versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.35 no.4 Rio de Janeiro 2019 Epub 02-Maio-2019
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00027319
O rompimento da barragem de rejeitos do Córrego do Feijão, em Brumadinho, Minas Gerais, Brasil, operada pela Vale, é acidente de trabalho ampliado, o maior da história do país 1, tendo ocorrido há pouco mais de três anos da catástrofe da barragem do Fundão da Samarco, em Mariana, Minas Gerais, considerada então como “uma das maiores tragédias socioambientais do país” 2 (p. 6).
Trata-se de catástrofe industrial que causou mais de 300 vítimas fatais (identificados e desaparecidos), impactos incomensuráveis ao patrimônio histórico e cultural, ao meio ambiente e à economia local 1.
Três dias depois do ocorrido, quando o foco na mídia era a busca por sobreviventes, um advogado vinculado à empresa deu entrevista afirmando 3: “A direção da empresa não se afastará de seu comando ‘em hipótese alguma’”. “A Vale não enxerga razões determinantes de sua responsabilidade. Não houve negligência, imprudência, imperícia” 3.
Embora sua fala tenha sido desautorizada por representantes da Vale 4 no mesmo dia, ela não demonstra apenas sua insensibilidade ao defender outras prioridades, como a saúde financeira da empresa, os cargos dos atuais dirigentes, mas também se destaca pela tentativa de influenciar a investigação das causas da catástrofe e sua explicação, importante recurso usado pelas empresas para reparar sua imagem em momentos de crise 5: “Por que uma barragem se rompe? São vários os fatores, e eles agora vão ser objeto de considerações de ordem técnica” 3.
No caso da Samarco, uma investigação independente foi contratada pelo consórcio para conhecer os aspectos técnicos que provocaram a catástrofe, sem considerar os fatores sócio-organizacionais a ela associados, fundamentais às ações de prevenção 6.
Assim, se “Mariana foi uma tragédia anunciada” 2 (p. 2), o que dizer de Brumadinho?
O objetivo deste artigo é defender a necessidade de abordagem mais consistente para a investigação de catástrofes industriais, em especial da catástrofe de Brumadinho.
De acordo com perspectiva sistêmica, a compreensão de catástrofes deve revelar aspectos da história da operação do sistema que atuaram pouco antes do desastre, aqueles latentes ou incubados, e desencadear estudos sobre consequências imediatas e tardias, estas últimas exigindo estratégias de busca ativa.
Nos últimos 40 anos, estudiosos de desastres-feitos-pelo-homem os consideram como fenômenos com dimensões técnicas originadas em processos de tomadas de decisões em situações complexas envolvendo processos que agem conjuntamente, expostos a inúmeras influências simultâneas 7.
Análises que se reduzem às explicações técnicas não conseguem elucidar como a escassez de recursos, os conflitos de metas, as decisões frente a mudanças sociais, culturais, políticas influenciam o ocorrido. Por isso, nos métodos modernos, os aspectos tecnológicos são considerados como pontos de partida, afinal sua existência não é produto de geração espontânea. As explicações não devem focar apenas a busca de problemas no funcionamento, ou defeitos de partes isoladas ou componentes do sistema sociotécnico em questão 7.
A análise aprofundada do acidente no lançamento do ônibus espacial Challenger por Vaughan 8 foi considerada um marco metodológico por revelar interações entre aspectos tecnológicos, os fatores humanos e a dinâmica organizacional no projeto de lançamento da nave para compreender o que havia acontecido.
A experiência em si de conduzir análises que se propõem a explorar as dimensões organizacionais e suas múltiplas interações mostra que todo acidente envolve processos sociais complexos, eivados de disputas, de resistências políticas e/ou de espaços de liberdade, de diálogo e cooperação 7,8.
Empresas, como a Vale, estão inseridas em processo global de competição, caracterizado pela abertura de mercados mundiais para fluxos de capitais, pela desregulamentação e liberalização do comércio, buscando investimentos internacionais para novos empreendimentos 9. Sua operação, que envolve grandes riscos tecnológicos, pressionada pela valorização/desvalorização de suas ações nas bolsas de valores, depende de escolhas estratégicas de uso de tecnologias, de gestão e de organização, podendo aumentar sua complexidade e afetar o desempenho e a segurança de suas múltiplas unidades, a exemplo de outras empresas transnacionais 2,9,10.
No cenário do mundo globalizado, a compreensão da dimensão tecnológica não é suficiente para explicar os desastres. Escolhas gerenciais, organizacionais e estratégicas podem colocar em risco processos tecnológicos e operacionais, como descreveu Le Coze 9 nos acidentes da British Petroleum (BP) entre 2005 e 2010. No caso da BP, as investigações apontam para a gestão voltada à rentabilização financeira e corte de custos operacionais, o aumento da terceirização e redução de efetivos próprios, a diminuição da regulação estatal e a burocratização dos serviços de segurança.
Quando surge um acidente, que interrompe o ciclo de produção dessas empresas ou unidade de produção, ele precisa ser analisado com base nas dinâmicas internas, de seu desenvolvimento e inserção no setor e local, no contexto regulamentar e de fiscalização 9.
A história das grandes catástrofes industriais mostra que o engajamento em compreender o que se passou é a oportunidade para o processo de aprendizagem organizacional, não apenas das empresas envolvidas, mas também dos órgãos de controle e licenciamento (dentre outros). Grandes avanços na legislação e regulação, papel dos órgãos, práticas e métodos de prevenção e segurança decorrem da possibilidade de investigação aprofundada das catástrofes 11.
No Brasil, observam-se inúmeros impedimentos ao desenvolvimento de análises organizacionais, aprofundadas das catástrofes. Buscam-se os erros dos engenheiros nos projetos, na operação ou nas emissões de laudo, como tradicionalmente se buscou o erro dos operadores, mecanismo usado para eximir dirigentes e autoridades de suas responsabilidades 12.
Explicar desastres provocados por mineradoras sob o prisma estritamente técnico, nesses casos, geotécnico, relativo à situação da barragem no período anterior às rupturas, não permite alcançar os fatores políticos, organizacionais na origem das decisões envolvendo as questões técnicas da barragem e, portanto, contribui de forma limitada para a prevenção de novos acidentes 6,7.
Quando do desastre da Samarco, o setor mineral passava por forte retração, o que implicou uma postura agressiva da empresa cuja ênfase foi aumentar a escala de produção de minério e de rejeitos, para suportar a pressão financeira e rentabilizar os acionistas. Sabe-se que em períodos de retração o número de rupturas de barragens é maior 10.
Além disso, observou-se a precariedade da ação dos órgãos federais e estaduais de controle, cuja nomeação de cargos de direção era influenciada pelas mineradoras, em contexto voltado para a política brasileira de exportação de commodities 1,2,10.
Esses aspectos justificavam investigar a dinâmica gerencial e organizacional, a fim de estabelecer relações com os problemas de utilização, manutenção, segurança e projeto da barragem do Fundão.
Todavia, viabilizar apenas a investigação técnica e evitar a análise organizacional aprofundada da catástrofe parece ter sido a estratégia da empresa adotada no caso de Mariana, que também se aplica na recente catástrofe, como ilustram as palavras do advogado referidas anteriormente.
Dois aspectos distantes da ruptura da barragem exigem considerar, na investigação da catástrofe, as estratégias gerenciais da empresa.
No período entre 2014 e 2017, que inclui o ano do desastre de Mariana, a Vale manteve uma agressiva estratégia de maximização de valores repassados a seus acionistas, tendo reduzido anualmente investimentos de manutenção de operações de USD 4 bilhões em 2014 para USD 2,2 bilhões em 2017. Os dados desagregados mostram que os gastos em “pilhas e barragens de rejeitos” e “saúde e segurança” foram reduzidos no período de USD 474 milhões para USD 202 milhões, e de USD 359 milhões para USD 207 milhões, respectivamente. Cabe ressaltar que a adoção dessa estratégia ocorreu em um período de crescimento do mercado de minério de ferro 13.
Outra estratégia praticada pela empresa tem sido a de influenciar a produção legislativa, que regula a exploração mineral e seus impactos ambientais e sociais, além de influir no funcionamento de órgãos públicos de fiscalização e controle, em especial contando com a nomeação de cargos de direção indicados pela empresa 1,2,10,14. A legislação ambiental do Estado de Minas Gerais, vigente desde dezembro de 2017, foi influenciada de modo sigiloso por técnicos da Vale. Ela simplificou o processo de licenciamento ambiental, diminuiu suas etapas e prazo e foi aplicada no caso da Mina do Córrego do Feijão 15.
Foi nesse cenário que houve a maior catástrofe do trabalho no Brasil o que, por si só, demonstra a necessidade de investigação que adote a perspectiva sociotécnica 8,9 na sua análise.
Colocam-se a seguir algumas perguntas norteadoras para a possível investigação aprofundada.
É preciso, inicialmente, analisar os eventos e fatores - humanos, tecnológicos e organizacionais - que atuaram antes da ruptura da barragem. Esclarecer o papel desses aspectos exige incluir todos os atores próprios e terceiros que ali trabalhavam, em especial os da operação, manutenção e segurança, e que lidavam com as recomendações decorrentes de estudos de estabilidade da barragem e de ações de órgãos reguladores. Quem fazia o quê e como? Qual a tramitação das recomendações? Como explicar os atrasos observados nas respostas às correções preconizadas? Como os cortes nos orçamentos impactaram a operação e manutenção da barragem?
A análise deveria esclarecer quem e como, sabendo dos problemas identificados, decidia que a barragem atendia requisitos de estabilidade e segurança e podia ser mantida em operação. É preciso saber, também, quais injunções pesavam sobre esses gestores, pois manter a operação com problemas significa aceitar menos segurança, normalizar desvios e até criar condições para a ocorrência de colapso de forma súbita.
Num segundo momento, é preciso explorar as condições latentes ou incubadas para esclarecer as decisões relacionadas à história da barragem associadas ao projeto, implantação, operação e manutenção de seus dez alteamentos, monitoramento da estabilidade, planos de emergência que não funcionaram. É preciso esclarecer: a implantação do sistema de alarme de ruptura projetado sem redundância, que “foi engolido pela lama” e não funcionou; e a construção de prédios administrativos e refeitório a jusante da barragem, utilizados mesmo após o desastre da Samarco, que destruiu o Distrito de Bento Rodrigues situado quilômetros abaixo da barragem.
Em tempos de financeirização, nem a tragédia da Samarco levou à revisão das práticas gerenciais. Fazer a análise organizacional do caso implica explorar como ocorrem na Vale esses processos de tomada de decisão ao longo da hierarquia. Quem participa? Há pressões de priorização de interesses de acionistas? Como se expressam? Há disputas por resultados entre unidades da organização? Elas incluem o pagamento de recompensas aos gestores com maiores indicadores de performance? Houve debate sobre a redução dos investimentos em segurança e nas operações de barragem? Quem defendeu a redução e com que argumentos? Em defesa da prevenção, a análise precisa fazer com que a organização seja posta em confronto com suas decisões e implicações.
Do mesmo modo, devem ser analisadas as intervenções dos agentes do Estado no licenciamento, controle e fiscalização das operações da Mina do Córrego do Feijão e interações com funcionários da empresa. Qual era a margem de ação dos agentes dos diversos níveis hierárquicos e de governo? Quais impedimentos à sua ação? Políticos, técnicos, organizacionais, qualificação? No que tange ao licenciamento, a forma adotada atualmente teve influência? Alternativas tecnológicas ao uso de barragem foram consideradas durante o processo de licenciamento?
Não se pretende, com a reflexão proposta, exaurir os aspectos a serem investigados, mas ilustrar caminhos para análise sociotécnica da catástrofe.
Cabe à Vale e aos agentes públicos assumir suas responsabilidades e garantir um processo de aprendizagem organizacional baseado em investigação aprofundada e independente para que desastres semelhantes não voltem a ocorrer.
Analisar um evento dessa magnitude focando-se nas causas proximais significa, segundo Llory & Montmayeuil 7, procurar a explicação somente na “área iluminada do poste”, ou seja, busca restrita aos aspectos visíveis, caminho curto, ao mesmo tempo, insuficiente e enviesado, que deixa sem explicação os aspectos obscuros que determinaram a ocorrência dos fatores proximais e do evento.