examinaram transtornos mentais. Três estudaram depressão16–18, três estudaram sintomas depressivos (também chamado morbidade psiquiátrica, ou morbidade de depressão)19–22, dois estudaram Transtornos Mentais Comuns23,24, cinco estudaram depressão pré-natal, pós-natal, ou durante a gravidez25–29 e somente um artigo, o de Faisal-Curry e Menezes de 200725 estudou ansiedade, mesmo que esta tenha sido uma palavra chave incluída na busca. Este artigo examinou depressão antenatal e ansiedade antenatal.
Vários estudos incluídos nessa revisão examinaram o mesmo desfecho de saúde mental, mas houve pouca concordância entre o instrumento utilizado para determinar a presença do desfecho. Dois instrumentos foram usados mais de uma vez, o Edinburgh Postnatal Depression Scale (EDPS) e o Escala de Depressão Geriátrica (GDS). Entretanto, dois dos três estudos que utilizaram o EDPS usaram um ponto de corte de 1226,29, e o outro usou um ponto de corte de 1328. Os dois estudos que utilizaram o GDS usaram versões diferentes; um usou a escala de 30 itens21, e o outro usou a escala de 15 itens20. Todos os estudos usaram instrumentos validados para uso em português brasileiro.
A Tabela 1 mostra que, nas analises bivariadas, doze estudos reportaram prevalência segundo raça/cor da pele18–29. Somente dez artigos incluíram raça/cor da pele na análise multivariada16–18,20,22–26,28; em um estudo, a ausência de raça/cor da pele no modelo multivariada foi devido ao uso de regressão step-wise27.
Dos estudos sobre depressão na população geral, um reportou prevalência por raça/cor da pele e achou uma prevalência maior nos grupos de não brancas (morena: 12,0%, mulata: 15,7%, e preta: 11,2%) em comparação com pessoas brancas (9,4%)18. Um dos estudos sobre Transtornos Mentais Comuns (TMC) achou uma prevalência maior entre as pessoas negras (51,6%) do que entre as pessoas brancas (37,0%), mas uma prevalência menor entre as pessoas pardas (32,8%), mas as diferenças não foram significantes24. Outro estudo sobre os TMC achou uma prevalência significantemente maior de TMC nas pessoas pretas/pardas do que em pessoas brancas, um achado observado para mulheres e para homens23.
Sintomas de depressão foram vistos mais em mulheres negras (52,8%) do que mulheres brancas (42,3%)19. Nos idosos, a prevalência de sintomas depressivos ou morbidade por depressão foi significantemente maior em não brancos que em brancos20,22. A diferença entre não brancos variou, um estudo mostrou uma prevalência maior em Afro-Brasileiros (46,5%) e no grupo multirracial (45,7%) que nos brancos (37,8%)22. Mas outro achou quase a mesma prevalência entre pessoas pretas e brancas (17,0% vs. 17,1%) e a prevalência maior foi somente nas pessoas asiáticas/mulatas/indígenas (25,0%)20. Um estudo achou uma prevalência menor nas pessoas não brancas (22,7%) que nas pessoas brancas (27,5%), mas a diferença não foi significante21. Para depressão antepartum e pós-parto, nenhum dos estudos achou uma diferença na prevalência estatisticamente significante em relação raça/cor de pele25–29.
As análises multivariadas mostraram resultados contraditórios, como pode ser visto na Tabela 1. Em um estudo, a razão de prevalência de depressão foi menor em negras em comparação com brancas (OR = 0,72; 95% IC: 0,56-0,94), e essa diferença foi estatisticamente significante16. Mas outro estudo da população em geral mostrou que os grupos de morenas (OR = 1,30; 95% IC: 0,85-2,01), mulatas (OR = 1,78; 95% IC: 1,09-2,90) e negras (OR = 1,14; 95% IC: 0,70-1,87) tem uma maior chance de ter depressão que brancas18. Essa diferença foi significante somente entre as mulatas. O estudo de BASTOS et al. (2014), feito com estudantes universitários de graduação, que ajustou por discriminação, não achou uma diferença significante entre pessoas pardas/negras e brancas em relação aos TMC (OR = 0,9; 95% IC: 0,5-1,4)24. Entretanto, outro estudo que não ajustou por discriminação achou uma prevalência de TMC 25% maior em mulheres pardas que em mulheres brancas (OR = 1,25; 95% IC: 1,09-1,43); o mesmo padrão foi observado em homens, mas a significância do achado foi limítrofe (OR = 1,18; 95% IC: 0,98-1,42)23.
Os estudos sobre idosos mostraram uma prevalência (PR = 1,41; 95% IC: 1,07-1,86) e uma chance (OR = 1,21; 95% IC: 0,99-1,48) maior de ter morbidade por depressão no grupo multirracial que nos brancos. Os idosos Afro-Brasileiros também mostraram uma chance maior (OR = 1,22; 95% IC: 0,98-1,53) de ter morbidade por depressão do que em brancos20,22.
Para depressão antepartum, um estudo achou uma associação significante com raça/cor, as não brancas tiveram uma prevalência 48% maior que brancas (OR = 1,48; 95% IC: 1,09-2,01)26. A prevalência de depressão pós-parto também foi significantemente maior para as não brancas (OR = 1,85; 95% IC: 1,11-3,08)26. Somente um estudo avaliou ansiedade, e foi sobre ansiedade antenatal, mas não achou resultados significantes25.
Na Tabela 2, pode-se ver que quase todas as associações significantes foram na direção positiva entre raça e transtornos mentais, especificamente, para o grupo de não brancas. A maioria dos estudos foi realizado nos estados de Rio de Janeiro ou Rio Grande do Sul, e a maioria dos estudos tiveram amostras em que mais do que 50% dos participantes eram brancos.
Tabela 2 Localização de estudo, descrição da amostra por raça/cor da pele, e direção de associação multivariada.
Autores | Localização do estudo | Descrição da amostra por raça/cor da pele | Direção da associação multivariadaa |
---|---|---|---|
Munhoz et al., 201316 | Rio Grande do Sul | 80.1% Branca 12.1% Preta 7.8% Outras |
Preta: - *
Outras: + |
Pavão et al., 201217 | Representação de todas as regiões do Brasil | 77.2% Mulata 22.8% Preta |
Mulata: (ref) Preta: + |
Almeida-Filho et al., 200418 | Bahia | 14.9% Branca 45.9% Morena 15.9% Mulata 20.7% Preta |
Morena: + Mulata + * Preta + |
Guimarães et al., 200919 | Rio de Janeiro | 43.3% Branca 40.1% Mulata 16.6% Preta |
-- |
Bretanha et al., 200520 | Rio Grande do Sul | 78.6% Branca 8.7% Preta 12.7% Amarela/ Parda/Indígena |
Preta: - Amarela/Parda/ Indígena: + * |
Quatrin, et al., 201421 | Rio Grande do Sul | 95.7% Branca 4.3% Não Branca |
-- |
Blay et al., 200722 | Rio Grande do Sul | 84.2% Branca 6.8% Afro-Brasileira 8.6% Multirracial |
Afro-Brasileira: + *
Multirracial: + * |
Anselmi et al., 200823 | Rio Grande do Sul | 78.1% Branca 21.9% Negra |
Negra: + * |
Bastos et al., 201424 | Rio de Janeiro | 51.4% Branca 32.8% Parda 15.2% Preta |
Negra: - |
Faisal-Curry e Menezes, 200725 | São Paulo | 83.0% Branca 17.0% Não Branca |
Não Branca (Depressão): - Não Branca (Ansiedade): + |
Melo et al., 201126 | Pernambuco; São Paulo | 45.5% Branca 54.5% Não Branca |
Não Branca: + * |
Pereira et al., 200927 | Rio de Janeiro | 45.0% Branca 55.0% Não Branca |
-- |
Tannous et al., 200828 | Porto Alegre | 64.6% Branca 35.4% Não Branca |
Não Branca: - |
Ruschi et al., 200729 | Espírito Santo | 49.0% Branca 16.8% Preta 34.2% Parda |
-- |
aGrupo de referência = Brancas.
*Estatisticamente Significante.
Os estudos transversais que existem sobre transtornos mentais e raça identificados nessa revisão sugerem que a prevalência de transtornos mentais é maior na população negra que na população branca. Essa conclusão não foi universal na literatura, mas as análises multivariadas que acharam associações estatisticamente significantes foram quase todas na direção positiva entre a raça/cor não branca e transtornos mentais; em todas essas análises foram incluídas variáveis socioeconômicas, como escolaridade ou renda familiar. Há necessidade de mais exploração cientifica para a obtenção de evidências mais firmes, especialmente porque quase a metade da literatura brasileira nesse tema foi conduzida com amostras homogêneas em termos de raça. Por exemplo, dos 14 estudos que incluíram raça como uma variável de análise, seis tiveram amostras que eram mais de três quartos compostas de brancos. Segundo o Censo de 2010, 47,7% da população é branca, e 50,7% é negra (composto de 7,6% de pretos e 43,1% de pardos)30; esses seis estudos foram realizados no Sul e Sudeste, onde há uma maior predominância da população branca. Dos estudos com uma amostra mais heterogênea, e, conseqüentemente, maior poder estatístico para avaliar associação, todas as associações significantes eram na direção positiva. Devem ser feitos esforços para realizar mais estudos sobre saúde mental em amostras variadas.
Não existe uma relação biológica entre raça e saúde, então não tem uma base biológica para a associação entre raça e saúde mental31,32. A necessidade de estudar essa associação vem da necessidade de identificar as populações com a maior carga de transtornos mentais, assim será possível entender quem mais precisa de tratamento e entender os fatores de risco que vem do ambiente, do contexto, e da sociedade para, eventualmente, prevenir esses transtornos. Como a associação não é biológica, ela pode ser alterada. Se os fatores de risco ou fatores causais fossem identificados, eles poderiam ser prevenidos e a associação entre raça/cor e transtornos mentais poderia ser reduzida ou até eliminada. Daí a importância da realização de pesquisas brasileiras para se entender esse problema no Brasil. A idéia que desigualdades raciais em saúde vêm da biologia e genética já foi descartada, e outras teorias já a substituíram. A teoria de estresse foi colocada, e foi apoiada por vários estudos que acharam que o estresse contribuiu muito na diferença entre as raças na prevalência de transtornos mentais8, e que a discriminação relacionada à raça é nociva a saúde9,33. Uma meta-análise relatou que discriminação percebida é diretamente relacionada à pior saúde mental, e que estudos experimentais mostraram que experiências de discriminação podem produzir um estresse psicológico intensificado34. Existe uma tendência que artigos sobre saúde mental focalizam a raça ou a discriminação. Mas nessa tendência falta um ponto importante, que a experiência de discriminação é igualmente nociva à saúde de todo mundo, mas a população negra sofre uma carga maior dos desfechos associados com discriminação porque essa população tem uma maior probabilidade de sofrer experiências de discriminação. Um estudo mostrou que Brasileiros negros tem uma chance 50% maior que brancos de ter uma experiência de discriminação, mesmo depois de ajustar por salário, escolaridade, status social e problemas de saúde35. Estudos que examinam a associação entre discriminação e saúde mental são importantes e necessários, mas eles devem também reportar os resultados segundo raça para mostrar quais grupos populacionais são mais afetados pelo risco que a discriminação estabelece.
A revisão aponta a necessidade de mais pesquisas sobre raça e saúde mental, e mais informação sobre a carga de transtornos mentais na população negra. A busca inicial dessa revisão achou 262 artigos. Muitos desses artigos mencionaram raça, mas só quando eles descreveram as características demográficas da amostra. Os que incluíram raça na análise, muitas vezes, não relataram a prevalência dos transtornos mentais segundo raça, ou eles não incluíram raça na análise multivariada. Mais esforços devem ser feitos para incluir raça nas análises.
Oito dos 14 estudos nessa revisão foram realizados no Sul ou Sudeste do Brasil, um padrão, no geral, observado nas pesquisas sobre saúde mental36. Diversidade geográfica também é importante na pesquisa, porque podem existir diferenças regionais na associação entre raça e saúde mental. Realizar pesquisa sobre raça e saúde mental fora do Sul/Sudeste também é necessário do ponto de visto estatístico. Como existe menos variedade racial no Sul, muitos dos estudos do Sul não têm números grandes de participantes negros para analisar essa relação. Quase a metade desses estudos teve uma amostra composta por percentuais de 75% de pessoas brancas. Ainda que seja possível examinar a associação entre raça/cor e transtornos mentais com uma amostra assim, o resultado será menos confiável em decorrência dos números pequenos para as outras categorias raciais na análise.
A categorização de raça/cor da pele foi diferente entre os estudos, e essa falta de normatização sobre como categorizar raça nesses estudos causa dificuldades em comparar os resultados. Alguns estudos usaram uma categorização binária de branca e não branca, e outros incluíram categorias a parte para mulata ou morena. Isso reflete a complexidade de categorização e percepção de cor da pele e raça no Brasil, mas também dificulta a interpretação da pesquisa. Por causa da diferença na categorização racial, não foi possível resumir uma estimativa da prevalência desses transtornos mentais segundo raça/cor da pele. Pesquisas futuras deveriam usar as cinco categorias do Censo na classificação da raça/cor da pele: branca, preta, parda, amarela e indígena. Para agrupar todas as pessoas Afro-Brasileiros, pesquisadores juntam as categorias preta e parda para formar a categoria “negra”. Assim a literatura sobre raça/cor da pele e saúde mental pode ser mais comparável, e pode estimar prevalência segundo essas categorias padronizadas. Obter uma estimativa para a população negra é um passo importante para identificar desigualdades em saúde, priorizar recursos e criar intervenções.
Esse estudo contribuiu para identificar a tendência na literatura em relação a associação entre raça/cor da pele e transtornos mentais, mas há importantes dificuldades com relação à comparabilidade dos estudos, principalmente, em função das diferenças em relação aos transtornos mentais estudados, as diferentes formas de categorizar raça/cor da pele das populações estudadas e as diferenças nos instrumentos e ponto de corte utilizados nos estudos analisados.
Entretanto, existem poucos estudos que tratam sobre esse tema no Brasil, o que, por si só, demanda examinar o pouco que existe para estimular o interesse para a realização de novos estudos.
Essa revisão serve para enfatizar o estado da literatura sobre esse tema: a literatura corrente é pequena e fragmentada. Poucos estudos nacionais sobre saúde mental incluem raça e, quando eles incluem raça, usam categorias raciais diferentes.