versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol., ahead of print Epub 20-Mar-2020
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2019-0089
O termo Readmissão Hospitalar apareceu pela primeira vez na literatura médica em 1953, ao se avaliar as causas de readmissão de pacientes psiquiátricos na Clínica de York, Guy’s Hospital, em Londres.1 Posteriormente, esse conceito foi veiculado em outras especialidades, principalmente em pacientes cirúrgicos, na tentativa de se estabelecer uma associação causal entre a readmissão e a primeira hospitalização, mesmo em pacientes previamente saudáveis.2 Uma análise mais aprofundada sugeriu que apenas as readmissões hospitalares dentro de 30 dias estavam associadas a alta e falta de atendimento ambulatorial adequado do que readmissões após esse período.3
Em 1988, a Health Care Financing Administration, um órgão criado em 1977 para administrar e supervisionar o Medicare nos Estados Unidos, exigiu uma auditoria de todas as readmissões dentro de 30 dias após a alta para determinar se a alta havia sido prematura ou se outros problemas de qualidade poderiam ser identificados. Esse processo de auditoria foi estendido aos hospitais que atendiam beneficiários do Medicare e pessoas pobres, uma vez que não havia sido demonstrado em trabalhos anteriores a associação de fatores sociais demográficos com readmissão hospitalar.4,5 Enquanto idade, sexo, estado geral de saúde, tipo de doença e procedimentos realizados na admissão foram associados a readmissão, estado civil, condições de vida, acesso a cuidados e cobertura de seguro não foram associados.5
Em 2009, o Centro de Serviços Medicare e Medicaid (CMS) começou a avaliar as taxas de readmissão hospitalar em instituições públicas como parte do Programa de Atualização Anual de Dados e Qualidade do CMS.6 A partir de 2013, os hospitais que atendiam pacientes do Medicare não seriam reembolsados se a taxa de readmissão fosse considerada excessiva.6,7 O excedente das taxas de readmissão é medido por uma razão, dividindo o número de Readmissão Hospitalar “previsto” devido a certas doenças (infarto do miocárdio, insuficiência cardíaca, pneumonia, doença pulmonar obstrutiva crônica e quadril/cirurgia de revascularização do miocárdio) pelo número do que seria “esperado”, com base em um hospital médio com pacientes semelhantes. Uma proporção maior que 1,0 indica excesso de readmissões.6
No Brasil, não existem políticas governamentais vinculadas ao Ministério da Saúde para verificar a readmissão hospitalar em hospitais públicos. No setor privado de saúde, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)8 iniciou em dezembro de 2015 a utilização da taxa de Readmissão Hospitalar como um dos indicadores de qualidade de saúde. Pacientes com complicações obstétricas e pacientes submetidos a quimioterapia para câncer são excluídos. O uso desse indicador é para auditoria e pagamento de reembolso. Espera-se que o uso desse indicador diminua o número de readmissões em serviços de emergência após a alta hospitalar. Estima-se que a taxa de readmissão hospitalar no Brasil seja de 19,8% com variação regional significativa (região Norte 11,7% e região Sul 25,4%). Assim, propõe-se uma taxa de RH precoce ≤ 20% como meta.8,9,10
O Ministério da Saúde (MS) define “readmissão hospitalar como uma nova hospitalização no mesmo hospital dentro de um certo período de tempo após a alta hospitalar inicial. O tempo decorrido desde a hospitalização inicial depende do evento que está sendo medido”.11 A Readmissão Hospitalar é definida como aquela que ocorre dentro de 30 dias após a alta hospitalar inicial, uma vez que provavelmente associa-se aos cuidados de qualidade prestados durante e após a admissão anterior.12 As readmissões também são classificadas como planejadas e não planejadas. Embora a readmissão planejada geralmente reflita diagnóstico e terapia complementares, as readmissões não planejadas estão associadas a eventos inesperados e, portanto, são usadas para fins de pesquisa.13 As readmissões podem ser evitáveis. A qualidade do atendimento durante a hospitalização inicial, o planejamento adequado da alta, o acompanhamento após a alta e a coordenação entre os cuidados hospitalares e ambulatoriais estão associados a menor número de readmissões.14
A RH é uma métrica bem aceita da qualidade hospitalar. Recomenda-se uma análise crítica no momento da readmissão, buscando causas evitáveis. Portanto, complicações da primeira hospitalização, adequação dos diagnósticos e tratamento médico, falta de medicação, educação adequada do paciente para apoiar a adesão, alta precoce e acompanhamento ambulatorial inadequado devem ser avaliados.15,16 Assim, estudos de readmissão hospitalar precoce são essenciais para a melhoria contínua dos processos de assistência ao paciente.17
A vantagem de usar a RH como uma medida de qualidade hospitalar é o monitoramento contínuo das taxas e causas de RH. São valiosos indicadores de assistência à saúde usados para identificar e desenvolver medidas corretivas para melhorias adicionais. Pacientes com doenças complexas e graves apresentam maior risco de RH, necessitando de um acompanhamento coordenado intra-hospitalar e ambulatorial.18 Contudo, a taxa de RH nem sempre pode estar relacionada a cuidados de saúde inadequados.19 Pacientes com doenças complexas, como insuficiência cardíaca congestiva, asma e doença pulmonar obstrutiva crônica, apresentam progressões e exacerbações frequentes e exigem hospitalização. Dessa forma, nem sempre estão associadas a falta de suporte hospitalar e ambulatorial.20 Assim, ao estudar a RH, é necessária uma avaliação completa dos aspectos sociais e do bem-estar social para conceber novas intervenções.21 A RH é um parâmetro de qualidade da assistência relacionado a outros indicadores de saúde que mostram o acesso da população aos serviços de saúde.
A RH tem sido associada a um risco aumentado de mortalidade uma vez que associa-se a eventos adversos, novas infecções e erros de medicações.21,22 Por outro lado, em pacientes com doenças crônicas, como insuficiência cardíaca congestiva, cirrose hepática, doença pulmonar obstrutiva e doença vascular periférica, a RH pode indicar o curso natural da progressão da doença subjacente e está associada à mortalidade prematura.23 Em pacientes idosos, a RH indica extrema vulnerabilidade e é um forte fator de risco independente para óbito.21 Pacientes que foram readmitidos em até 30 dias têm maior risco de desenvolver a Síndrome Pós-Hospitalização. Essa condição adquirida é caracterizada pelo aumento da vulnerabilidade devido a fatores como desnutrição, alterações no ciclo sono-vigília, estresse, delírio e atrofia muscular que ocorreram durante a hospitalização. No momento da alta hospitalar, a reserva fisiológica se esgota, levando a uma condição frágil que aumenta o risco de RH e mortalidade.24
O risco de RH é duas vezes maior para pacientes com doença renal crônica em hemodiálise em comparação com a população em geral.25 As principais causas de hospitalização são complicações no acesso vascular, hipertensão, sepse, insuficiência cardíaca e infarto agudo do miocárdio.25 Por outro lado, malignidades, três ou mais hospitalizações no ano anterior, complicações no acesso ao cateter vascular, hipotensão intradialítica e desnutrição são os fatores de risco associados à RH. Curiosamente, a redução dos medicamentos prescritos desde a admissão até a alta hospitalar está associada a menor probabilidade de RH.26 Pacientes em diálise peritoneal apresentam maior risco de RH em comparação aos que fazem hemodiálise. As principais causas são peritonite, transferência da diálise peritoneal para a hemodiálise e incapacidade de continuar a diálise peritoneal em casa.27 A mortalidade cumulativa entre pacientes com doença renal crônica submetidos a RH é duas vezes maior do que aqueles sem RH. Pacientes com RH são frequentemente admitidos no departamento de emergência, unidades de terapia intensiva ou em outro hospital, onde os cuidados previamente planejados são fragmentados. A RH também pode ser um índice que avalia o declínio do estado geral de saúde. A continuidade do atendimento ao paciente nas clínicas de hemodiálise é fundamental para evitar novas readmissões.28,29
Os primeiros estudos sobre RH de receptores de transplante renal foram publicados em 2008 nos Estados Unidos, quando o Centro de Serviços do Medicare e Medicaid (CMS) começou a avaliar as taxas de readmissão hospitalar em instituições públicas como parte do Programa Anual de Atualização de Qualidade e Dados do Relatório do CMS.6 A partir de 2013, os hospitais que atendem aos critérios do Medicare não são reembolsados se a taxa de readmissão for considerada excessiva. Existe um intenso debate sobre se a RH pode ser utilizada entre os transplantados renais que, além de apresentarem uma doença crônica, que por si só aumenta o risco de readmissão hospitalar, ainda são submetidos a um procedimento cirúrgico.30 Além disso, a maioria das RH não é potencialmente evitável, o que confirma a gravidade da doença renal crônica e a complexidade desses pacientes.14,31
Conforme dados de uma coorte de 32.961 receptores de transplante renal tratados pelo sistema Medicare de 2000 a 2005 extraídos do registro nos EUA, a taxa de RH em 30 dias foi de 31%, variando de 18% a 47% nos centros de transplante.32-35 Essa grande variação se deve principalmente às características do receptor. Taxas mais altas de RH (45,8%) foram relacionadas a pacientes de maior risco, como pacientes com Síndrome de Fragilidade antes do transplante. Outros fatores relacionados foram: receptores mais velhos, receptores de doador falecido de critério expandido e pacientes que evoluíram com função tardia do enxerto.32-37 O tempo de permanência durante a hospitalização do transplante variou de 5 a 8 dias entre os centros norte-americanos.32-35,38 As principais causas de RH foram relacionadas à cirurgia seguida de complicações infecciosas.33 Os fatores de risco independentes associados à RH foram: receptor com mais de 40 anos, raça negra, história de diabetes mellitus, tempo de diálise, doença pulmonar obstrutiva crônica, doador falecido de critério expandido, não ter recebido nenhuma terapia de indução no momento do transplante e tempo de permanência superior a 5 dias.
Além disso, na população transplantada, como na população geral, a RH foi associada a resultados inferiores em um ano. Os receptores de transplante renal com RH foram readmitidos três vezes mais durante o primeiro ano de transplante, em comparação com os pacientes que não foram readmitidos. Mais importante ainda, a sobrevida do paciente e do enxerto foi menor nos receptores de transplante de rim de doadores vivos e falecidos com RH.39 As principais causas de óbito entre os pacientes com RH foram complicações cardiovasculares e infecções.40,41
A RH não deve ser vista apenas como um indicador da qualidade dos cuidados de saúde, mas também como um indicador para a mortalidade e a perda do enxerto durante o primeiro ano.31 Assim, ao se identificar pacientes com maior risco de RH, é possível desenvolver medidas de intervenção preventiva durante internação e acompanhamento ambulatorial.33
No Brasil, de acordo com dados do Registro Brasileiro de Transplantes, cerca de 5 mil transplantes de rim são realizados todos os anos.42 Desses, mais de 90% são realizados pelo Sistema Único de Saúde. O sistema brasileiro de transplantes difere dos Estados Unidos e da Europa. O sistema brasileiro de alocação considera a compatibilidade HLA como o principal critério de seleção para alocação renal. Como consequência, o tempo de espera na lista é imprevisível.43 Além disso, a duração da hospitalização do transplante é mais longa, uma vez que os pacientes recebem alta após a recuperação da função tardia do enxerto e da retirada de todos os cateteres e da sonda vesical de demora. Por fim, o acesso a tratamentos hospitalares por hospital dia não é universalmente disponível ou acessível a todos os pacientes ou serviços.
Conforme um estudo recente em um centro brasileiro de transplantes, a incidência de RH foi de 26,6% entre 1.175 receptores de transplante renal entre janeiro de 2011 e dezembro de 2012. Os fatores de risco independentes associados à RH foram: idade do receptor, sorologia negativa para Citomegalovirus (CMV) pré-transplante, indução com globulina antitimócito de coelho, rejeição aguda tratada durante a internação do transplante e o tempo de internação hospitalar da internação do transplante. O tempo médio de internação hospitalar foi de 9 dias, durante os quais a incidência de função tardia do enxerto foi de 40,2%. A alta incidência de função tardia do enxerto e a impossibilidade de alta dos pacientes até que recuperassem a função renal afetou a RH. Como a hospitalização inicial prolongada forneceu tempo suficiente para diagnosticar e tratar várias complicações associadas ao transplante, esses pacientes não foram readmitidos posteriormente, o que contribuiu para uma menor taxa de RH. Por outro lado, sabe-se que a internação inicial prolongada aumenta o risco de infecções, erros de medicação e acidentes.44
Os principais motivos de RH foram infecções, complicações cirúrgicas e distúrbios metabólicos. Entre as complicações infecciosas, a infecção por CMV foi a principal causa,44 principalmente porque não foi utilizada profilaxia para CMV.45,46 A RH foi um fator de risco independente para óbito no primeiro ano e foi associada à sobrevida inferior do paciente e do enxerto em 12 meses.44 A infecção por CMV foi associada a um maior risco de rejeição aguda, mortalidade e perda do enxerto durante o primeiro ano após o transplante.47,48,49
Estratégias e protocolos foram desenvolvidos para reduzir a RH na população em geral. Parker e colaboradores50 identificaram intervenções com o objetivo de reduzir a RH, como protocolo de planejamento de alta, avaliações abrangentes de pacientes idosos e diretrizes educacionais. A identificação de pacientes em risco de RH permite uma intervenção direcionada que concentra esforços em fatores de risco, como adesão a medicamentos, status funcional e limitações e a necessidade de acompanhamento mais intenso.51 Intervenções adicionais, como reconciliação de medicamentos, consultas agendadas após a alta, equipes de cuidados de transição e acompanhamento ambulatorial são necessárias.52 O estabelecimento do apoio farmacêutico a informações sobre medicamentos, acompanhamento da adesão e aconselhamento sobre reações adversas a medicamentos pode impedir futuros eventos adversos, apesar da falta de um impacto significativo nas taxas de RH.53 Nenhuma dessas intervenções é eficaz individualmente, fornecendo apoio robusto em favor da abordagem multidisciplinar.52 Por fim, a prevenção de possíveis readmissões melhora a qualidade do atendimento e a experiência do paciente, além de estar associada a custos reduzidos.51
Entre os receptores de transplante renal, a RH é um marcador para morbimortalidade, independentemente das características demográficas da população. Esse marcador inclui não apenas comorbidades, mas também status socioeconômico, acesso aos cuidados, nível de fragilidade e conhecimento em saúde. Os pacientes identificados como vulneráveis com base na RH podem se beneficiar de estratégias de monitoramento adicionais ou individualizadas, incluindo consultas ambulatoriais mais frequentes, telefonemas, exames laboratoriais, monitoramento da adesão e educação familiar30 (Figura 1).
Figura 1 A Readmissão Hospitalar precoce é uma métrica para a qualidade dos cuidados de saúde. É influenciada pelas características demográficas da população em risco; pela abordagem multidisciplinar da alta hospitalar inicial; pelo acesso, cobertura e abrangência do Sistema de Saúde; e políticas de reembolso. A Readmissão Hospitalar precoce está associada a maior morbidade, mortalidade e aumento dos custos com saúde. Estratégias para reduzir a readmissão hospitalar precoce são, portanto, essenciais e devem considerar o ambiente local, incluindo condições socioeconômicas, epidemiologia local, doenças endêmicas e mobilidade.
Na população geral, a Readmissão Hospitalar precoce é uma medida bem estabelecida da qualidade da assistência à saúde e é um preditor robusto de morbimortalidade. Na população de transplantados renais, a RH também está associada à mortalidade e à perda do enxerto. As medidas para reduzir a RH devem considerar intervenções multiprofissionais, considerando a demografia local, protocolos de alta, abrangência e reembolso dos cuidados de saúde, no ambiente clínico e epidemiológico local. Intervenções eficazes certamente reduzirão a morbidade, mortalidade e os custos, aumentando a qualidade de vida dos receptores de transplante renal.