versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.13 no.1 São Paulo jan./mar. 2015 Epub 03-Mar-2015
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082015RC2834
Defeitos na sobrancelha por trauma, queimadura ou cirurgias ablativas exigem procedimento desafiadores de reconstrução.(1-3) Diferentes técnicas de reconstrução de sobrancelha em dois estágios têm sido descritas mundialmente, como tatuagem cosmética, enxerto capilar (microenxertos, enxerto por pinçamento e enxerto por punch), retalho em ilha de pedículo subcutâneo e retalho de fáscia temporoparietal (FTP).(1-5) O enxerto capilar é a técnica mais utilizada;(5) contudo, devido à sua influência por condições circulatórias do local de doação, seu uso em áreas com cicatrizes extensas tornou-se deficiente.(1,2) Os retalhos de couro cabeludo também são utilizados, porém requerem procedimento em etapas. De modo alternativo, o retalho de FTP, associado à ilha de pele de couro cabeludo, tem sido adotado em procedimento cirúrgico único para reconstrução de regiões pouco vascularizadas.(1,2)
Relata-se aqui o caso de um paciente com defeito na sobrancelha esquerda associada à área com cicatriz extensa. A reconstrução foi bem-sucedida com uso de retalho de FTP associado à ilha de pele de couro cabeludo.
Paciente do sexo feminino, 27 anos, que apresentava avulsão completa de tecido mole do lado esquerdo da fronte causada por acidente por motocicleta ocorrido há 2 anos. A paciente realizou implante tardio de retalho de couro cabeludo por 30 dias, para promover granulação, seguida de enxerto de pele em osso frontal em outro serviço hospitalar 17 meses anteriores à procura do nosso serviço. Não houve tentativa anterior de reconstrução da sobrancelha. O exame físico mostrou ausência de músculos frontais na região enxertada, falta de funcionamento do músculo elevador da pálpebra superior e ptose completa da pálpebra esquerda. Além disso, a paciente apresentou ausência da sobrancelha esquerda e tecido cicatricial extenso no local do implante (Figura 1A). Outras avaliações relevaram síndrome da fissura orbitária superior (caracterizada por oftalmoplegia, ptose, proptose e hipoestesia da região frontal e regiões da pálpebra superior).(6) A visão da paciente estava comprometida, como consequência do não tratamento da síndrome no outro serviço hospitalar. A eletromiografia mostrou inatividade do músculo elevador da pálpebra superior.
Figura 1 (A) Aparência pré-operatória da região periorbital. Ausência de sobrancelha esquerda e coloração disforme da pele da fronte devido ao enxerto de pele. (B) Aparência da sobrancelha esquerda com crescimento capilar satisfatório 2 anos após a cirurgia
Um retalho de FTP com ilha longitudinal de couro cabeludo foi planejado da seguinte forma (Figure 2). Realizou-se incisão coronal marcada cuidadosamente distante da artéria temporal superficial (ATS) identificada por meio de dispositivo Doppler. A distância entre o eixo de rotação do retalho e o defeito da sobrancelha foi marcado com cor azul e transferida para o couro cabeludo, revelando a extensão do retalho FTP a ser cultivado. A dimensão da sobrancelha contralateral foi também transferida para o couro cabeludo, simulando a região da sobrancelha ipsilateral, e uma incisão inicial foi realizada na porção parietal distal da marcação coronal.
Figura 2 (A) Ausência de sobrancelha. (B) Representação esquemática de reconstrução de sobrancelha com retalho de fáscia temporoparietal associado à ilha de pele de couro cabeludo. Retalho de fáscia temporoparietal planejado de forma que a ilha da pele fosse posicionada à esquerda do retalho do ramo posterior da artéria temporal superficial. (C) Rotação de retalho de fáscia temporoparietal ao defeito na sobrancelha, anterior à criação de túnel subcutâneo
Após, conduziu-se uma incisão no retalho de couro cabeludo contínua até a orelha esquerda, porém preservando a ATS. Após elevação do retalho do couro cabeludo do plano subcutâneo, a trajetória da ATS estava completamente visível e a porção parietal distal desses vasos foi ligada distalmente, a partir de retalho da FTP. A superfície fina da fáscia temporal, incluindo o retalho de fáscia têmporo associado à ilha de couro cabeludo, foi cuidadosamente elevada em direção ao seu eixo da rotação. Uma incisão na região da sobrancelha esquerda foi conduzida, e o retalho da FTP, contornado em direção à área, por meio de túnel subcutâneo, entre a base do pedículo e o defeito na sobrancelha.
O retalho de FTP, associado ao couro cabeludo, foi, então, adaptado ao espaço criado na incisão da região da sobrancelha (quando a estrutura da sobrancelha contralateral foi utilizada como modelo) e suturado com fios de nylon (Johnson & Johnson, São José dos Campos, São Paulo, Brasil). O local de onde o retalho do couro cabeludo foi removido foi suturado diretamente. Utilizou-se dreno a vácuo por 24 horas.
Juntamente do retalho de FTP, submeteu-se a paciente à reconstrução do osso frontal esquerdo, utilizando calota craniana. Além disso, foram realizados outros procedimentos cirúrgicos, sendo um para reconstruir a asa nasal esquerda com retalho frontal expandido em dois estágios e outro para remover o implante de pele da fronte com retalho de pele temporal expandida.
Não se conduziu procedimento para restaurar o funcionamento da pálpebra superior, devido ao grave comprometimento dos tecidos moles da terceira porção superior da face (ausência de músculos frontais e funcionamento deficiente do músculo elevador da pálpebra superior).
Não existiram intercorrências no pós-operatório, e a morbidade no local de onde se removeram os retalhos foi mínima. O seguimento de 24 meses transcorreu sem complicações, e se alcançou resultado estético satisfatório (Figura 1B). Todavia, não se notou melhora nos sintomas relacionados à síndrome da fissura orbitária superior.
Devido à situação clínica relatada, o ideal seria primeiramente restaurar a função da pálpebra superior esquerda da paciente. Porém, isso não foi possível, pela ausência dos músculos frontais e desnervação completa do músculo elevador da pálpebra superior. Como a paciente queixou-se da ausência de sobrancelha, decidiu-se reconstruí-la com retalho de FTP.
Em geral, a escolha da técnica específica para reconstrução da sobrancelha deve ser individualizada.(4) Os enxertos são mais adequados para mulheres, enquanto os retalhos parecem ser a melhor opção para homens.(4) Todavia, os enxertos não têm densidade adequada(2,3) e implantar enxertos pode ser difícil por sua espessura fina, cicatrização, ou área anteriormente enxertada.(2) Os autores deste estudo e outros cirurgiões(2) favorecem o uso de retalho.
O retalho de FTP tem sido adotado para reconstruções na cabeça e pescoço, base do crânio e cirurgias plásticas pediátrica.(7-9) Muitos cirurgiões têm reconhecido o papel do retalho de FTP na reconstrução da sobrancelha por lesão por queimadura e ressecção tumoral;(1-4,10,11) porém a experiência com seu uso para reconstrução de sobrancelha pós-traumática mantém-se limitada.(2)
Desde a primeira descrição de reconstrução de sobrancelha pós-traumática com retalho de FTP associado à ilha,(12) essa técnica não ganhou popularidade entre os cirurgiões plásticos. Conduziu-se revisão compreensiva da literatura de publicações em língua inglesa indexadas no PubMed/MEDLINE e Embase utilizando os descritores “temporopariental fascia flap” and “superficial temporal artery” combined with “ eyebrow”, “eyebrow defect” and “posttraumatic eyebrow defect”. Essa revisão revelou que estudo pioneiro nesse campo(12) foi o que utilizou retalho de FTP para reconstrução de sobrancelha após trauma.
Talvez a complexa anatomia da fáscia temporal superficial e sua vascularização inibe a difusão do uso desse retalho entre os cirurgiões plásticos. Porém, vantagens significantes, como aquelas descritas previamente por Raffaini e Costa,(12) mostraram que a fáscia ultrafina pode ser rodada para a área do defeito, sem causar volume adicional à região. A área vascularizada do retalho de FTP funciona perfeitamente bem para áreas sem vascularização suficiente e tecido anteriormente cicatrizado, nas quais enxertos de folículos capilares podem não funcionar. A anatomia e o trajeto da ATS devem ser identificados para evitar lesão acidental ao vaso. Uma lesão mínima a ATS durante uma incisão coronal prejudica o retalho de FTP e seu uso subsequente, tanto para reconstrução da sobrancelha como para revestimento com enxerto como suprimento sanguíneo adicional. Portanto, qualquer incisão coronal para reconstrução de lesão óssea deve ser sempre planejada cuidadosamente.
Algumas críticas em relação ao uso de retalho de FTP para reconstrução de sobrancelha são o crescimento do cabelo em direção inatural, a complexidade e morosidade do procedimento, e a necessidade de longo período de treinamento para cirurgiões adquirirem a habilidade para conduzir a técnica.(3) O retalho de FTP constitui-se em opção particularmente útil para reconstrução de defeito na sobrancelha após trauma associado com região cicatricial extensa, principalmente por apresentar confidencialidade estrutural, flexibilidade no contorno, arco largo de rotação do pedículo, alta vascularização, excelente combinação de cor e textura, possibilidade de utilizar como composto a retalho temporoparietal, proximidade anatômica com as sobrancelhas e mínima morbidade do local doador.(2,7,11,12)
Apesar da longa curva de aprendizado,(3) variações e aplicações o retalho de fáscia temporal devem fazer parte das opções de tratamento de todos cirurgiões plásticos.
O retalho de fáscia temporoparietal associado à ilha de pele de couro cabeludo representa técnica útil e uma alternativa para reconstrução com enxertos, sendo que se mostrou adequada para reconstrução de avulsão traumática completa de sobrancelha, associada com cicatriz em paciente do sexo feminino.