versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.32 no.6 Rio de Janeiro 2016 Epub 01-Jun-2016
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00001415
The objectives were to estimate the prevalence of non-adherence to Pap smear testing in women attending prenatal care and to identify associated factors. This was a cross-sectional population-based study in 308 women from a rural municipality (county) in Minas Gerais State, Brazil. Complex stratified cluster sampling was used. Statistical analysis used the chi-square test and logistic regression model with the variables that presented p-value ≤ 0.05 in the bivariate model. Prevalence of lack of Pap smear test was 21.3%. Among women 25 years or older, prevalence was 15.1%. Non-adherence was more common in young, single women and those with low schooling. Low schooling remained associated with non-performance of Pap smear (OR = 0.41), indicating that women with more schooling enjoyed higher odds of testing. Contact with the prenatal clinic did not determine guaranteed access to the test, thus indicating missed opportunities when opportunistic screening is employed.
Keywords: Uterine Cervical Neoplasms; Vaginal Smears; Women's Health; Health Surveys; Multivariate Analysis
Los objetivos fueron estimar la prevalencia e identificar factores asociados con la no realización del examen citopatológico del cuello de útero entre mujeres que frecuentaron el servicio prenatal. Se trata de un estudio transversal, de base poblacional, con 308 mujeres de un municipio del interior de Minas Gerais, Brasil. Se utilizó una muestra compleja con estratificación y conglomeración. Para el análisis estadístico se utilizó el test del chi-cuadrado y el modelo de regresión logística con las variables que presentaron un valor de p ≤ 0,05 en el análisis bivariado. La prevalencia de la no realización del examen fue de un 21,3%. Entre las mujeres con 25 años o más, la prevalencia fue de un 15,1%. La no adhesión fue más frecuente entre las mujeres jóvenes, solteras y con baja escolaridad. La escolaridad se mantuvo asociada con el resultado (OR = 0,41), indicando que las mujeres con más años de estudio tienen mayores oportunidades de realizar el examen. El contacto con el servicio de salud para la realización del examen pre-natal no fue determinante para garantizar el acceso al examen, indicando una pérdida de oportunidades respecto adonde el rastreo es por oportunidad.
Palabras-clave: Neoplasias del Cuello Uterino; Frotis Vaginal; Salud de la Mujer; Encuestas Epidemiológicas; Análisis Multivariante
Dentre os diversos tipos de neoplasias que acometem a mulher, o câncer do colo do útero tem merecido destaque em muitos estudos devido à sua alta frequência e por ser reconhecidamente uma neoplasia passível de prevenção. Apresenta uma história natural conhecida, que inclui etapas bem definidas e progressão lenta, possibilitando sua prevenção e detecção precoce, com um excelente prognóstico 1), (2.
No Brasil, para o ano de 2014, foram esperados cerca de 15.590 casos novos da doença, com risco estimado de 15,33 casos para cada 100 mil mulheres, configurando-se como um importante problema da Saúde Pública. Segundo as estimativas mundiais para o ano de 2012, o câncer do colo do útero foi o quarto tipo de câncer mais comum entre as mulheres, com 527 mil casos novos, apresentando maior incidência em países em desenvolvimento 3), (4.
Diversas pesquisas apontam para a associação entre a doença e o baixo nível socioeconômico, delimitando um perfil de morbimortalidade que reflete a iniquidade em saúde 3), (4), (5. Outros fatores também se encontram associados ao desenvolvimento da doença, como, por exemplo, início precoce da atividade sexual, múltiplos parceiros sexuais, tabagismo, multiparidade, entre outros. A incidência do câncer do colo do útero resulta, em especial, da persistência da infecção pelo HPV (papilomavírus humano) que, embora seja uma condição necessária, por si só não é causa suficiente para determinar o surgimento da doença 5), (6), (7.
O perfil epidemiológico do câncer do colo do útero contribuiu para a sua inclusão na agenda das políticas públicas em saúde do país. Atualmente, o Ministério da Saúde, valendo-se das diretrizes do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA), recomenda o rastreamento da doença entre as mulheres sexualmente ativas com idade entre 25 e 64 anos, mediante o exame citopatológico do colo do útero. Esse exame, também conhecido como teste de Papanicolaou, é considerado como um método efetivo, de baixo custo e de fácil execução. Deverá ser realizado a cada três anos, após dois exames negativos consecutivos, com intervalo anual 8), (9.
É reconhecido que os programas de rastreamento do câncer do colo do útero em conjunto com o tratamento precoce das lesões precursoras podem reduzir a incidência da doença. Para tanto, a cobertura mínima deve atingir 80% da população-alvo e seguir protocolos preconizados 3. No entanto, a elevada frequência desse tipo de câncer entre as mulheres no país sinaliza que as medidas adotadas para o rastreamento da doença podem não estar conduzindo aos resultados esperados 4), (6), (7.
Cabe ressaltar que a forma de organização do rastreamento do câncer do colo do útero no Brasil é baseada na demanda espontânea. Ao contrário do que acontece em países desenvolvidos, cujo rastreamento é organizado e conta com mecanismos para recrutamento da população-alvo, no Brasil a realização do exame citopatológico do colo do útero restringe-se às mulheres que buscam os serviços de saúde por diferentes razões. Esse tipo de rastreamento resulta em desigualdades no acesso e uso ineficiente de recursos 10.
No contexto da assistência à saúde da mulher, a procura pelos serviços de saúde para o pré-natal e puerpério pode configurar-se como uma oportunidade para ofertar a realização do exame citopatológico do colo do útero, principalmente para as mulheres que nunca o realizaram ou que estão em atraso, considerando a periodicidade recomendada pelo Ministério da Saúde 8), (11. Uma vez que o exame ginecológico faz parte da rotina pré-natal, é lógica essencial aproveitar a consulta para o a prevenção do câncer do colo do útero, bem como para o diagnóstico de suas lesões precursoras. Contudo, o que se observa na prática é que a oportunidade de fazer essa avaliação no pré-natal não está sendo bem aproveitada 12.
Dessa forma, reconhece-se como importante a realização de estudos de base populacional para identificar a prevalência de realização do exame citopatológico do colo do útero envolvendo mulheres que frequentaram o pré-natal. Além disso, essas pesquisas também podem oferecer informações para avaliar o impacto não só das ações de saúde direcionadas para o controle do câncer do colo do útero, mas também, de forma indireta, da assistência ao pré-natal, assessorando na definição de metas a serem alcançadas e no planejamento de ações voltadas às reais necessidades de saúde da população.
Nessa perspectiva, estudos de base populacional têm sido realizados em municípios brasileiros, utilizando-se amostras populacionais diversificadas, com o objetivo de avaliar a cobertura do citopatológico do colo do útero, apontando para um aumento progressivo na prevalência de realização desse tipo de exame 13), (14), (15. No cenário geográfico e conjuntural da presente pesquisa, notadamente onde não há registro de câncer, os trabalhos referentes a essa temática são escassos.
Com este estudo, objetivou-se estimar a prevalência e identificar fatores associados à não realização do exame citopatológico do colo do útero entre mulheres que frequentaram o pré-natal em um município do interior de Minas Gerais, cujo tipo de rastreamento é oportunístico, como acontece em todo país.
Trata-se de um estudo de delineamento transversal realizado a partir de um inquérito domiciliar com mães de filhos menores de dois anos, residentes, em 2010, na zona norte do Município de Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. A pesquisa faz parte de um estudo mais amplo, conduzido pelo Núcleo de Assessoria, Treinamento e Estudo em Saúde (NATES) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), intitulado Inquérito de Saúde do Município de Juiz de Fora, Minas Gerais, cujo objetivo foi avaliar o acesso aos serviços de saúde materno-infantil.
Juiz de Fora localiza-se na microrregião da Zona da Mata do Estado de Minas de Gerais. Sua população, no ano de 2010, era de 516.247 habitantes, ocupando uma área de 1.429km2. A região administrativa Norte concentra 23,6% da população do município em questão e possui a maior extensão territorial na área urbana.
Os critérios de inclusão foram mulheres com filhos menores de dois anos de idade na data da entrevista, residentes na zona norte do Município de Juiz de Fora. O processo de seleção ocorreu por meio de amostragem aleatória complexa. As unidades primárias de amostragem foram os setores censitários, perfazendo um total de 22. Para o sorteio, os setores foram agrupados em estratos definidos de acordo com as diferentes modalidades de atenção à saúde às quais a população encontrava-se adstrita: atenção primária (com Estratégia Saúde da Família ou atendimento tradicional), atenção secundária e área descoberta. A seleção dos setores foi feita com probabilidades proporcionais ao seu tamanho, de forma independente em cada estrato.
Como o estudo faz parte de uma pesquisa mais ampla, o cálculo do tamanho da amostra partiu de screening (contagem rápida) de crianças com até dois anos de idade, por meio de levantamento de informações em 20% da população - um a cada cinco domicílios foi selecionado por amostragem sistemática com o objetivo de identificar a existência de residentes pertencentes ao grupo de interesse. Informações secundárias sobre os endereços vizinhos àqueles visitados foram coletadas (dois localizados à esquerda e dois localizados à direita). Constituiu-se, desse modo, a base populacional a ser amostrada.
Posteriormente, as mães das crianças identificadas foram convidadas a responder o questionário referente às práticas de prevenção do câncer do colo do útero. Para tanto, considerou-se intervalo de 95% de confiança (IC95%), correção para populações finitas, efeito do plano amostral igual a 1,5 e possíveis perdas de aproximadamente 15% por recusa.
Com base no método de triagem rápida por amostragem, foi estimado um número de 763 domicílios com crianças de até dois anos de idade, o que, consequentemente, corresponderia ao total de domicílios que constituía a população de interesse. Entretanto, no momento da entrevista, foram identificados, de fato, 497 pertencentes ao grupo de interesse, pois as demais crianças encontradas nos domicílios restantes tinham idade acima de dois anos.
Ademais, as perdas somadas resultaram em um total de 152, incluindo mudanças de endereço ou a ausência da responsável pela criança na casa após serem realizadas três tentativas de contato em horários diferentes. Dessas perdas, as recusas corresponderam a 22 indivíduos. Ao final, foram aplicados 345 questionários. Desse total, 308 foram utilizados no presente estudo, sendo excluídos 37, dos quais nove foram respondidos em duplicidade por se tratar de uma mesma mãe com duas crianças menores de dois anos. Os demais, totalizando 28, foram excluídos por não terem sido respondidos pela mãe biológica.
Os dados foram obtidos por meio de um questionário estruturado em blocos temáticos, contendo questões referentes a situações demográficas e socioeconômicas da mulher, informações sobre o pré-natal, parto, puericultura, submissão ao citopatológico do colo do útero, além de dados relacio nados às características do domicílio e de seus moradores. Os entrevistadores eram estudantes provenientes da UFJF, que receberam treinamento para a realização das entrevistas, sendo acompanhados, avaliados e orientados durante todo o período da pesquisa de campo. Para o controle de qualidade das informações coletadas, 10% dos questionários foram avaliados por nova entrevista parcial.
Foram exploradas as associações entre o desfecho e algumas variáveis clássicas encontradas em estudos da mesma temática por intermédio das respostas ao questionário aplicado, agrupadas em três categorias: demográficas, socioeconômicas e uso dos serviços de saúde.
As variáveis demográficas foram as seguintes: idade (até 24 anos, de 25-35 anos, mais de 35 anos, considerando-se que a maior parte da amostra é constituída por mulheres jovens com filhos menores de dois anos); cor da pele autorreferida (branca e não branca); estrato em que se encontrava o domicílio (com ou sem cobertura pela Estratégia Saúde da Família); estado civil (solteira, casada, divorciada/viúva); número de gestações; número de filhos nascidos; indivíduo eleito como chefe da família; sexo e idade do chefe da família.
Entre as variáveis socioeconômicas, incluíram-se: saber ler e escrever; grau de escolaridade da mulher e do chefe da família (Ensino Fundamental ou menos, Ensino Médio ou mais); número de moradores do domicílio; situação de emprego do chefe da família (não trabalha, é empregado com carteira assinada, é empregado sem carteira assinada, trabalha por conta própria, é patrão/empregador, tem trabalho não remunerado); renda pessoal e renda per capita da família; classificação socioeconômica (A, B, C, D e E), segundo critérios da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP); recebimento de benefício do governo (Bolsa Família, aposentadoria, auxílio-doença, seguro-desemprego).
Quanto ao uso dos serviços de saúde, foram considerados: acompanhamento pré-natal (sim ou não); local (unidade básica de saúde - UBS, ambulatório de hospital, consultório particular, pronto-atendimento, centro de especialidades e outros) e tipo de serviço utilizado para o pré-natal (convênio, particular, Sistema Único de Saúde - SUS, ou misto); mês de início do pré-natal; número de consultas de pré-natal; realização do exame citopatológico durante o pré-natal (sim, não ou não sabe). As mulheres que nunca fizeram o exame também foram questionadas quanto aos motivos da não adesão. Optou-se pela escolha da variável dependente "não realização do exame citopatológico do colo do útero", sendo caracterizada como exame nunca realizado na vida.
Os dados primários resultantes da aplicação dos questionários foram codificados e digitados no programa Epi Info 3.5.1 (Centers for Disease Control and Prevention, Atlanta, Estado Unidos). Posteriormente, foram exportados, após críticas, revisões e correções de erros de digitação, para o pacote estatístico SPSS, versão 15.0 (SPSS Corp., Chicago, Estados Unidos), possibilitando a construção do banco de dados definitivo.
Inicialmente, a associação das variáveis independentes com o desfecho foi testada separadamente, utilizando-se o teste do χ2, selecionando-se aquelas que apresentaram um nível de significância menor ou igual a 0,05. A seguir, com o objetivo de medir a associação de uma variável independente, controlada pelas demais que mostraram associação com o desfecho na análise bivariada, realizou-se a análise multivariada por meio do modelo de regressão logística disponível no recurso complex sample do SPSS 15.0. Para tanto, as variáveis independentes (demográficas, socioeconômicas e relacionadas aos serviços de saúde) foram inseridas no modelo agrupadas em blocos, considerando-se como critério para ordem de inserção as que apresentaram maior significância estatística na análise bivariada, possibilitando a construção de um modelo final.
Tanto para a análise bivariada quanto para a multivariada, utilizou-se um banco de dados ponderado que permitiu considerar o peso de cada unidade amostral. Essa ação teve como objetivo obter resultados que pudessem descrever de forma mais fidedigna as características da população estudada.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFJF e obteve parecer favorável sob o no 277/2009, estando em conformidade com preceitos éticos, que incluem o anonimato dos sujeitos participantes, identificados apenas por números, e a assinatura do termo de consentimento depois de informados claramente a respeito da pesquisa.
Foram entrevistadas 308 mães de filhos menores de dois anos. A idade das mulheres variou de 14 a 44 anos, e 45,7% delas tinha idade entre 25 a 35 anos. A escolaridade predominante foi o Ensino Médio ou mais (40,6%). A maior parte das entrevistadas vivia com o companheiro (75,7%) e 49,8% informaram ser casadas. Em relação aos domicílios onde as mulheres residiam, verificou-se que 61,5% foram classificados no estrato econômico C, segundo a ABEP. A renda per capita domiciliar média foi de R$ 284,00.
Do total de mães que constitui a amostra, 66 (21,4%) nunca haviam realizado o exame citopatológico do colo do útero. Considerando apenas as mulheres com idade de 25 anos ou mais, para as quais o exame deveria ser obrigatoriamente indicado de acordo com a recomendação do Ministério da Saúde, a prevalência de não realização do exame foi de 15,1%. Dentre as mulheres que fizeram o citopatológico alguma vez na vida, 6,7% estavam com o exame em atraso (realizado há mais de três anos). Daquelas que informaram já ter realizado o exame alguma vez na vida, 48,2% encontravam-se na faixa etária de 25 a 35 anos, 63,4% referiram-se como não brancas, 77,8% viviam com um companheiro e 72,3% foram classificadas nas classes econômicas C, D e E.
A Tabela 1 mostra as características demográficas, socioeconômicas e relacionadas aos serviços de saúde para atendimento pré-natal das mulheres que nunca fizeram o exame citopatológico do colo do útero, comparadas às que estavam com a citologia atualizada. A maioria das mulheres que nunca realizou o exame era mais jovem (55,5%), considerava-se não branca (63,2%), era solteira (65,9%), tinha menor escolaridade (72,3%) e pertencia às classes sociais baixas (87,2%).
Tabela 1: Características demográficas e socioeconômicas das mulheres que realizaram o exame citopatológico do colo do útero alguma vez na vida, comparadas com as que nunca o realizaram.
As mulheres que nunca haviam realizado o exame citopatológico do colo do útero foram interrogadas em relação ao motivo. As respostas mais frequentes foram a falta de conhecimento sobre o exame, no que se refere à finalidade e à importância, e o fato de julgarem não ser necessário realizá-lo por se sentirem saudáveis. Apenas 5,7% dessas mulheres referiram como motivo a dificuldade para marcar a consulta e realizar o exame.
É importante ressaltar que as mulheres entrevistadas eram mães de filhos menores de dois anos. Assim, esperou-se inicialmente que a maioria delas informasse contato prévio com os serviços de saúde em virtude do pré-natal e puerpério, o que foi confirmado ao verificar que todas frequentaram o pré-natal durante a última gestação. Essa condição poderia levar a uma maior cobertura do exame citopatológico, ou até mesmo uma superestimação do resultado.
A Tabela 2 apresenta a análise bivariada para o desfecho com as variáveis independentes dispostas em três blocos, formados pelas características demográficas, socioeconômicas e relacionadas aos serviços de saúde para realização do pré-natal. Oito variáveis apresentaram associação significativa (p ≤ 0,05): no primeiro bloco, idade e estado civil; no segundo bloco, escolaridade da mulher e classe social; no terceiro bloco, tipo de serviço utilizado para pré-natal, realização do exame ginecológico durante o pré-natal, mês de início e número de consultas de pré-natal.
Tabela 2: Análise bivariada da não realização do exame citopatológico do colo do útero entre as mulheres da Zona Norte do Município de Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil, 2010.
A Tabela 3 apresenta a análise multivariada, utilizando-se o modelo de regressão logística, com as variáveis independentes que mostraram associação significativa na análise bivariada, mantendo a disposição em três blocos, segundo características demográficas, socioeconômicas e relacionadas aos serviços de saúde para acompanhamento pré-natal. A variável que manteve associação significativa foi escolaridade da mulher.
Realizar periodicamente o exame citopatológico do colo do útero é a melhor estratégia para o rastreamento do câncer do colo do útero no Brasil e no mundo. Apesar de o exame ser considerado uma tecnologia efetiva, simples e de baixo custo, muitas mulheres ainda deixam de fazê-lo no país. Fatores como baixa escolaridade e baixo nível socioeconômico têm sido apontados por diversos autores como associados à não adesão ao exame citopatológico 6), (11), (16.
Os resultados encontrados apontaram uma prevalência de realização do exame de 78,6% para todas as mulheres que constituíram a amostra, independentemente da idade. Considerando a faixa etária de 25 anos ou mais, indicada para realizar o rastreamento, a prevalência se elevou para 84,9%, encontrando-se em consonância com a cobertura de 80% recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para causar impacto na incidência e mortalidade pelo câncer do colo do útero. Em pesquisa realizada no Município de Rio Grande, Rio Grande do Sul 11, cuja amostra se constituiu de puérperas com idade entre 11 e 47 anos, identificou-se que 33% não havia feito o exame citopatológico do colo do útero. Já outras pesquisas em municípios brasileiros com mulheres em diferentes faixas etárias, encontraram maior prevalência de realização do exame, como em Feira de Santana, Bahia (87,4%) 6; Boa Vista, Roraima (85,7%) 17, Fortaleza, Ceará (97,2%) 5; Florianópolis, Santa Catarina (93%) 13, São Luís, Maranhão (82,4%) 18 e Maringá, Paraná (87,7%) 19.
Ao verificar os motivos relatados pelas mulheres para justificar a não realização do exame citopatológico do colo do útero, observou-se que grande parte delas se sentia saudável e não percebia a necessidade de cuidados de saúde. Cabe ressaltar que a não adesão ao exame justificada pela ausência de sintomas reflete um comportamento característico de países em desenvolvimento, onde as condições socioeconômicas, em associação à falta de informação, contribuem para o entendimento da população de que a busca pelo serviço de saúde deverá acontecer mediante ao surgimento de doenças. Além disso, sentimentos de vergonha, constrangimento e medo se relacionam a tabus sobre sexualidade e questões de gênero, contribuindo para a não adesão ao exame 6), (11.
Em relação à idade, as mulheres com até 24 anos, quando comparadas àquelas com idade entre 25 a 35 anos, apresentaram maiores chances de não terem realizado o exame citopatológico do colo do útero na análise bivariada. Esse achado permite inferir que a faixa etária estabelecida atualmente como prioridade pelo Ministério da Saúde para o rastreamento do câncer do colo do útero foi a que mais realizou o exame. Cabe ressaltar que, no ano de 2010, a recomendação brasileira vigente incluía todas as mulheres sexualmente ativas, com prioridade para aquelas com idade entre 25 e 59 anos. Outros estudos também encontraram menor cobertura de citopatológico do colo do útero entre mulheres mais jovens 14), (15.
Ainda nesse contexto, as diretrizes brasileiras atuais recomendam o início do rastreamento a partir dos 25 anos de idade para as mulheres sexualmente ativas. Essa mudança fundamenta-se em evidências científicas que sinalizam para a baixa incidência de câncer do colo do útero entre mulheres jovens. A maioria dessas mulheres apresenta lesões associadas à infecção por HPV que regridem espontaneamente. Em adição, as intervenções relacionadas ao tratamento de lesões precursoras em mulheres jovens estariam associadas ao aumento da morbidade obstétrica e neontatal 8.
Apesar disso, há que se considerar que, embora a pouca idade não seja um fator em si próprio associado ao câncer do colo do útero, o atual estilo de vida das mulheres jovens, caracterizado pelo início precoce da atividade sexual, resulta na exposição, também precoce, aos fatores relacionados ao desenvolvimento da doença, em especial, ao HPV 19. Logo, mesmo com uma frequência consideravelmente menor, a associação entre a exposição precoce e ausência de rastreamento poderia contribuir para o desenvolvimento de alterações cervicais graves até a idade sugerida para a realização do exame citopatológico 15. Em um estudo com populações adolescentes sexualmente ativas do Rio de Janeiro, o diagnóstico citológico encontrou 3% de lesões de alto grau e um caso de carcinoma invasor. Verificou-se, ainda, que a maioria dos casos de lesão intraepitelial de alto grau (67%) ocorreu no primeiro ano de atividade sexual 20.
Com relação às variáveis cor autorreferida e classe social, não foram encontradas associações significativas com o desfecho. Para ambas as variáveis, observou-se certa homogeneidade entre as mulheres que constituíram a amostra do estudo (64,9% não brancas e 75,3% pertencentes às classes sociais C, D e E), o que pode ter contribuído para que não houvesse associação significativa com o desfecho. Outros estudos conduzidos em municípios brasileiros encontraram resultados condizentes com a presente pesquisa, não identificando diferenças significativas na realização do exame por mulheres brancas e não brancas e entre mulheres de classe social alta e baixa 13), (21. Com base nesses achados, pode-se considerar prematura a afirmação de aumento da prevalência de realização do exame citopatológico entre mulheres não brancas e de classe social mais baixa, havendo necessidade de outros estudos para dar consistência aos dados encontrados.
Quanto ao estado civil, na análise bivariada, foi evidenciado que as mulheres solteiras, quando comparadas às casadas, apresentaram maiores chances de não realizarem o exame citopatológico. Em geral, estudos demonstram que as mulheres que vivem sem companheiro apresentam maior risco para o câncer do colo do útero 13), (15), (22. Assim como este, outros estudos também encontraram menor cobertura do exame entre mulheres solteiras. Essa situação foi interpretada a partir de uma associação entre a atividade sexual e a realização do citopatológico, com consequente demanda aumentada por serviços de planejamento familiar e obstétrico, oportunizando a realização do exame.
A baixa escolaridade apresentou-se significativamente associada à não adesão ao citopatológico do colo do útero, indicando que as mulheres com escolaridade mais baixa apresentam maiores chances de não fazerem o exame. Diversos estudos documentam que quanto menos tempo de estudo a mulher tem menor a probabilidade de realizar o citopatológico do colo do útero, destacando a escolaridade como fator associado ao desenvolvimento do câncer do colo do útero 22), (23. Alguns autores acreditam que as mulheres com baixa escolaridade tenham menor poder de pressão sobre os serviços de saúde na reivindicação de atendimento de qualidade. Some-se a isso o fato de que a baixa escolaridade pode determinar menor nível de informação e entendimento, resultando em baixa adesão às estratégias de prevenção 21), (22), (24.
Uma questão relevante abordada neste estudo refere-se ao fato de que todas as mulheres incluídas na amostra são mães de filhos menores de dois anos, sugerindo um possível contato com os serviços de saúde em virtude do pré-natal, parto e puerpério, situação que poderia colaborar para aumentar a adesão dessas mulheres ao citopatológico do colo do útero. A literatura indica que o período pré-natal e pós-parto representa uma excelente oportunidade para prevenção do câncer do colo do útero, já que a realização do exame citopatológico faz parte da rotina de pré-natal preconizada pela OMS e Ministério da Saúde 8), (24), (25.
É interessante destacar que, nesta investigação, todas as mulheres que nunca realizaram o exame citopatológico do colo do útero frequentaram o pré-natal. A média de consultas de pré-natal realizada pelas mulheres que nunca fizeram o exame foi de 6,94%, sugerindo um número relativamente alto de encontros com um profissional de saúde (médico ou enfermeiro), nos quais o exame citopatológico do colo do útero poderia ter sido ofertado; porém, a oportunidade foi perdida em todos os encontros. Portanto, ter frequentado o pré-natal não contribuiu para elevar a cobertura do exame. Outras investigações de temática semelhante mostraram que a coleta do citopatológico no pré-natal contribuiu para aumentar a prevalência do exame, além de auxiliar na identificação de mulheres que nunca haviam tido a oportunidade de participar do rastreamento do câncer do colo do útero 11), (12.
Os resultados aqui encontrados fortalecem a percepção de que o controle do câncer do colo do útero ainda representa um desafio importante para a Saúde Pública, evidenciando que apenas a oferta oportunística do exame citopatológico pode não ter sido suficiente para reduzir as altas taxas da doença, o que foi possível em países desenvolvidos mediante rastreamento organizado. Essa realidade reflete a existência de lacunas no programa de rastreamento no cenário estudado, visto que não está sendo capaz de alcançar as mulheres que nunca realizaram o exame ou que o fizeram com periodicidade inadequada 5.
O estudo ainda sinaliza duas questões preocupantes. A primeira se refere à existência de um percentual de mulheres que nunca havia realizado o exame citopatológico do colo do útero, deixando claro que o serviço de saúde local foi pouco efetivo em aproveitar o pré-natal e puerpério para ofertar o exame. É inadmissível a perda de oportunidade para o rastreamento de mulheres que tiveram contato com o serviço de saúde em um país onde o rastreamento é oportunístico.
A segunda indica que as mulheres com baixa escolaridade apresentam maiores chances de não realização do exame em questão. Essa variável encontra-se diretamente relacionada ao baixo nível socioeconômico, considerado como um fator associado ao desenvolvimento do câncer do colo do útero. Dessa forma, fica evidente que as mulheres mais vulneráveis não estão sendo contempladas no rastreamento, refletindo a iniquidade em saúde que permeia muitas regiões do país.
Essas informações devem ser consideradas para planejar e implementar ações que diminuam as desigualdades locorregionais e aumentem a adesão ao exame. Tais medidas devem incluir a qualificação dos profissionais que assistem a mulher durante o período gestacional e puerperal, despertando-os para a importância de aproveitar esse momento de contato com o serviço de saúde para oportunizar a realização do exame citopatológico do colo do útero.
Por fim, o rastreamento do câncer do colo do útero depende do estabelecimento de políticas públicas que visem à redução da vulnerabilidade individual e social a que as mulheres se encontram potencialmente expostas, sobretudo aquelas inseridas em classes sociais mais baixas. Cabe ressaltar que a vacina contra o HPV, já introduzida no calendário dos serviços públicos de saúde, poderá, a longo prazo, trazer impacto sobre a morbimortalidade por câncer do colo do útero.
Apesar das diferentes abordagens metodológicas, os resultados encontrados nesta pesquisa estão de acordo com os de outros estudos brasileiros de temática e delineamento semelhantes. No entanto, ao interpretar os resultados aqui apresentados, devem ser consideradas algumas limitações próprias dos estudos transversais: as mulheres podem ter esquecido ou omitido dados referentes à realização do citopatológico, tornando o autorrelato tendencioso, uma vez que ter se submetido ao exame é um comportamento desejado. Ademais, os relatos das mulheres com relação às práticas preventivas para câncer do colo do útero não foram checados quanto à veracidade em registros nos serviços de saúde.
Outra limitação desta investigação decorre de viés de informação, uma vez que as entrevistadas poderiam confundir o exame citopatológico com o exame clínico ginecológico. O exame ginecológico contempla a inspeção do colo do útero, a coleta do material para o citopatológico e a palpação bimanual. Como, no momento da entrevista, não foi explicada essa diferença, não há como saber com certeza se, todas as vezes que o exame ginecológico foi realizado, também foi coletado material para o citopatológico.
Uma situação que precisa ser destacada se refere à faixa etária das mulheres que constituíram a amostra do estudo. Considerando a idade atualmente preconizada pelo Ministério da Saúde para o rastreamento do câncer do colo do útero, o exame deve ser indicado para as mulheres sexualmente ativas com idade a partir dos 25 anos. Os dados utilizados no presente estudo foram coletados no ano de 2010, quando o rastreamento ainda era indicado para todas as mulheres sexualmente ativas, prioritariamente na faixa etária dos 25-59 anos. Mesmo que as mulheres mais jovens não sejam candidatas ao rastreamento, a existência de lesões precursoras de alto grau nessa faixa etária, ainda que em menor frequência, sinaliza a necessidade de implantação de programas de atenção com o objetivo de diminuir o avanço progressivo de casos de lesões precursoras do câncer do colo do útero 26.
Conclui-se que, apesar das limitações, o estudo atingiu seu objetivo de estimar a prevalência de não realização do exame citopatológico do colo do útero entre as mulheres que frequentaram o pré-natal. A cobertura encontrada para as mulheres considerando-se todas as faixas etárias presentes na amostra estudada está ligeiramente abaixo do recomendado pela OMS. Já a cobertura para as mulheres com 25 anos ou mais encontra-se em consonância com o preconizado. O programa de rastreamento na localidade estudada apresenta caráter oportunístico, mas, apesar disso, o exame citopatológico deixou de ser ofertado para mulheres que nunca o haviam realizado e que tiveram contato com o serviço de saúde para o pré-natal.