versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.83 no.2 São Paulo mar./abr. 2017
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2016.03.017
A deterioração da função auditiva e o declínio cognitivo são condições comumente encontradas na população idosa e podem comprometer o processo de envelhecimento. A perda auditiva decorrente do envelhecimento caracteriza-se pela diminuição da sensibilidade auditiva, principalmente para sons de frequências altas, e dificuldades de percepção de fala.1-3
O uso de próteses auditivas é um meio primordial na reabilitação da perda auditiva.4 No entanto, em função da combinação de alterações periféricas e centrais, frequentemente os idosos não atingem melhoria satisfatória do reconhecimento de fala em situações de ruído competitivo com o uso da amplificação.
Vários estudos têm demonstrado que a compreensão de sentenças no ruído está comprometida em pacientes com demência.5,6 Esse déficit pode ser atribuído à dificuldade no processamento gramatical e/ou semântico da informação, assim como à maior demanda cognitiva necessária para a decodificação e compreensão do sinal de fala na presença do ruído.7
As habilidades cognitivas, como atenção, memória e linguagem, estão envolvidas no processo de detecção, discriminação, compreensão e organização do discurso. A compreensão da interação das funções cognitivas com as funções sensoriais pode auxiliar na reabilitação do idoso com dificuldade de adaptação da prótese auditiva, bem como nortear o avanço tecnológico na área da protetização.8,9
Sabe-se que um déficit cognitivo pode estar associado ao relato de sintomas depressivos. As alterações cognitivas mais frequentes em idosos deprimidos são as funções executivas, os déficits atencionais e a diminuição na velocidade do processamento. Considerando que a depressão pode simular um quadro demencial,10,11 faz-se necessária a investigação de sintomas depressivos em pacientes idosos usuários de próteses auditiva, pois a presença desses sintomas pode interferir negativamente no processo de comunicação desses indivíduos.
Com base nessas considerações, acredita-se na hipótese de que o reconhecimento de fala no ruído de idosos usuários de próteses auditivas é prejudicado quando associado a declínio cognitivo e presença de sintomatologia depressiva. Assim, este estudo teve como objetivo avaliar, por meio de testes de reconhecimento de sentenças no ruído, o desempenho de idosos usuários de próteses auditivas, segundo os aspectos cognitivos e depressivos.
Este estudo caracterizou-se como pesquisa experimental com amostra não probabilística por conveniência. Este trabalho foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da instituição, os participantes foram informados sobre os objetivos e a metodologia do estudo proposto e concordaram com participação voluntária, ao assinar um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
A amostra foi selecionada de acordo com os seguintes critérios de elegibilidade:
Ter idade igual ou superior a 60 anos;
Ser portador de perda auditiva neurossensorial, simétrica, adquirida, de grau leve a moderadamente severo, segundo a classificação de Lloyd e Kaplan, 1978;
Ser usuário de próteses auditivas em adaptação bilateral, modelos idênticos, retroauriculares ou intra-aurais;
Fazer uso efetivo da amplificação havia pelo menos três meses (pós-período de aclimatização);
Ausência de comprometimentos evidentes de alterações neurológicas, articulatórias e/ou de fluência verbal.
A partir dos critérios de elegibilidade, foram convocados por telefone, para a participação neste estudo, 25 indivíduos, nove do gênero masculino e 16 do feminino, entre 60 e 85 anos (média de 69,7).
Todos os pacientes foram submetidos a avaliação dos aspectos cognitivos e depressivos, bem como a pesquisa da relação sinal ruído (S/R) do teste lista de sentenças do português. Os procedimentos foram feitos em uma única sessão de avaliação, com duração de aproximadamente 90 minutos.
A avaliação cognitiva foi feita por meio dos testes miniexame do estado mental (MEEM) e escala de avaliação de doença de Alzheimer - ADAS-Cog.
O MEEM é um teste de rastreio usado para avaliar a função cognitiva. No Brasil, foi adaptado por Bertolucci et al.12 O teste avalia oito parâmetros cognitivos divididos em sete categorias: orientação temporal e espacial, memória em curto prazo e evocação de palavras, cálculo, praxia, habilidades de linguagem e visoespaciais. A pontuação do teste varia de 0 a 30 pontos. Quanto menor a pontuação, maior a chance de o indivíduo apresentar alteração na capacidade cognitiva. Neste estudo, foi usada a classificação de pontuação segundo Brucki et al.13
Nesta pesquisa também usou-se a sessão cognitiva da escala de avaliação de doença de Alzheimer (ADAS-Cog), que é composta por 11 itens, os quais avaliam memória (reconhecimento e evocação), linguagem (discurso e compreensão) e praxia (cópia e ideomotora). O escore foi classificado conforme a escolaridade do paciente e foram considerados alterados aqueles fora da faixa que equivale à média mais dois desvios padrões.14
Cabe ressaltar que essas escalas foram usadas para classificar o desempenho cognitivo dos indivíduos na categoria normal ou alterado, conforme sua escolaridade. Nenhum participante apresentava diagnóstico de doença de Alzheimer.
Para a avaliação da sintomatologia depressiva foi aplicada a versão reduzida da escala de depressão geriátrica (EDG-15), composta por 15 perguntas com opções de respostas fechadas ("sim" ou "não"). Para a análise dos resultados foram considerados os critérios de pontuação sugeridos por Almeida,11 foram considerados alterados escores maiores de cinco pontos.
Para a pesquisa da relação S/R usou-se o teste lista de sentenças do português (Costa, 1998),15 o qual é composto por listas com dez sentenças cada uma, e um ruído competitivo de espectro de fala. Nesta pesquisa, a aplicação do teste foi em campo livre em ambiente acusticamente tratado, o indivíduo foi posicionado a um metro da fonte sonora, na condição 0º azimute, ou seja, à frente do indivíduo. A apresentação das sentenças seguiu a estratégia ascendente-descendente.16 O nível de ruído foi mantido constante durante a apresentação das sentenças, foi somente modificada a intensidade de apresentação das sentenças. Foi estabelecida a relação S/R inicial de +5 dB. Para o cálculo da relação S/R, o valor médio do LRSR foi subtraído do nível de intensidade do ruído. Dessa forma, a relação S/R correspondeu à diferença, em dB, entre o valor do LRSR e o valor do ruído competitivo.
Para estudar a correlação entre os testes e a relação S/R com a idade, escolaridade e tempo de uso do ASSI, foram construídos diagramas de dispersão e calculados coeficientes de correlação de Spearman.17 Os mesmos procedimentos foram adotados no estudo das correlações entre os testes dois a dois e entre os testes e a relação S/R. Foi ajustado um modelo de regressão,17 teve como variável resposta a relação S/R e como possíveis variáveis explicativas os testes e a escolaridade. O procedimento forward stepwise foi adotado na seleção das variáveis explicativas. As médias dos escores, nos quatro testes, foram, também, estimadas por intervalo, foi adotado coeficiente de confiança de 95%. Nos testes de hipótese, foi fixado nível de significância de 0,05 e os valores significantes foram grafados com asterisco (*).
Inicialmente fez-se uma análise das estatísticas descritivas para a idade, escolaridade e tempo de uso do AASI da amostra estudada (tabela 1).
Tabela 1 Estatísticas descritivas para idade (anos), escolaridade (anos) e tempo de uso do AASI (meses)
Variável | N | Média | Desvio padrão | Mínimo | Mediana | Máximo |
---|---|---|---|---|---|---|
Idade | 25 | 69,7 | 7,6 | 60 | 67 | 85 |
Escolaridade | 25 | 4,5 | 3,1 | 0 | 4 | 11 |
Tempo uso | 25 | 10,2 | 6,5 | 3 | 7 | 27 |
AASI, aparelho de amplificação sonora individual.
Foi feito um estudo comparativo entre reconhecimento de sentenças no ruído (relação S/R) e as variáveis, tempo de uso da prótese auditiva, escolaridade e idade. Observou-se uma correlação negativa, com significância estatística, entre relação S/R e escolaridade, ou seja, quanto maior a escolaridade menor é a relação S/R (tabela 2).
Tabela 2 Valores observados dos coeficientes de correlação de Spearman17 entre relação S/R e tempo de uso de AASI, escolaridade e idade
Relação S/R | R | P |
---|---|---|
Tempo de uso | -0,13 | 0,536 |
Escolaridade | -0,47 | 0,018* |
Idade | -0,22 | 0,286 |
AASI, aparelho de amplificação sonora individual.
A tabela 3 demonstra a correlação entre a relação S/R do teste LSP e os escores dos testes MEEM, Adas-Cog e EDG. Observou-se uma correlação significante entre a relação S/R e os testes estudados. Assim, quanto maior a pontuação do MEEM, menor do ADAS-Cog e do EDG, menor será a relação S/R para o teste LSP.
Tabela 3 Valores observados dos coeficientes de correlação de Spearman17 entre relação S/R e MEEM, Adas-Cog e EDG
MEEM | ADAS-COG | EDG | |
---|---|---|---|
Relação S/R | |||
R | -0,57 | 0,58 | 0,46 |
P | 0,003* | 0,002* | 0,022* |
Foi feito um modelo de regressão linear múltiplo, a partir da relação existente entre a relação S/R e as variáveis Adas-Cog e escolaridade (tabela 4).
Tabela 4 Modelo de regressão linear múltiplo entre a relação S/R e as variáveis Adas-Cog e escolaridade
Relação S/R prevista = -0,037 + 0,15 × Adas-Cog - 0,40 × Escolaridade |
A partir dos coeficientes do Adas-Cog e da escolaridade no modelo ajustado, observou-se que, para um aumento de uma unidade no escore do Adas-Cog, a relação S/R aumenta, em média, 0,15 dB, e para um aumento de um ano na escolaridade, a relação S/R diminui, em média, 0,40 dB.
A compreensão de fala é, na maioria das vezes, prejudicada pela presença de ruído competitivo. São cada vez mais comuns as queixas de dificuldades de compreensão de fala em ambientes ruidosos entre os idosos usuários de próteses auditivas.18,19 Neste estudo, optou-se por usar testes de reconhecimento de sentenças com a presença de um estímulo competitivo (ruído), em campo livre, para avaliar esses indivíduos ao simular condições de comunicação mais próximas das encontradas no cotidiano.
Os idosos foram selecionados aleatoriamente em um serviço de concessão de próteses auditivas em cidade metropolitana (SP). A população que procura esse serviço consiste, em sua maioria, de pacientes de baixa renda e baixa escolaridade, o que reflete o perfil socioeconômico da maioria dos idosos residentes em países em desenvolvimento. Na amostra atual observou-se um baixo índice de escolaridade entre os participantes e, além disso, a relação S/R obtida no teste LSP tende a aumentar quanto menor for a escolaridade. Isso demonstra que os idosos com menor tempo de escolaridade têm pior desempenho em condições de escuta difíceis.
É importante destacar que a baixa escolaridade pode interferir diretamente no desempenho em testes cognitivos, conforme relatado por Bertolucci et al.12 Até mesmo em pessoas que não apresentavam evidências de déficit cognitivo, quanto menor a escolaridade, pior a pontuação nos testes cognitivos.12,13,20,21
De acordo com Pichora-Fuller,22 para melhor compreensão da influência da audição na participação das atividades de vida diária de um indivíduo, deve-se considerar a variável idade com as diferenças nos desempenhos cognitivo e perceptual. As dificuldades na compreensão de fala são aumentadas por alguns fatores, como o ruído e a memória. Além disso, a significância desses processos vai depender das características socioemocionais apresentadas por cada indivíduo.
O atual estudo encontrou correlação entre os escores da relação S/R do teste LSP com os testes cognitivos MEEM e Adas-Cog, quanto menor o nível cognitivo, pior será o desempenho auditivo do idoso no ruído. O reconhecimento de fala no ruído é uma tarefa que demanda o uso de memória e atenção, bem como a habilidade de fechamento, pois o ouvinte necessita identificar a mensagem distorcida pelo ruído e buscar a informação de fala na memória.23,24 O estudo de Pichora-Fuller et al.25 mostrou que a capacidade de memória de trabalho é reduzida quando o nível de ruído é aumentado em relação ao do sinal.
Lunner,26 Akeroyd,27 Gates et al.,24 Miranda28 e Besser et al.7 encontraram correlações entre o desempenho cognitivo e a habilidade de reconhecer a fala no ruído, os indivíduos com melhor desempenho nos testes cognitivos mostraram melhores resultados na tarefa de reconhecimento de fala. Vários estudos na literatura especializada apontaram que o reconhecimento de fala no ruído exige uma demanda das habilidades cognitivas que se encontram em declínio na população idosa.26,27,29-32
A partir da relação existente entre a relação S/R e as variáveis Adas-Cog e escolaridade foi elaborado um modelo de regressão linear múltiplo. As demais variáveis não apresentaram contribuição significativa adicional às selecionadas para explicar a relação S/R. Assim, é possível prever a relação S/R em que o idoso identifica 50% das sentenças, a partir do escore do teste Adas-Cog e do tempo de escolaridade.
O modelo de regressão proposto neste estudo é um instrumento que pode e deve ser usado na clínica, especialmente quando não há recursos tecnológicos que possibilitem a aplicação de testes de fala na presença de ruído competitivo. A partir dos coeficientes do Adas-Cog e da escolaridade no modelo ajustado, concluiu-se que, para um aumento de uma unidade no escore do Adas-Cog, a relação S/R aumenta, em média, 0,15 dB e para um aumento de um ano na escolaridade, a relação S/R diminui, em média, 0,40 dB.
Além dos déficits cognitivos, a depressão também é um dos problemas de saúde mais frequentes na população idosa.33-35 A depressão é um sintoma comum nos idosos com perda auditiva, pelas limitações funcionais da vida diária que essa privação ocasiona.36-38 Sabe-se que a depressão interfere significativamente no desempenho cognitivo do paciente.39
Na atual amostra, observou-se uma correlação entre sintomatologia depressiva e o reconhecimento de sentenças no ruído. Os idosos deprimidos podem apresentar alterações nas funções executivas, déficits atencionais e diminuição na velocidade do processamento,10 e acredita-se que essas alterações consequentemente possam trazer prejuízos no desempenho comunicativo do idoso usuário de próteses auditiva em ambientes de difícil escuta.
A partir dos achados da presente pesquisa, acredita-se que a aplicação de um teste de reconhecimento de fala no ruído pode ser uma importante ferramenta para auxiliar no monitoramento dos benefícios da adaptação de próteses auditivas em idosos. Ao examinar a população idosa com perda auditiva, dificilmente se obtêm indivíduos totalmente saudáveis, por isso surge a investigação da influência de alguns fatores comumente encontrados nessa faixa etária, como o declínio cognitivo e os sintomas depressivos, pois esses podem interferir negativamente no processo de reabilitação auditiva.
O nível de escolaridade, o desempenho cognitivo e os sintomas depressivos influenciam no reconhecimento de fala no ruído de idosos usuários de prótese auditiva. Quanto melhor o nível cognitivo e maior a escolaridade, melhor é o desempenho do idoso no ruído.