versão impressa ISSN 1676-2444versão On-line ISSN 1678-4774
J. Bras. Patol. Med. Lab. vol.55 no.2 Rio de Janeiro mar./abr. 2019 Epub 23-Maio-2019
http://dx.doi.org/10.5935/1676-2444.20190018
O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença crônica sistêmica autoimune na qual a produção de anticorpos para uma grande variedade de componentes do próprio organismo pode resultar em um amplo espectro de manifestações clínicas e anormalidades laboratoriais(1-6). Embora a etiologia do LES ainda não seja claramente compreendida, interações genéticas com fatores ambientais têm sido implicadas no desenvolvimento da doença(5,7-9). Estudos epidemiológicos têm mostrado que o LES pode afetar indivíduos de todas as idades, etnias e ambos os sexos, mas mulheres em idade fértil e certos grupos étnicos (afro-americanos e asiáticos) possuem maior predisposição a desenvolver a doença(1,6,10).
O diagnóstico de LES baseia-se em achados clínicos e laboratoriais. Na maioria dos casos, o diagnóstico da doença é desafiador por causa do polimorfismo dos sintomas clínicos. A detecção de anticorpos contra o ácido desoxirribonucleico (DNA) nativo (ds) é parte dos critérios de classificação para o diagnóstico de LES(11,12). Anticorpos anti-DNAds são geralmente detectados por radioimunoensaio de Farr, teste de imunofluorescência indireta com Crithidia luciliae como substrato (CLIFT) e técnica imunoenzimática enzyme-linked immunosorbent assay (ELISA).
A técnica de Farr tem características importantes como altas sensibilidade e especificidade e a possibilidade de expressar resultados de forma quantitativa. Porém sua maior desvantagem é a necessidade de usar materiais radioativos. A técnica CLIFT tem alta especificidade, mas em geral tem sensibilidade mais baixa que as técnicas de Farr e ELISA. Outras desvantagens desta técnica são a dificuldade de processar grandes números de amostras, a expressão de resultados semiquantitativos e sua natureza dependente de operador para leitura, o que pode levá-la à subjetividade na interpretação dos resultados. A técnica ELISA permite o processamento simultâneo de um grande número de amostras, possibilitando a expressão de resultados qualitativos ou quantitativos, além de mostrar sensibilidade relativamente alta comparada com a técnica CLIFT(13-16). Neste estudo, descrevemos um teste de ELISA quantitativo para detectar anticorpos imunoglobulina da classe G (IgG) anti-DNAds e comparar seu desempenho com o do teste CLIFT, usado como referência.
Todos os reagentes utilizados foram de grau analítico ou superior e, salvo indicação em contrário, foram obtidos de Sigma-Aldrich Co. (St. Louis, MO, EUA).
Um pool de soro humano positivo para anticorpos IgG anti-DNAds (DNAPo) foi preparado misturando-se partes iguais do soro de 10 pacientes com LES que tinham teste CLIFT positivo ≥ 1:640. Ao DNAPo foi designado um valor de 100 unidades arbitrárias (UA) de anticorpos por ml. Padrões séricos artificiais contendo diferentes UA/ml foram preparados por diluição do DNAPo com tampão fosfato salino (PBS) contendo 0,1% de Tween 20 (PBS-T). Um pool de soro humano negativo para anticorpos IgG anti-DNAds (DNANe) foi preparado misturando-se partes iguais do soro de 10 indivíduos saudáveis que tinham teste CLIFT negativo e nenhuma evidência de LES. Os pools DNAPo e DNANe foram usados como controles positivos e negativos nas reações de ELISA e CLIFT.
O experimento de ELISA foi padronizado usando-se quantidades em excesso de todos os reagentes, menos daquele sendo testado. Para titulação do antígeno, foram utilizadas quantidades crescentes de DNA de timo de bezerro (0,3 a 100 μg/ml) (Sigma-Aldrich). Para titulação do conjugado (anticorpos de cabra anti-IgG humana marcados com peroxidase, Sigma Aldrich), foram testadas diluições de 1:500 a 1:64.000.
A linearidade da conversão do substrato foi determinada pelo uso de um padrão sérico contendo 50 UA/ml. A taxa de conversão do substrato foi avaliada a diferentes intervalos de tempo de incubação - de 1 a 30 minutos - em temperatura ambiente (TA), no escuro.
Os poços de fundo arredondado de placas para ELISA (Nunc MaxiSorp®, Thermo Fisher Scientific, EUA) foram preenchidos com 100 µl de tampão carbonato-bicarbonato 0,1 M, pH 9,5 contendo poli-L-lisina [(PLL), 20 µg/ml] (Sigma-Aldrich). Após incubação da placa por 2 h em TA e de um dia para o outro a 4°C, a solução PLL foi descartada e os poços foram lavados três vezes com 0,15 M PBS, pH 7,4. DNA de timo de bezerro diluído a 20 µg/ml em 0,15 M tampão Tris-HCl/NaCl, pH 8, foi então adicionado aos poços revestidos com PLL (100 µl). Após uma incubação de 3 h 30 min em TA, os poços foram lavados uma vez com PBS-T e os sítios reativos na matriz de poliestireno foram bloqueados com 100 µl PBS-T contendo albumina de soro bovino 0,1% (PBS-T-BSA). Depois de 10 minutos de incubação em TA, os poços foram lavados uma vez com PBS-T e então enchidos com 100 µl de tampão de ácido acético/acetato de sódio 50 mM, pH 4,6, contendo nuclease S1 (40 U/ml) e BSA (5 mg/ml). Seguindo uma incubação de 1 h e 30 min em TA, os poços foram lavados três vezes com PSB-T, e 100 µl de amostras de soro diluídas a 1:200 em PBS-T-BSA foram acrescentadas aos poços. Depois da incubação de 1 h em TA e três lavagens com PBS-T, 100 µl do conjugado diluído a 1:4.000 em PBS-T foram acrescentados a cada poço. Após uma incubação adicional de 45 minutos, em TA e três lavagens com PBS-T, 100 µl do sistema substrato (0,42 mM tetrametilbenzidina e 1,42 mM H2O2 em tampão acetato/ácido acético 0,1 M pH 5,5) foram acrescentados aos poços e as placas, incubadas por 10 minutos em TA, no escuro. Passado esse período, as reações foram interrompidas pela adição de 50 µl de 2 N H2SO4 a cada poço, e a absorbância resultante foi medida a 450 nm, usando um leitor ELISA (Labsystems, Helsinki, Finlândia). Cada amostra de soro foi testada em triplicata, e os valores de absorbância média foram calculados. Uma diluição seriada com fator de diluição 2 dos controles padrões positivos (100; 50; 25; 12,5; 6,25; 3,12 e 1,56 UA/ml) foi incluída em cada placa e usada para converter a densidade óptica de cada amostra de soro em UA/ml. O valor de corte para o ensaio foi determinado usando uma receiver operating characteristic curve (ROC).
Anticorpos IgG anti-DNAds foram detectados por CLIFT usando kits Immuno Concepts (Immuno Concepts N.A. Ltd, Sacramento, CA, EUA) ou Scimedex (Scimedex Corporation, Dover, NJ, EUA), segundo as instruções do fabricante. Uma titulação de anticorpo CLIFT ≥ 1:10 foi considerada positiva.
Anticorpos IgG anti-DNAds foram pesquisados por ELISA e CLIFT em amostras de soro de 127 pacientes com LES (122 mulheres, cinco homens, idade média = 34 anos), 56 pacientes com outras doenças (36 mulheres, 20 homens, idade média = 48 anos) (artrite reumatoide - n = 26; síndrome de Sjögren - n = 3; esclerose sistêmica - n = 3; mieloma múltiplo - n = 9; hepatite A - n = 4; hepatite B - n = 6; infecção por citomegalovírus (CMV) - n = 3; mononucleose infecciosa - n = 2) e 37 indivíduos saudáveis (23 mulheres, 14 homens, idade média = 41 anos). Todos os pacientes eram tratados no hospital universitário da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP, Brasil. As amostras de soro dos indivíduos saudáveis foram obtidas de estudantes e pessoal do laboratório da Unicamp sem histórico de LES. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas (FCM)/Unicamp de acordo com resoluções do Comitê de Ética Brasileiro (CAAE: 45707815.5.0000.5404).
A acurácia diagnóstica de ELISA e CLIFT foi avaliada pelo coeficiente de kappa (k), utilizando o SAS® System for Windows, versão 9.2 (SAS Institute Inc., Cary, NC, EUA). As variações intra e interensaio foram estudadas no soro padrão contendo 50 UA/ml. Para determinar a variação intraensaio, o padrão foi testado 27 vezes na mesma placa. A variação entre-ensaios foi determinada pela avaliação do padrão sérico em 14 dias alternados. O teste Q de Cochran(17) foi usado para comparar sensibilidade e especificidade das reações. Diferenças entre resultados foram consideradas significantes quando p ≤ 0.05.
Com base nas titulações do DNA e conjugado, excesso de antígeno e conjugado foram atingidos em concentrações > 10 µg/ml e diluições < 1:8.000, respectivamente. Estudos de linearidade mostraram que a taxa de conversão do substrato foi linear por pelo menos 12 minutos para um padrão sérico contendo 50 UA/ml. O teste ELISA foi padronizado usando uma concentração de DNA de 20 µg/ml e uma diluição do conjugado de 1:4.000. A reação foi interrompida 10 minutos após adição do sistema substrato.
Usando o valor de corte determinado pela curva ROC (7,65), ELISA foi positivo em 118 (92,9%) das 127 amostras de soro dos pacientes com LES e negativo em todas as 37 amostras de soro dos indivíduos saudáveis. Vinte e um dos 127 pacientes com LES tinham teste positivo para anticorpos direcionados contra o antígeno Smith (Sm). Embora a frequência de detecção de anticorpos anti-Sm seja baixa, esses anticorpos são altamente específicos para a doença(18). Todos os pacientes com LES com anticorpos anti-Sm também mostraram níveis significantes de anticorpos IgG anti-DNAds por ELISA. A técnica ELISA também foi positiva em cinco (8,9%) dos 56 pacientes com outras doenças: dois com artrite reumatoide [ambos tiveram testes positivos para fator reumatoide e a terceira geração de anticorpos contra peptídeo citrulinado cíclico (CCP3) do isotipo IgG], um com esclerose sistêmica (o paciente tinha teste positivo para topoisomerase 1), um com hepatite B [o paciente tinha teste positivo para antígeno de superfície do vírus de hepatite B (HbsAg)] e um com mononucleose [o paciente tinha testes positivos de imunoglobulina classe M (IgM) e IgG contra antígeno do capsídeo viral do vírus Epstein-Barr (EBV-VCA), com um resultado negativo para o antígeno nuclear do vírus Epstein-Barr (EBNA)]. Nenhum desses cinco pacientes tinha evidência clínica de LES. Outros estudos detectaram reações positivas a anticorpos IgG anti-DNAds por ELISA em pacientes com artrite reumatoide(19-21), esclerose sistêmica(15,22), hepatite B(23) e mononucleose(15,20).
O teste CLIFT foi positivo (títulos ≥ 1:10) em 109 (89%) das 127 amostras de pacientes com LES, e negativo em todas as 56 amostras de pacientes com outras doenças e nas 37 amostras de indivíduos saudáveis. Nove pacientes com LES tinham resultado de anticorpo IgG anti-DNAds positivo com ELISA e negativo com CLIFT. Com base na história clínica, esses nove pacientes tiveram o diagnóstico de LES confirmado, segundo os critérios do American College of Rheumatology (ACR). Nove pacientes com LES não tiveram anticorpos IgG anti-DNAds detectados nem por CLIFT nem por ELISA. Todos esses nove pacientes estavam sob terapia imunossupressora na época da coleta do soro.
ELISA e CLIFT mostraram alta acurácia diagnóstica, com valores de k de 0,87 e 0,84, respectivamente. Os coeficientes de variação intra e interensaio de ELISA foram 3,1% e 9,6%, respectivamente.
Os resultados obtidos com ELISA e CLIFT para detectar anticorpos IgG anti-DNAds são mostrados na Tabela. Em resumo, ELISA mostrou sensibilidade de 92,9% e especificidade de 94,6%, enquanto CLIFT mostrou sensibilidade e especificidade de 85,8% e 100% respectivamente. Com base na análise estatística: 1. ELISA teve sensibilidade significantemente maior que CLIFT (p = 0,0027); 2. CLIFT teve especificidade significantemente maior que ELISA (p = 0,0253).
Tabela Resultados de ELISA e CLIFT em pacientes com LES, pacientes com outras doenças e indivíduos saudáveis
ELISA | CLIFT | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Pacientes com LES (n = 127) | Pacientes com outas doenças (n = 56) | Indivíduos saudáveis (n = 37) | Sen (%) | Spe (%) | Sen (%) | Spe (%) | |
x | 44,3 | 4,35 | 4,4 | 92,9 | 94,6 | 85,8 | 100 |
V | (3,25-100) | (0,78-16,2) | (1,66-7,47) |
ELISA: técnica imunoenzimática enzyme-linked immunosorbent assay; CLIFT: teste de imunofluorescência indireta com Crithidia luciliae como substrato; LES: lúpus eritematoso sistêmico; Sen: sensibilidade; Esp: especificidade; x: média aritmética (UA/ml); V: variação (valores mínimos e máximos, em UA/ml); AU: unidades arbitrárias.
O método ELISA descrito aqui foi padronizado levando-se em conta duas exigências para uma técnica quantitativa, isto é: 1. todos os reagentes, exceto aquele em teste (os anticorpos, neste caso), estavam presentes em excesso; 2. a atividade enzimática foi medida durante a porção linear inicial da reação, quando a taxa de conversão do substrato era diretamente proporcional à concentração do anticorpo. Além disso, o uso de uma curva padrão para determinar a concentração de anticorpos anti-DNAds e a subsequente expressão de resultados em unidades arbitrárias de anticorpos reduziram acentuadamente a variabilidade dos achados(24,25).
A literatura mostra grande variação no desempenho de testes ELISA para anticorpos IgG anti-DNAds, com sensibilidade variando entre 19% e 98% e especificidade entre 73% e 99%(15,18,19,26-29). O ELISA descrito neste trabalho mostrou excelente desempenho, com 92,9% de sensibilidade e 94,6% de especificidade. Variações no desempenho de reações sorológicas usadas para detectar anticorpos IgG anti-DNAds são esperadas e provavelmente relacionadas com vários fatores, como a heterogeneidade dos pacientes incluídos no estudo, a condição imunológica do paciente no momento de sua participação no estudo, as propriedades intrínsecas das técnicas usadas para pesquisa de anticorpos, a preparação antigênica, a diversidade de anticorpos produzidos pelos pacientes e o método de calcular o valor de corte.
O excelente desempenho do teste ELISA descrito neste trabalho torna-o uma ferramenta potencialmente útil para a detecção de anticorpos IgG anti-DNAds em pesquisa e rotina diagnóstica.