versão impressa ISSN 1413-8123
Ciênc. saúde coletiva vol.20 no.2 Rio de Janeiro fev. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015202.02352014
Rabies is an anthropozoonosis characterized by acute viral encephalitis with a lethality rate close to 100%, and it has undergone an epidemiologic transition in which the cycle involving chiroptera is increasing in importance. The scope of this research sought to analyze the rabies surveillance and control actions carried out in municipalities in the State of Rio de Janeiro. Questionnaires were distributed to a representative sample of zoonosis control service managers proportionately calculated in accordance with the Health Regions, according to the State Regionalization Guidance Plan. The data gathered was recorded and analyzed using descriptive statistical techniques. Based on the results attained, the conclusion reached is that the rabies surveillance and control actions were being unsatisfactorily conducted, especially for items related to the monitoring of vampire bat colonies, viral circulation surveillance, notification and monitoring of suspect or aggressive animals, quantification of dog population and population control of stray dogs. The surveillance and control of rabies was being neglected, and was not a priority in the health services in the municipalities evaluated.
Key words: Rabies; Epidemiology; Surveillance
A raiva é uma antropozoonose caracterizada por encefalite viral aguda, com letalidade próxima de 100%. Causada por um Lyssavirus, afeta e é transmitida por mamíferos, e se caracteriza por apresentar quatro ciclos epidemiológicos: o aéreo, envolvendo os morcegos; o rural, envolvendo os animais de produção; o urbano, envolvendo cães e gatos e o silvestre terrestre, envolvendo saguis, cachorros do mato e raposas, dentre outros animais1.
A raiva canina ainda ocorre de maneira generalizada em mais de 80 países, predominantemente naqueles não desenvolvidos. Metade da população mundial vive em áreas endêmicas de risco para a doença. Em diversos países e continentes a raiva canina já foi eliminada, como na América do Norte, Europa Ocidental, Japão e muitas áreas da América do Sul2.
O ciclo aéreo vem apresentando grande crescimento no País3, inclusive no Estado do Rio de Janeiro4. O risco de transmissão do vírus pelo morcego é sempre elevado, independentemente de espécie e gravidade do ferimento, logo, toda agressão por morcego é considerada grave1. As alterações ambientais que vêm ocorrendo nas áreas rurais vêm interferindo na distribuição espaçotemporal de diversas enfermidades zoonóticas5. Além da já citada questão ambiental6, a falta de planejamento urbano e projetos arquitetônicos e paisagísticos inadequados contribuem para o grande crescimento populacional de morcegos, hematófagos ou não, em áreas urbanas7.
Dentre os fatores de risco para a ocorrência da raiva destacam-se: baixa cobertura vacinal canina, presença de cães errantes, comunitários ou com acesso livre à rua, existência de casos suspeitos ou confirmados de raiva em cães e gatos1, alterações ambientais e ocorrência de casos de raiva em morcegos hematófagos6.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, um programa de controle da raiva em animais domésticos deve atuar, em ordem de prioridade, na vigilância epidemiológica, na imunização e no controle da população canina8. O Programa Nacional de Controle da Raiva (PNCR), criado em 1973 pelo Ministério da Saúde, tem como principais linhas de ação de controle da doença: a vacinação de cães e gatos, o tratamento profilático de pessoas expostas, a vigilância epidemiológica, o diagnóstico laboratorial, o controle da população animal e a educação em saúde. Importante salientar que a execução das ações do PNCR é atribuição do nível municipal, a partir das metas pactuadas com os níveis estadual e federal3.
Dentre as estratégias de prevenção e controle da raiva, destacam-se: monitoramento da circulação viral com encaminhamento de amostras para análise laboratorial, vacinação anual de 80% da população de cães e gatos1, observação clínica de cães e gatos, tratamento das pessoas expostas ao risco, controle de focos da doença e educação em saúde9. No caso da raiva rural, o gado deve ser vacinado periodicamente e deve-se trabalhar para a redução da população de morcegos hematófagos. Para tanto, deve-se utilizar a identificação de abrigos e animais atacados, realização de captura e aplicação de anticoagulantes nos morcegos hematófagos, estímulo ao uso de anticoagulantes nas mordeduras em animais de produção e estímulo à inviabilização de abrigos artificiais10.
Avaliação do PNCR revelou diversos problemas no programa, como baixa cobertura vacinal canina, baixo encaminhamento de amostras para diagnóstico em alguns estados, deficiência na integração dos órgãos de saúde pública e agropecuária na maioria dos estados e deficiência na vigilância epidemiológica da raiva silvestre3. Um dos grandes problemas em relação à imunização da população de cães e gatos deve-se à questão da determinação do quantitativo populacional existente. No intuito de evitar que parcela destes animais deixem de ser vacinados, deve-se realizar periodicamente o censo canino ou outro método que possibilite o dimensionamento populacional9. Estudos vêm demonstrando este problema aliado à consideração de populações como homogêneas em áreas que não o são, como fatores de insucesso para o controle da raiva em áreas urbanas11. No contexto do Programa de Controle da Raiva, do Ministério da Saúde, a relação habitante/cão é o parâmetro utilizado para definir a população canina a ser vacinada12.
Pesquisas vêm mostrando diferentes proporções entre as populações humanas e de cães e gatos, em diferentes regiões do Brasil11-15. Neste contexto, a adoção de uma razão única para toda a América Latina, como preconizado pela Organização Mundial de Saúde, pode trazer erros a essas estimativas das populações de cães12,16. Pesquisa em que foi estudado o perfil epidemiológico da raiva no Estado do Rio de Janeiro, no período 1981 a 2007, verificou cobertura vacinal de cães acima de 100% em diversas regiões do estado em diversos períodos, o que demonstra deficiência na estimativa da população animal existente4.
O objetivo da presente pesquisa foi analisar as ações de vigilância e controle da raiva desenvolvidas em municípios do Estado do Rio de Janeiro.
O Estado do Rio de Janeiro, com uma área total de 43.766,6 km2, situa-se na Região Sudeste e está dividido em 92 municípios. No que diz respeito ao âmbito do Sistema único de Saúde (SUS), é utilizada uma divisão geográfica em dez Regiões de Saúde, de acordo com o definido no Plano Diretor de Regionalização do Estado17,18.
A amostra, composta por 47 municípios, foi selecionada a partir da fórmula para estudo de proporções19, com nível de significância de 95%, frequência esperada de 50% e erro máximo permitido de 10%, considerando o total de municípios do Estado (N = 92). Foi utilizada a Amostragem Estratificada Proporcional20, ou seja, as Regiões de Saúde foram consideradas como estratos mais homogêneos quando comparadas ao Estado como um todo e, a partir daí, foi respeitada a proporcionalidade em relação à quantidade de municípios existentes em cada uma delas. Definida a quantidade de municípios a serem pesquisados em cada Região de Saúde (um na Capital, dois na Baía da Ilha Grande, quatro na Metropolitana II e na Norte, cinco na Baixada Litorânea, seis na Noroeste, Centro-Sul, Metropolitana I e na Médio-Paraíba e sete na Serrana), procedeuse à seleção dos mesmos, a qual foi feita por meio de sorteio aleatório simples.
Definida a amostra, foram feitas visitas aos referidos municípios, nos anos de 2012 e 2013, onde os responsáveis pelos serviços de controle de zoonoses responderam a um questionário estruturado com perguntas fechadas, previamente testado19,21, após assinarem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Os dados foram codificados, tabulados em planilhas do software Excel® e analisados com técnicas de estatística descritiva, com estudo de frequência e submissão ao teste do quiquadrado para verificação da significância estatística, com comparação entre as regiões.
A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina/ Hospital Universitário Antônio Pedro/UFF.
Somente 46,8% (n = 22) dos gestores de Serviços de Controle de Zoonoses (SCZ) eram servidores públicos estatutários, sendo que 27,7% (n = 13) do total recebiam gratificação ou comissão para o exercício da função. 40,4% (n = 19) eram cargos comissionados, caracterizados por serem de livre nomeação pelo gestor municipal, independentemente de serem ou não funcionários concursados do município. Quando se avalia a distribuição por Região de Saúde nota-se que as regiões da Baía da Ilha Grande (n = 2) e da Capital (n = 1) tinham 100% dos gestores como servidores públicos, comissionados e gratificados ou não. Deve-se atentar para o fato da região da capital ser composta somente por um município. Destaque, ainda, para a região Noroeste, com 67,7% (n = 4) e a Baixada Litorânea, com 60% (n = 3) de gestores servidores públicos, gratificados e comissionados ou não. Por outro lado, as regiões Centro-Sul (n = 4), Médio Paraíba (n = 4) e Metropolitana I (n = 4) apresentavam 66,7% e a região Serrana tinha 57,2% (n = 4) de cargos comissionados ou contratos por tempo determinado. As diferenças entre as regiões são estatisticamente significativas (p < 0,05).
Um dos itens firmados pelos municípios no Pacto de Gestão do SUS, em 2006, foi a adoção de vínculos de trabalhos que garantissem os direitos sociais e previdenciários22. Ainda assim, é comum que os empregos no setor saúde sejam preenchidos num contexto de precarização do trabalho, em que muitos dos direitos trabalhistas deixam de ser garantidos, gerando um ambiente de insegurança e ameaça ao trabalhador do SUS23. Como nas palavras de Faria e Dalbello -Araújo24, os trabalhadores precarizados do SUS encontram-se “imersos em um ambiente de instabilidade e vivenciando cotidianamente sentimentos de impotência, desvalorização, angústia, sofrimento e tensão frente à possibilidade de demissão e suas consequências”. O fato do gestor de um SCZ ser um servidor de carreira pública tor-na-se interessante, pois ele permite, de certa maneira, a continuidade das ações implementadas. Isso se dá porque, dentre as vantagens do regime estatutário, segundo os próprios gestores municipais do SUS, encontra-se a permanência e o vínculo22.No que diz respeito à escolaridade dos gestores de SCZ, 95,7% (n = 45) destes tinham nível superior completo e 4,3% (n = 2) nível médio. Dos gestores de nível superior, 48,9% (n = 22) eram pós-graduados em nível de especialização, 8,9% (n = 4) em nível de mestrado e 2,2% (n = 1) em nível de doutorado. Quando se avalia a distribuição por Região de Saúde encontra-se certa homogeneidade, com as regiões da Capital (n = 1), Baixada Litorânea (n = 5), Centro-Sul (n = 6), Médio Paraíba (n = 6), Metropolitana II (n = 4), Noroeste (n = 6), Norte (n = 4) e Serrana (n = 7) apresentando 100% de gestores com nível superior completo. As diferenças entre as regiões são estatisticamente significativas (p < 0,05).
Quanto à formação em nível de graduação dos gestores de SCZ verificou-se que 80% (n = 36) eram médicos veterinários, 13,3% (n = 6) eram biólogos e 6,7 % (n = 3) eram graduados em outra área. Na distribuição por Região de Saúde, observa-se o predomínio dos médicos veterinários em todas as regiões. As diferenças entre as regiões são estatisticamente significativas (p < 0,05).
É importante que os SCZ sejam geridos por médicos veterinários, pois dentre as competências privativas desta profissional encontra-se a assistência técnica e sanitária aos animais. Dentre as competências não privativas encontra-se o exercício de atividades ou funções relacionadas ao estudo e à aplicação de medidas de saúde pública no tocante às zoonoses25. Além disso, é de competência privativa do médico-veterinário o exercício das funções de direção, assessoramento e consultoria, em quaisquer níveis da administração pública cujas atribuições envolvam, principalmente, aplicação de conhecimentos inerentes à formação profissional do médico-veterinário26. A gerência dos programas de controle de zoonoses e a responsabilidade técnica de SCZ devem ser exercidas por médicos veterinários. Já a coordenação dos programas pode ficar a cargo dos biólogos27.
Ações educativas sobre raiva eram desenvolvidas em 95,7% (n = 45) dos municípios. Em 36,2% (n = 17) eram realizadas somente atendendo à demanda, em 31,9% (n = 15) anualmente e em 17% (n = 8) somente no período de campanha de vacinação. Os municípios que não realizavam nenhuma ação pertenciam às regiões Médio Paraíba e Norte. As diferenças entre as regiões são estatisticamente significativas (p < 0,05).
A OMS considera a educação apropriada a cada realidade um dos sustentáculos que vêm garantindo o sucesso dos programas de controle da raiva em diversos países do mundo2. Pesquisa realizada em Recife, PE, mostrou que em relação à posse responsável, 92,2% dos indivíduos entrevistados associavam cuidados com os animais à vacinação antirrábica e 100% deles vacinavam seus animais28. O manejo inadequado de cães, que pode levar a situações que incrementem a agressividades destes animais29, a quantidade de acidentes envolvendo os cães, inclusive com crianças30, e a comprovada circulação do vírus da raiva no Brasil, são justificativas para que as atividades educativas envolvendo a raiva sejam desenvolvidas durante todo o ano e reforçadas nas épocas de campanha de vacinação.
Houve registro de espoliação de cão ou gato por morcego hematófago somente em 19,1% (n = 9) dos municípios, mas em 6,4% (n = 3) dos municípios não souberam informar sobre esta situação, logo, a quantidade pode ser um pouco maior. Estes registros ocorreram na Capital (n = 1), região Médio Paraíba (16,7% dos municípios/n = 1), Metropolitana I (50% dos municípios/n = 3), Metropolitana II (50% dos municípios/n = 2), Noroeste (16,7% dos municípios/n = 1) e Serrana (14,3% dos municípios/n = 1). As diferenças entre as regiões são estatisticamente significativas (p < 0,05).
A ocorrência de raiva transmitida por morcegos vem crescendo consideravelmente no Brasil. Há diversos estudos em diferentes regiões apontando este crescimento, além da mudança de perfil epidemiológico da doença31-33, principalmente na zona rural33. No Estado do Rio de Janeiro esta mudança de perfil epidemiológico já foi identificada em diversas regiões4. Tal fato torna-se mais preocupante por causa do crescimento que vem sendo observado nas populações morcegos nas áreas urbanas34-36.
Espoliações de humanos por morcegos hematófagos foram registradas somente em 14,9% (n = 7) dos municípios, mas 12,8% (n = 6) não souberam precisar esta informação, logo, o número de registros positivos pode ser maior. Tais registros ocorreram nas regiões da Baixada Litorânea em 20% (n = 1) dos municípios, Médio Paraíba em 33,3% (n = 2), Metropolitana I em 16,7% (n = 1), Metropolitana II em 25% (n = 2), Norte em 25% (n = 1) e Serrana em 14,3% (n = 1). As diferenças entre as regiões são estatisticamente significativas (p < 0,05).
Os humanos são considerados fontes secundárias de alimentação para os morcegos hematófagos, só sendo espoliados quando há escassez de animais. O risco maior ocorre para os indivíduos de baixa renda e que vivem em moradias precárias37. A quantidade de registros de espoliação de humanos por morcegos encontrada na presente pesquisa pode ser considerada baixa, o que está de acordo com diversas pesquisas, nas quais este tipo de espoliação costuma ter baixa prevalência quando comparada com aquelas envolvendo outras espécies38-40.
Somente 8,5% (n = 4) dos municípios realizavam monitoramento de colônias de morcegos hematófagos, sendo um município na Capital, um na região Metropolitana II, um na Noroeste e um na Serrana. As diferenças entre as regiões são estatisticamente significativas (p < 0,05).
O cadastro e monitoramento de colônias de morcegos é uma atribuição, a princípio, do governo do Estado, através dos órgãos de Defesa Sanitária6. Dada a dimensão do Estado e as limitações da Defesa Sanitária fluminense, é de bom alvitre que o município também desenvolva tal ação, apesar das dificuldades de recursos que possam existir, principalmente nas cidades de médio e grande portes41. Em pesquisa realizada no Estado do Rio de Janeiro por Oliveira et al.4 foi sugerido o incremento da ação de monitoramento das colônias de morcegos como forma de melhorar os resultados do Programa de Controle da Raiva e enfrentar a mudança do perfil epidemiológico da doença, com o crescimento da incidência em quirópteros.
Dos 47 municípios, somente 17% (n = 8) realizaram censo da população de cães no período avaliado. Na região da Baía da Ilha Grande, 100% (n = 2) dos municípios informaram ter realizado, enquanto no Médio Paraíba foram 50% (n = 2), na Centro-Sul e na Metropolitana I 16,7% (n = 1) e na Serrana 14% (n = 1). Nas demais regiões não foi realizado censo no período. As diferenças entre as regiões são estatisticamente significativas (p < 0,05).
No Estado do Rio de Janeiro é comum os municípios apresentarem coberturas vacinais acima de 100% da população animal estimada4, reflexo do desconhecimento do real tamanho das populações de cães e gatos. Quando a análise de séries históricas de cobertura vacinal mostram resultados constantemente acima de 80%, pode ser um indicativo de subestimativa da real população canina, sendo necessária a correção das metas. O censo ou outro método de dimensionamento da população canina, é que vai evitar a ocorrência de erros de estimativa populacional e, consequentemente, de cobertura vacinal42,43. Oliveira et al.44 também detectaram a carência de um censo que possibilitasse dados confiáveis sobre a população canina, em pesquisa realizada na Paraíba.
A meta de vacinação de cães contra raiva foi alcançada por 77% (n = 36) dos municípios nos três anos do período avaliado. A meta foi alcançada em somente dois anos em 4% (n = 2) dos municípios e em somente um ano em 6% (n = 3) dos municípios. Treze por cento (n = 6) dos municípios não alcançaram a meta em nenhum dos três anos. As regiões da Capital (n = 1), Baixada Litorânea (n = 5), Médio Paraíba (n = 6) e Noroeste (n = 6) cumpriram 100% da meta nos três anos. Não cumpriram a meta em nenhum dos três anos 50% dos municípios da Baía da Ilha Grande (n = 1) e da região Metropolitana I (n = 3), 16,7% (n = 1) da Centro-Sul e 14% (n = 1) da Serrana. As diferenças entre as regiões são estatisticamente significativas (p < 0,05).
A vacinação antirrábica gratuita em massa é o elemento mais eficaz para o controle e a erradicação da raiva urbana. Somente na América Latina cerca de 45 milhões de cães vêem sendo vacinados anualmente, levando a declínios significativos da enfermidade na região2. No Estado do Rio de Janeiro a campanha começou a ser realizada em 1983 e alcançou grande sucesso, com 100% dos municípios a realizando anualmente desde o início da década de 1990. Desde 2001 não é diagnosticado um caso da doença em cão ou gato no Estado4. O resultado encontrado na presente pesquisa, com o predomínio de alcance da meta ministerial, é comum no Brasil40,45,46. Apesar disso, deve-se atentar para o fato dos dados de cobertura vacinal nem sempre serem fidedignos tendo em vista a dificuldade de se conhecer o real tamanho da população de animais domésticos em cada município. Sendo assim, a ocorrência de subvacinação não pode ser descartada. Não se pode esquecer, também, que existe uma parcela da população que leva seus animais para serem vacinados exclusivamente em estabelecimentos privados e estes números não são computados nas campanhas de vacinação. Pesquisa realizada em Campo Grande, MS, mostrou que 16,7% dos proprietários vacinavam seus animais nestes locais11.
O encaminhamento de amostra de material biológico de cães ao laboratório para verificação da circulação viral do vírus da raiva foi realizado somente por 8,5% (n = 4) dos municípios nos três anos do período estudado. Além disso, 17% (n = 8) dos municípios encaminharam em pelo menos um dos anos do período avaliado, mas 4,3% (n = 2) não souberam precisar esta informação, logo, esta quantidade pode ser um pouco maior. Os municípios da Baixada Litorânea (n = 6), Metropolitana II (n = 4) e Centro-Sul (n = 6) não fizeram o encaminhamento em nenhum dos anos do período avaliado. Somente 50% (n = 1) dos municípios da Baía da Ilha Grande, 25% (n = 1) da Norte e 16,7% (n = 1) das regiões Metropolitana I e Noroeste conseguiram fazer o encaminhamento nos três anos do período avaliado. As diferenças entre as regiões são estatisticamente significativas (p < 0,05).
O pactuado entre os municípios e o Ministério da Saúde é que seja encaminhado para diagnóstico laboratorial material biológico de 0,2% da população canina, anualmente. Apesar disso, há indicação de que 0,1% já seja suficiente47. A raiva animal é considerada endêmica no Estado do Rio de Janeiro, havendo comprovadamente circulação do vírus em herbívoros e outros mamíferos4. A vigilância dessa circulação viral é muito importante para o controle da doença1, mas para que tal ação seja satisfatória e dê os resultados almejados há necessidade de laboratórios de referência bem localizados, bem estruturados e em quantidade suficiente. A dificuldade de encaminhar estas amostras é uma realidade no Brasil48,49. Acredita-se que a estrutura laboratorial do Estado do Rio de Janeiro seja insuficiente para o processamento da quantidade prevista e mal distribuída do ponto de vista espacial, dificultando o encaminhamento das amostras pelos municípios. De acordo com a OMS é altamente recomendável que a capacidade laboratorial permita a vigilância eficaz da raiva2.
No período avaliado, 77% (n = 36) dos municípios não encaminharam amostra de material biológico de morcego para diagnóstico de raiva em nenhum dos anos. O encaminhamento ocorreu nos três anos do período somente na Capital (100%/n = 1). Nas regiões Médio Paraíba, Metropolitana I e Metropolitana II, ocorreu em 16,7% (n = 1). Nas regiões da Baía da Ilha Grande, Baixada Litorânea, Centro-Sul e Norte não houve encaminhamento em nenhum dos anos. As diferenças entre as regiões são estatisticamente significativas (p < 0,05).
Conforme discussão anterior, o perfil epidemiológico da raiva no Brasil vem passando por um processo de alteração em que há um crescimento da importância dos quirópteros como fonte de infecção em detrimento dos cães. Até 2009, 41 espécies de morcegos já haviam sido identificadas no Brasil com o vírus da raiva35. Muitos morcegos, hematófagos ou não, vêm sendo encontrados infectados, inclusive no Rio de Janeiro50-52. O ciclo aéreo da raiva torna possível a circulação do vírus nas áreas urbanas. Neste contexto, o diagnóstico para a confirmação da circulação viral em quirópteros oportuniza o desenvolvimento de medidas de prevenção e controle53, principalmente quando se considera que os morcegos não hematófagos também vêm sendo encontrados infectados e têm um contato mais próximo com humanos e animais domésticos, expondo-os ao risco54.
A notificação ao Sistema Nacional de Agravos de Notificação (SINAN) das agressões de cães a humanos era realizada em todos os casos somente por 57% (n = 27) dos municípios, com destaque para os da região da Baía da Ilha Grande, onde 100% (n = 2) sempre notificavam e Centro-Sul e Médio Paraíba, onde 83,3% (n = 5) sempre notificavam. Importante notar que 14,9% (n = 7) não souberam informar se esta notificação era realizada e 6,4% (n = 3) não notificavam nenhum caso. Destes, 67,7% (n = 2) estavam localizados na região Noroeste e 33,3% (n = 1) na região Serrana. As diferenças entre as regiões são estatisticamente significativas (p < 0,05).
Estes resultados são semelhantes aos encontrados em levantamento feito no Estado do Rio de Janeiro, que mostrou que 60% dos municípios não faziam a notificação dos atendimentos antirrábicos4. Em Minas Gerais, Oliveira et al.40 também encontraram quantidade considerável de municípios silenciosos para o atendimento antirrábico humano.
A notificação no Brasil é considerada compulsória, de acordo com a Portaria nº 104/2011 do Ministério da Saúde55. Como visto, havia uma grande quantidade de municípios que não realizava integralmente as notificações e uma considerável quantidade de municípios em que o gestor do SCZ não soube informar se a notificação era ou não realizada, demonstrando falta de integração entre seu setor e o setor de Vigilância Epidemiológica. De acordo com a OMS os dados epidemiológicos devem ser recolhidos, processados, analisados e divulgados de maneira rápida entre os setores para permitir uma adequada vigilância da raiva2. No início dos anos 2000 já havia uma sinalização das dificuldades com os sistemas de informação envolvendo a raiva no Brasil3. Os dados epidemiológicos são fundamentais tanto para a profilaxia pós-exposição de humanos quanto para os veterinários adotarem as medidas de controle e bloqueio de foco1. A ausência de comunicação adequada entre os profissionais envolvidos na vigilância e no controle da raiva podem levar a falhas nestas atividades40.
Somente 49% (n = 23) dos municípios faziam acompanhamento de todos os casos de cães mordedores e suspeitos de raiva pelo período recomendado pelo Ministério da Saúde. Destaque para a Capital (100%/n = 1) e regiões Norte (75%/n = 3) e Centro-Sul (66,7%/n = 4). Nenhum dos casos era acompanhado em 21% (n = 10) dos municípios, com destaque para a região da Baía da Ilha Grande, onde 50% (n = 1) dos municípios não faziam acompanhamento. As diferenças entre as regiões são estatisticamente significativas (p < 0,05).
O cão que tenha agredido algum humano deve ser observado por dez dias, independentemente de encontrar-se sadio ou não no momento da agressão1. Dentre as agressões a humanos realizadas por outras espécies de animais, a maior ocorrência encontrada envolve os cães, atingindo até 90% dos casos38-40,56. Estudos alertam para o fato da ficha do SINAN para atendimento antirrábico não conter informação sobre a procedência do animal agressor, a qual é fundamental para que se possa rastreá-lo e acompanhá-lo18,40,56. Este fato pode estar atrapalhando ou inviabilizando o acompanhamento dos cães pela municipalidade, apesar da existência de um campo para “observações” onde tais dados poderiam ser anotados caso fosse implementado um protocolo para tal. Além disso, a inexistência de canis de observação e de recursos humanos e materiais suficientes para o acompanhamento domiciliar são considerados pontos críticos. é comum a inexistência de instalações apropriadas para o acompanhamento dos animais, principalmente nos municípios de menor porte, como foi identificado por Gomes et al.57 no Estado de São Paulo, onde mais de 68% dos municípios não contavam com as mesmas.
Apesar de 44,7% (n = 21) dos gestores de SCZs considerarem a densidade populacional de cães não domiciliados existentes em seus municípios como grande, proporção que chega a 87,3% (n = 41) se somados aos gestores que a qualificaram como mediana, somente 46,8% (n = 22) dos municípios desenvolviam algum tipo de ação em relação ao controle populacional. Dentre estas atividades eram realizadas ações educativas, esterilização gratuita ou subsidiada, projeto de adoção, recolhimento e manutenção em canil, dentre outras. O fato da maior parte dos municípios (53,2%/n = 25) não realizarem nenhuma ação é preocupante já que se trata de uma importante atividade de prevenção e controle da raiva1.
A superpopulação de cães não domiciliados é reconhecida57,58, variando de região para região em função da condição social59,60, da disponibilidade de abrigo e alimentos no ambiente9,61 e do tamanho do município13. Mas cães muitas vezes considerados pela população como não domiciliados, em função da falta de coleira ou identificação, são, na verdade, semi-domiciliados62-64. Estudo de dimensionamento da população de cães no interior de São Paulo encontrou 32% de cães semidomiciliados13. Em pesquisa realizada em Botucatu, SP, 53,7% dos entrevistados afirmaram que seus cães tinham acesso à rua, sendo que 69,4% sozinhos65. Em Curitiba, PR, até 2005, quase 90% dos cães recolhidos das ruas eram semidomiciliados66.
O grande percentual de municípios que não desenvolvem atividades de controle populacional de cães não domiciliados pode ser justificado: pelo descaso67; pela heterogeneidade social, política, econômica e cultural que acarreta respostas diferenciadas de acordo com cada realidade57; pela falta de informação sobre o assunto68; e pela falta de uma política nacional para o setor69.
As ações de vigilância e controle de fatores de risco para a raiva estavam sendo desenvolvidas de maneira insatisfatória no Estado do Rio de Janeiro, principalmente nos itens monitoramento das colônias de morcegos hematófagos, vigilância da circulação do vírus da raiva, notificação e acompanhamento de animais suspeitos ou agressores, quantificação da população de cães do município e controle populacional de cães não domiciliados. A vigilância e o controle da raiva estavam sendo negligenciados e não eram uma prioridade dos serviços de saúde dos municípios avaliados.