versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622
Epidemiol. Serv. Saúde vol.24 no.4 Brasília out./dez. 2015
http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742015000400015
To describe clinical and epidemiological characteristics of leprosy recurrence diagnosed at referemce centers in the city of Teresina, Piaui, Brazil.
Case series study conducted at the Getulio Vargas Hospital Dermatology Clinic and at the Maria Imaculada Center, from January 2001 to December 2008, using Notifiable Diseases Information System data checked against patients' records.
76 cases of leprosy recurrence cases were confirmed with average patient age of 44.2 years. The average time between discharge and recurrence was 7.9 years. The signs and symptoms of recurrence in both clinics were skin patches, infiltration, nodules and plaques. Multidrug therapy was used.
Recurring cases diagnosed at the clinics in Teresina have clinical characteristics and an epidemiological profile similar to those of Brazil as a whole.
Key words: Leprosy; Recurrence; Signs and Symptoms; Descriptive Epidemiology
describir las características clínicas y epidemiológicas de los casos de recurrencia de hanseniasis diagnosticados en los centros de referencia del municipio de Teresina, Piauí, Brasil.
Estudio de serie de casos realizado en la Clínica de Dermatología del Hospital Getulio Vargas y en el Centro María Inmaculada, en el período de enero de 2001 hasta diciembre de 2008, con datos del Sistema de Informacion de Enfermidades de Declaración Obligatoria (Sinan) adjudicados en los prontuarios.
fueron confirmados 76 casos de recidivas en los centros, con media de edad de 44,2 años; el tiempo medio de alta, en relación al aparecimiento de la recidiva fue de 7,9 años; las señales y síntomas que caracterizaron las recidivas en las dos unidades estudiadas fueron: manchas, infiltraciones, nódulos y placas; la conducta introducida fue multidrogo terapia.
los casos de recurrencia diagnosticados en los servicios de referencia de Teresina tienen características clínicas similares y el perfil epidemiológico es consistente con el de Brasil.
Palabras-clave: Lepra; Recurrencia; Signos y Síntomas; Epidemiología Descriptiva
A recidiva em hanseníase é definida como o desenvolvimento de novos sinais e sintomas, seja durante o período de vigilância epidemiológica, seja a qualquer tempo, em um paciente que tenha completado o tratamento com poliquimioterapia (PQT).1
Entre 2004 e 2009, o número de recidivas de hanseníase em nível mundial permaneceu estável, entre 2.000 a 3.000 casos; entretanto, o número de países que apresentaram casos de recidiva passou de 49 em 2008 para 122 em 2009. Nas Américas, de um total de 1.602 casos de recidivas, o Brasil contribuiu com 1.483, correspondendo a 92,6% do total.2
Há importantes diferenças de registros de recidivas em regiões brasileiras nas quais a prevalência da doença é alta, como a borda da Amazônia Legal. Os estados de Mato Grosso, Acre, Amazonas, São Paulo, Paraná e Santa Catarina registraram as maiores taxas do país, entre 4 e 8% de casos de recidiva.3 No Piauí, o número de casos de recidivas passou de 47 em 2001 para 87 casos em 2008; em sua capital, Teresina, o número aumentou de 17 casos em 2001 para 44 em 2008,4 representando uma proporção de casos de recidiva de 3% em um período de 7 anos.
O município de Teresina possui o maior número de casos de hanseníase notificados em todo o estado.5 Vários estudos relataram (i) detecção tardia de diagnóstico em pacientes com grau II de incapacidade, gerando baixa qualidade de vida, (ii) elevado número de casos em menores de 15 anos, revelando a continuidade da transmissão da doença, (iii) distribuição espacial da hanseníase, concentrada em bairros mais antigos da capital, (iv) aparecimento das principais reações hansênicas e (v) dificuldades de adesão ao tratamento.6-10
Geralmente, as recidivas entre os pacientes que se submetem à PQT para o tratamento da hanseníase ocorrem quando passado um período superior a cinco anos desde a alta.11 O diagnóstico de recidiva obedece a certos critérios clínicos, normatizados pela Portaria do Ministério da Saúde MS/GM nº 3.125, de 7 de outubro de 2010, embora também possam-se considerar os critérios laboratoriais.
Os critérios clínicos de recidivas em casos paucibacilares (PB) baseiam-se em pacientes, após alta por cura, que apresentam dor no trajeto de nervos, novas áreas de alteração de sensibilidade, lesões novas ou exacerbação das existentes que não respondem ao tratamento com corticosteroides por 90 dias. Nos casos multibacilares (MB), os pacientes, após alta por cura, apresentam novas lesões e/ou exacerbação das antigas, novas alterações neurológicas que não respondem ao tratamento com talidomida e/ou corticosteroide nas doses e prazos recomendados, baciloscopia positiva e quadro compatível com paciente virgem de tratamento.12
Os fatores predisponentes que influenciam na patogênese da recidiva são a persistência bacilar, presente em cerca de 10% dos pacientes MB, sendo mais frequente nos casos com alto índice baciloscópico (IB), resistência medicamentosa e erros na classificação operacional adotada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Na persistência bacilar, os bacilos conseguem sobreviver sob condições de baixo metabolismo e em localizações que escapam à ação das drogas, como nervos dérmicos, músculos lisos, nódulos linfáticos, íris, medula óssea e fígado.1,13-15 A persistência bacilar é responsável pelos casos de recidiva nos pacientes com IB>4 e sem nenhum caso detectado entre os contatos íntimos, após cinco anos de alta por cura.16
Quanto à resistência medicamentosa, esta pode ser primária ou secundária. A resistência primária ocorre no próprio paciente, devido a irregularidades no tratamento e à ocorrência de mutações nos genes específicos do bacilo, folp1, rpoB e gyrA, que codificam a resistência a dapsona, rifampicina e quinolonas, respectivamente. A resistência secundária ocorre em indivíduos infectados por bacilos já previamente resistentes.17 Cabe destacar que a persistência bacilar e a resistência à droga por mutação são responsáveis pelos casos de recidivas tardias, enquanto o tratamento inadequado, com morte insuficiente de bacilos, causa recidivas precoces.18
O erro na classificação inicial pode ocorrer em pacientes previamente diagnosticados como PB, quando apresentam esfregaços intradérmicos positivos e o esquema terapêutico adotado para tratamento mostra-se inadequado, acarretando recidivas anos depois, em uma forma MB bem caracterizada.19
São vários os fatores de risco para as recidivas, entre os quais se encontram a idade e o sexo. Casos multibacilares são mais frequentes nas faixas etárias mais avançadas, enquanto casos paucibacilares, mais frequentes entre os mais jovens. O sexo masculino é o mais atingido; nas mulheres, as recidivas mantêm relação com a gravidez e a lactação.13
Outro fator de risco é o IB alto no início e no fim do tratamento, quando a recidiva ocorre com mais facilidade, razão porque esses pacientes devem merecer uma vigilância especialmente cuidadosa por parte dos programas de tratamento da hanseníase.20 A irregularidade do tratamento pode determinar a ocorrência de recidivas, em função do aparecimento de resistência medicamentosa. Pacientes em contato com as formas bacilares da hanseníase constituem importante fator de risco de recidiva da doença.19 O exame dos contatos é um relevante instrumento de controle da endemia, no sentido de evitar a reinfecção dos pacientes.21
As recidivas constituem o principal indicador da efetividade de um programa de controle da hanseníase.22 Tornam-se necessários estudos que abordem as variáveis envolvidas na ocorrência de recidivas, para auxiliar na implementação e avaliação dos programas e na melhoria dos resultados no tratamento da hanseníase.
O objetivo deste estudo foi descrever as características clínicas e epidemiológicas dos casos de recidivas de hanseníase diagnosticados nos serviços de referência do município de Teresina, estado do Piauí, Brasil.
Trata-se de um estudo de série de casos que incluiu todos os casos de recidivas de hanseníase identificados em residentes no município de Teresina, situado no meio norte da região Nordeste do Brasil.
A pesquisa foi realizada no período de janeiro de 2001 a dezembro de 2008, nos Centros de Referência para o tratamento da hanseníase no município: Clínica de Dermatologia do Hospital Getúlio Vargas, instituição de ensino conveniada com a Universidade Federal do Piauí; e Centro Maria Imaculada, vinculado à Arquidiocese de Teresina e dedicado ao tratamento e controle da doença.
Os casos foram obtidos do registro do Sistema de Informação de Agravos e Notificação (Sinan) da Secretaria Municipal de Saúde, confirmados pelos dados da Secretaria de Estado da Saúde e pelos prontuários de atendimento.
Considerando-se os critérios preconizados pelo Ministério da Saúde para validação diagnóstica dos casos de recidiva, foram estabelecidos os seguintes escores: período de incubação >5 anos = 1 ponto; sinais e sintomas clínicos = 7 pontos; baciloscopia positiva = 1 ponto; e histopatologia compatível = 1 ponto. Foi estabelecido o ponto de corte = 7, correspondente à pontuação máxima atribuída aos achados clínicos.12
Foi incluído no estudo todo paciente notificado com o diagnóstico clínico de recidiva de hanseníase na ficha do Sinan, que havia se tratado para a doença de forma regular, recebido alta por cura e, entretanto, apresentado sinais clínicos e/ou laboratoriais de atividade da doença. Os casos com menos de um ano do término do tratamento e pacientes compatíveis com o diagnóstico de reação de hanseníase ou outro diagnóstico dermatológico foram excluídos da amostra do estudo.
Foram avaliadas as seguintes variáveis: sexo; idade; procedência; formas clínicas; incapacidades físicas; baciloscopia; grau de incapacidade; período de incubação a partir da alta; troncos nervosos acometidos; e esquemas terapêuticos.
O protocolo do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal do Piauí - CEP-MEMO nº 0288.0.045.000-10, de 24 de setembro de 2010 -, em conformidade com as diretrizes da Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 196, de 10 de outubro de 1996, vigente à época do estudo.
Foram confirmados 56 casos de recidivas: 36 casos diagnosticados na Clínica Dermatológica do Hospital Getúlio Vargas e 20 casos no Centro Maria Imaculada, sendo a maioria do sexo masculino (N=31). A idade média desses casos foi de 42,3 anos (desvio-padrão [DP] = ±1,2) para os homens e de 46,2 anos (DP = ±1,2) para as mulheres (Tabela 1).
Tabela 1 Idade e sexo dos pacientes que apresentaram recidiva de hanseníase segundo o local de atendimento no município de Teresina, estado do Piauí, 2001 a 2008
O tempo médio da alta em relação ao aparecimento da recidiva foi de 7,9 anos, (DP = ±1,9) (Tabela 2). O exame dermatoneurológico foi realizado em toda a população do estudo; as manchas predominaram, estando presentes em 49 pacientes, seguindo-se 12 pacientes com infiltração, 8 com nódulos e 7 com placas (Tabela 3).
Tabela 2 Intervalo de tempo entre a alta e o aparecimento da recidiva de hanseníase por local de atendimento no município de Teresina, estado do Piauí, 2001 a 2008
Tabela 3 Descrição das lesões apresentadas pelos pacientes na recidiva de hanseníase segundo o local de atendimento no município de Teresina, estado do Piauí, 2001 a 2008
Os sinais e sintomas que caracterizam as recidivas de hanseníase no município de Teresina estão representados na Tabela 4. Entre 56 pacientes, 52 apresentaram mal-estar sem febre.
Tabela 4 Sinais e sintomas apresentados pelos pacientes na recidiva de hanseníase segundo o local de atendimento no município de Teresina, estado do Piauí, 2001 a 2008
De acordo com os resultados desta pesquisa, 10 pacientes apresentaram pelo menos um nervo acometido (Tabela 4); entre eles, 4 pacientes tiveram acometimento do nervo ulnar, 2 apresentaram-se com nervo mediano acometido, 2 com lesão do nervo radial, 1 com acometimento do nervo fibular e 1 com o nervo tibial posterior acometido.
A maioria dos casos (44/56) recebeu tratamento com PQT MB (Tabela 5).
A presente pesquisa revelou que os pacientes com recidivas de hanseníase estiveram concentrados na faixa etária de 40 anos, em fase produtiva, quando muitos se encontram trabalhando. Houve predominância de recidiva entre pessoas do sexo masculino, em concordância com a literatura.13 O tempo médio transcorrido entre alta por cura e aparecimento da recidiva foi de 7,9 anos após a alta, corroborando os critérios estabelecidos para a diferenciação entre reação e recidiva que geralmente definem esse período em mais de cinco anos.12 As manchas constituíram a lesão mais frequente nos casos de recidivas, sem presença de febre, com registro de mal-estar, sendo a MB a opção terapêutica mais utilizada.
Os serviços de saúde devem estar atentos ao aparecimento das reações hansênicas, para não incorrerem no risco de tratamento desnecessário e na mudança de parâmetros epidemiológicos não compatíveis com a realidade. A regressão espontânea dos sintomas pode ser consequência da resposta ao esquema terapêutico ou da resolução espontânea do processo da doença.23
Estudo realizado no município de Duque de Caxias, estado do Rio de Janeiro, relatou uma taxa bruta de recidiva de 0,64% no período de 1990 a 2003. A maioria dos dados que serviram a esse estudo foi colhida em unidades básicas de saúde, onde os prontuários eram preenchidos por clínicos gerais, o que permitiu uma validação de apenas 11 prontuários em um universo de 325 com diagnóstico de recidiva de hanseníase.24 No município de Teresina, houve 56 casos notificados como recidiva no período de 2001 a 2008, número relativamente alto quando comparado ao encontrado em Duque de Caxias. O percentual de recidivas no total de casos novos foi de 17 casos em 2001, passando a 44 casos em 2008. Esses percentuais são equivalentes aos encontrados para o Brasil, cujos índices aparecem entre os maiores do mundo.7 Provavelmente, o resultado da presente pesquisa explique-se pelo fato de o município piauiense possuir características de hiperendemicidade e os dois serviços analisados representarem Centros de Referência para a identificação da hanseníase, dotados de profissionais mais qualificados.
A análise dos sinais e sintomas apresentados pelos pacientes durante o diagnóstico das recidivas objetivou verificar se os critérios clínicos utilizados nos dois Centros de Referência estavam de acordo com os parâmetros estabelecidos pelo Ministério da Saúde para diagnóstico de recidivas - diferenciado do diagnóstico das reações hansênicas. Sobre as formas neurais puras, dois pacientes, ambos atendidos no Hospital Getúlio Vargas, não apresentaram acometimento cutâneo. Essas formas de recidivas neurais puras são de difícil avaliação, da mesma forma que o diagnóstico de novos casos, exigindo uma equipe multidisciplinar constituída de fisioterapeuta, dermatologista, ortopedista e neurologista, para um diagnóstico diferencial e de outras morbidades.12 No diagnóstico, devem ser identificados novos troncos nervosos espessados e sensíveis, com extensão da área de perda de sensibilidade e um insidioso aparecimento de déficit motor.13 No presente estudo, entre 56 pacientes, 46 não apresentaram acometimento de tronco nervoso. Contudo, uma pesquisa realizada no estado do Espírito Santo, com 104 pacientes, identificou 10 (9,6%) com acometimento de um único tronco nervoso, 33 (31,7%) com dois troncos nervosos afetados, enquanto 54 (51,9%) não apresentaram nenhum tronco nervoso acometido e 7 (6,7%) não foram avaliados.25
Quanto às condutas tomadas diante de recidivas, foi realizada nova PQT, na maior parte dos casos com a introdução do esquema MB. Estudo comparativo de vários esquemas terapêuticos comprovou que as recidivas, após cinco anos da liberação da terapia, estavam confinadas no polo multibacilar, com alta carga bacilar.26 Estudo realizado em Cebu, Filipinas, com pacientes multibacilares, demonstrou que o risco de recidiva era maior nos casos que apresentavam IB≥4 (quando comparados àqueles com carga bacilar menor), resultando no crescimento residual dos bacilos persistentes pós-poliquimioterapia.27 A OMS divulgou em 1994 - após a introdução da PQT - que o risco de recidiva era maior nos casos PB do que nos MB: 1,1% e 0,7%, respectivamente. Contudo, é possível que se tenha superestimado os casos paucibacilares, confundido-se muitas reações reversas com recidivas.
Os achados deste estudo confirmam serem os casos caracterizados como recidivas (i) mais expressivos em pacientes do sexo masculino, além de constatar um (ii) tempo médio entre a alta e o reaparecimento de sinais e sintomas de 7,9 anos, em concordância com a literatura. Ademais, a forma multibacilar foi a mais frequente e em idade mais avançada, dos 40 aos 50 anos. Recomenda-se a realização de estudos que abordem as variáveis envolvidas na ocorrência de recidivas, para auxiliar na implementação e avaliação dos programas e na melhoria dos resultados alcançados com o tratamento da hanseníase.
Finalmente, o presente trabalho indica a necessidade de um diagnóstico diferencial mais correto e efetivo, para se evitar confusões com reações hansênicas e, por conseguinte, tratamentos inadequados.
Nesse sentido, sugere-se a realização de uma capacitação mais eficaz dos profissionais de saúde dedicados à avaliação dos casos de hanseníase em tratamento nos Centros de Referência-objeto desta análise, como forma de eliminar os erros de diagnóstico tanto de recidivas como de reações hansênicas.