versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.19 no.4 Rio de Janeiro abr. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014194.18002012
The scope of this review was to assess the strength of evidence of Portuguese performance indicators on Cervical Cancer screening: (1) age group of the women that should be screened for cervical cancer; (2) frequency of screening; and (3) the best method for screening. The following MeSH terms were searched: vaginal smears, age groups, periodicity, methods, uterine cervical cancer. Articles not reflecting the study objectives or not available in English, Portuguese or Spanish were excluded. The SORT classification was used to rate the articles selected.Of the 197 articles found, 9 that met all study criteria were selected for inclusion in this review. These included 1 systematic review, 1 randomized controlled clinical trial, 2 retrospective studies and 5 clinical guidelines. The authors also chose to include 4 clinical guidelines and two systematic reviews relevant to the Portuguese population even though they did not appear in the initial search of the literature. The studies suggest screening women between the ages of 21 to 25 years and 65 years of age, once every three years using conventional cytology. There is still controversy regarding the three objectives of this study (target age bracket, screening frequency and screening method).
Key words: Uterine cervical neoplasms; Screening; Vaginal smears; Age brackets; Periodicity
De acordo com dados de 2008 da Organização Mundial de Saúde (OMS), o câncer do colo do útero (CCU) é o 2º câncer mais comum em mulheres a nível mundial, com cerca de 500.000 novos casos e 250.000 mortes a cada ano1-4. Em Portugal, o CCU é o 6º câncer mais comum4, e o 3º câncer mais frequente entre as mulheres5.
A infeção por vírus do papiloma humano (HPV) é uma das infeções de transmissão sexual mais comum a nível mundial. O risco de infeção por HPV ao longo da vida é de 50 a 80% em ambos os sexos, a infeção é um fator necessário para o desenvolvimento CCU, mas não independente. Existem mais de 200 estirpes de HPV identificadas, mas apenas algumas são oncogénicas6,7 (as de maior risco são 16 e 18). A grande maioria das mulheres elimina o vírus ao fim de 1-2 anos, noutras a infeção pode persistir, originando lesões mais graves designadas por pré-cancerosas e cerca de 3% pode desenvolver lesão maligna6-9. O CCU é geralmente uma doença de evolução lenta, a progressão das lesões pré-malignas pode durar até 10 a 20 anos10. O pico de incidência do CCU é aos 51 anos11 e é raro em mulheres jovens (1-2 casos por milhão entre os 15 e 19 anos)12.
De todos os tumores malignos, o CCU é o que consegue ser controlado mais eficazmente pelo rastreio13.
A avaliação citológica das células do colo do útero foi introduzida por George Papanicolaou em 1940, sendo provavelmente a técnica de rastreio oncológico mais utilizada em países desenvolvidos12,14. Apesar deste teste ter tido um sucesso evidente na redução da incidência e mortalidade do CCU, tem as suas limitações, particularmente, nos resultados falso negativo. Para tentar colmatar estas limitações têm sido feitos esforços no sentido de desenvolver tecnologias que aumentem principalmente a sensibilidade deste método de rastreio, como por exemplo: a citologia em meio líquido e o teste do DNA do HPV14,15.
O indicador de desempenho português, que diz respeito ao rastreio do CCU, avalia mulheres entre os 25 e 64 anos que realizaram uma colpocitologia nos últimos 3 anos16,17. Foi definido pela primeira vez no documento "Indicadores de desempenho para as Unidades de Saúde Familiar" publicado em 2006 pelo Ministério da Saúde, e não sofreu qualquer alteração desde que foi criado até à atualidade16.
É, portanto, necessária uma revisão da evidência científica e das múltiplas normas de orientação clínica/consensos recentes que orientam os planos de rastreio e prevenção oncológica do CCU, em diversos contextos internacionais, sobre a relação custo-benefício de cada um dos componentes deste indicador.
Os objetivos deste artigo são avaliar a força de recomendação deste indicador, procurando: (1) analisar em que idades as mulheres da população geral devem realizar o rastreio, (2) a periodicidade com que deve ser realizado e (3) qual o melhor exame de rastreio.
Para realizar esta revisão da evidência científica, os autores selecionaram os termos MeSH na página da Pubmed que consideraram mais adequados: vaginal smears, age groups, periodicity, methods, uterine cervical cancer.
Foram pesquisadas Normas de Orientação Clínicas, Revisões Sistemáticas e Meta-análises, bem como estudos originais publicados desde 2005 (uma vez que as referências mais recentes que são utilizadas para justificar o indicador atualmente em vigor são anteriores a 2005) até Março de 2012, nas seguintes bases de dados, selecionadas pelo painel de especialistas em Medicina Geral e Familiar, como sendo as bases mais reputadas: National Guideline Clearinghouse (NGC), Canadian Medical Association Practice Guidelines Infobase (CMA), Cochrane, Database of Abstracts of Reviews of Effectiveness (DARE), Evidence Based Medicine Online, Science Direct, Springerlink e na PubMed.
Os artigos excluídos dos resultados foram: os repetidos, os que não correspondiam aos objetivos da revisão, os com amostras com características específicas (e.g. risco elevado de CCU, imunodeprimidas, rastreio secundário) ou baseados em modelos teóricos, e os que não fossem redigidos em Inglês, Português ou Espanhol. A seleção foi realizada com base na leitura do abstract e artigo, de forma comparada, pelas duas primeiras autoras desta revisão.
Os autores optaram por incluir algumas publicações/normas, através da pesquisa de artigos relacionados ou contidos nas referências dos anteriores, que respeitavam os critérios de inclusão e exclusão acima descritos e considerados pertinentes para este estudo.
Para a classificação do nível de evidência utilizou-se a taxonomia Strength of Recommendation Taxonomy, SORT, sendo esta uma das taxonomias mais utilizadas na publicação de revisões baseadas na evidência no domínio da medicina e particularmente na área dos Cuidados de Saúde Primários. Esta é uma classificação simples que agrupa os estudos em 3 níveis de evidência de onde derivam 3 graus de força de recomendação. O nível de evidência é atribuído consoante a qualidade e consistência dos estudos, do nível 3 ao nível 1, de melhor qualidade. O SORT inclui 3 graus de força de recomendação (A,B,C) baseada na qualidade das evidências disponíveis. A recomendação A baseia-se em evidência de boa qualidade e orientada para o doente, é a que tem maior força18.
O total da pesquisa resultou em 197 artigos, de entre os quais foram selecionados inicialmente 29 que pareciam enquadrar-se no âmbito desta revisão. Após uma análise mais cuidada, destes foram excluídos 20: 4 artigos repetidos e 16 que não cumpriam os critérios de inclusão.
Obtiveram-se 9 artigos relevantes, em língua inglesa: 5 NOC, das quais 2 com nível de evidência 1, com metodologia bem definida e graus de recomendação com base na evidência encontrada e 3 com nível de evidência 3 que se basearam em consensos de peritos; e 3 estudos originais: 1 estudo clínico controlado aleatorizado, 2 estudos observacionais retrospetivos; e 1 Revisão Sistemática (RS) de estudos não aleatorizados, estes com nível de evidência 3 devido a resultados orientados para a doença e não para o doente.
Como já referido, foram incluídos outros artigos não resultantes da pesquisa direta, sendo eles: 4 NOC e 2 RS, devido à importância para a população portuguesa, a publicação recente ou nível de evidência elevado: Consensos da Sociedade Portuguesa de Ginecologia de 2011, Guidelines Europeias de 2010 e da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 2006, as recomendações da United States Preventive Services Task Force (USPSTF), com base nas quais o nosso indicador foi elaborado, e 2 RS elaboradas pela USPSTF de 2011.
Apresentam-se nos Quadros 1, 2 e 3 os resultados encontrados.
Quadro 1 NOC, abordagem segundo os 3 objetivos desta revisão: (1) idades das mulheres da população geral que devem realizar o rastreio do CCU (2) a periodicidade com que esse exame deve ser realizado (3) qual o melhor exame de rastreio.
Quadro 2 Estudos originais e revisão sistemática, abordagem segundo os 3 objetivos desta revisão: (1) idades das mulheres da população geral devem realizar o rastreio do câncer do colo do útero (2) a periodicidade com que esse exame deve ser realizado (3) qual o melhor método de rastreio.
Quadro 3 NOC/RS, não resultantes da pesquisa direta, abordagem segundo os 3 objetivos desta revisão: (1) idades das mulheres da população geral devem realizar o rastreio do cancer do colo do útero (2) a periodicidade com que esse exame deve ser realizado (3) qual o melhor método de rastreio.
Não foram encontrados estudos controlados aleatorizados com resultados orientados para o doente, como a diminuição da mortalidade por CCU.
Em relação ao objetivo (1), a idade de início é mais controversa do que a idade de término. Os estudos com evidência mais elevada: a NOC da American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG)19 que utiliza a escala de recomendação da USPST; a NOC, do Institute for Clinical Systems Improvement20(ICSI) que usa uma escala de recomendação própria sobreponível à da USPSTF e as recomendações da própria USPSTF21, indicam o início do rastreio aos 21 anos independentemente da idade de início da atividade sexual (recomendação A). Não está recomendado iniciar rastreio antes dos 21 anos devido à baixa incidência de câncer nestas idades, elevada prevalência de infeção por HPV transitórias e lesões do colo que regridem espontaneamente originando elevado número de falsos positivos e tratamento desnecessário com possíveis riscos/consequências evitáveis. A OMS22 e as Guidelines Europeias23 apontam para um início mais tardio entre os 25 e os 30 anos, justificando que o CCU é raro antes dos 30 anos e não é custo-eficaz rastrear em idades mais jovens. Apesar disso a NOC de consensos, Michigan Quality Improvement Consortium22,que recomenda início aos 18 anos e 1 estudo observacional retrospetivo de Sigurdsson e Sigvaldason24, recomenda início aos 20 anos, estes estudos defendem que a idade de início da atividade sexual é cada vez mais precoce, e que a história natural do CCU possa ser mais curta em mulheres mais jovens, por isso o atraso do início do rastreio aumentaria a sua taxa de incidência. Por outro lado, outro estudo observacional retrospetivo encontrado, realizado no Reino Unido, com base numa amostra 4012 mulheres, conclui que a incidência CCU não diminui aos 25-29 anos realizando o rastreio aos 22-24 anos25.
Em relação à idade para descontinuar o rastreio quase todos os estudos analisados são concordantes, recomendando os 65 anos (recomendação A), alguns prolongam o intervalo até aos 70 anos como é o caso da ACOG19e da ICSI20. As indicações Europeias13 antecipam dos 60 aos 65 anos, no entanto todos os estudos referem a necessidade de 3 resultados anteriores consecutivos normais ou sem alterações nos últimos 10 anos (recomendação A). A ineficiência do rastreio após os 65 anos deve-se ao facto de o risco de CCU ser menor, é necessário maior número de citologias para detetar lesões pré-malignas, e aumentam as causas concorrentes de morte. Todavia se falarmos em termos de rastreio oportunístico e não de base populacional o aumento da esperança média de vida impede o estabelecimento de uma idade limite para o fim deste tipo de rastreio26.
Relativamente ao objetivo (2), os estudos que avaliam as diferentes periodicidades são maioritariamente baseados em modelos teóricos, com base na história natural da doença, os quais foram excluídos dos resultados. Os estudos epidemiológicos têm demonstrado diminuição da incidência de mortalidade por CCU até 80% com periodicidade de 3-5 anos22. A periodicidade parece variar em muitos dos estudos consoante a faixa etária, com períodos mais curtos nas idades mais jovens e períodos mais alargados nas idades mais avançadas, e consoante o método utilizado.
Os estudos com maior nível de evidência recomendam que entre os 21 e os 29 anos haja periodicidade bienal e a partir dos 30 anos trienal (recomendação A), exceto a USPSTF21que recomenda realização de 3 em 3 anos em qualquer faixa etária elegível para rastreio ou de 5 em 5 anos a partir dos 30 anos mas com citologia associada à pesquisa de DNA HPV (recomendação A). Algumas normas com menor evidência, mas com grande importância para Portugal: as Guidelines Europeias13 e as orientações da OMS22, bem como os Consensos da Sociedade Portuguesa de Ginecologia26recomendam periodicidade mais alargada: até aos 49 anos trienal e a partir dos 50 anos de 5 em 5 anos (recomendação C). A maioria dos CCU ocorrem em mulheres que nunca foram rastreadas ou que o foram há mais de 5 anos21.
Analisando o objetivo (3), a citologia convencional é um método utilizado há vários anos com eficácia comprovada, conseguindo uma redução muito acentuada na incidência de CCU, no entanto apresenta 2 grandes limitações: um número elevado de falsos negativos e resultados insatisfatórios. Para tentar ultrapassar estas desvantagens têm surgido novas tecnologias como a citologia em meio líquido e a deteção do DNA do HPV.
Dos estudos analisados todos concluem que a citologia em meio liquido tem sensibilidade e especificidade equivalente à convencional (recomendação A) e um custo superior, no entanto apresenta menor taxa de resultados insatisfatórios e possibilidade de diferentes análises com uma só colheita (pesquisa de HPV). Concluem também que a associação dos 2 métodos, citologia em meio líquido e pesquisa de HPV, não é uma abordagem custo-eficaz, não parecendo existir vantagem nesta associação (recomendação B), exceto o alargamento do período de rastreio para 5 anos em mulheres com mais de 30 anos21.
O teste de HPV é mais sensível e, contudo, menos específico. A recente revisão sistemática da USPSTF, assim como o estudo ARTISTIC consideram-no uma estratégia apelativa como 1ª linha, se associada sequencialmente à citologia quando o resultado for positivo, diminuindo assim os falsos positivos. No entanto a evidência é escassa e não foi demonstrada a diminuição da incidência e mortalidade por CCU com o teste HPV versus citologia.
Comparando o indicador que avalia atualmente em Portugal o rastreio do CCU com os estudos analisados podemos concluir que:
(1) em relação à idade de inicio de rastreio mantêm-se algumas controvérsias: os estudos com mais evidência encontrados nesta revisão apontam para o inicio aos 21 anos e nunca antes, independentemente do inicio da atividade sexual (Recomendação A), mais cedo do que é atualmente avaliado em Portugal (25 anos), apesar de existirem normas Europeias que recomendam iniciar entre os 25-30 anos e um estudo retrospetivo que conclui não existir vantagem em rastrear antes dos 25 anos. Os 65 anos são a idade recomendada para finalizar o rastreio (Recomendação A). É relativamente uniforme entre todos os estudos, e coincide com o indicador português. No entanto, é de consenso geral que esta descontinuação seja feita apenas se existirem 3 citologias consecutivas negativas ou sem resultados anormais nos últimos 10 anos (Recomendação A), esta premissa não é avaliada pelo indicador.
(2) Relativamente à periodicidade recomendada, existe alguma concordância na periodicidade trienal (Recomendação B), que é a avaliada pelo nosso indicador, seja qual for a faixa etária. No entanto, existem normas com nível de evidência elevado, Europeias e Mundiais, que sugerem intervalos de rastreio diferentes consoante a idade em causa. Entre os 21 e 29 anos, existe controvérsia entre bienal e trienal (Recomendação B), dos 30 aos 49 anos existe concordância na periodicidade trienal (Recomendação A) e a partir dos 50 até aos 65 a frequência recomendada pode ser alargada para 5 em 5 anos (Recomendação C). A USPSTF recentemente atualizou as suas recomendações, e considerou que na faixa etária a partir dos 30 anos a periodicidade de 5 em 5 anos com citologia associada a pesquisa do DNA HPV, era uma alternativa válida à periodicidade trienal com a citologia isolada, se as mulheres preferissem aumentar a periodicidade de rastreio (Recomendação A).
(3) Quanto ao método a utilizar, o indicador apenas refere colpocitologia, não especificando se é convencional ou em meio liquido, no entanto, como são exames equivalentes em termos de sensibilidade e especificidade, e tendo a convencional um custo menor deve manter-se este o método de escolha (Recomendação A).
Os autores apontam algumas limitações desta revisão que devem ser tidas em consideração: a pesquisa abrangeu um período reduzido de tempo, artigos publicados desde 2005 e foi restrita a 3 idiomas (português, inglês e espanhol).
É escassa a evidência de boa qualidade nesta área, foram encontrados poucos estudos controlados aleatorizados, existem vários estudos baseados em modelos teóricos e os resultados são orientados para a doença, como a diminuição de deteção de CIN 2 ou 3, e não para a doente como por exemplo a redução da mortalidade por CCU e maior qualidade de vida para a doente.
É necessário continuar a acompanhar os estudos nesta área para adequarmos a nossa prática clínica ao estado da arte. Mantêm-se controvérsias quanto à idade de início do rastreio, quanto ao exame de rastreio, nomeadamente, na possibilidade da pesquisa de HPV ser a 1ª linha, e se for positiva, se seguida de citologia, o que poderá trazer diferentes periodicidades a aplicar. Não deve ser esquecido que o rastreio dentro de alguns anos poderá ser progressivamente menos custo-eficaz porque o risco de desenvolver CCU vai eventualmente diminuir com a vacina do CCU, recentemente introduzida no plano de vacinação nacional. A introdução da vacina também resultou em sugestões para a necessidade de intensificar esforços a nível do rastreio para diminuir ainda mais as mortes por CCU33. É provável que a história natural da doença se altere, terão que se rever as idades ótimas para rastreio que vão variar consoante a imunidade sustentada da vacina.
B Castro e DP Ribeiro participaram na concepção e delineamento do artigo, pesquisa bibliográfica, análise e interpretação dos dados, redação do artigo e aprovação final do artigo. J Oliveira, MB Pereira, JC Sousa e Y Yaphe participaram na interpretação dos dados, discussão dos resultados, na revisão crítica do artigo e aprovação final do artigo.