versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.16 no.4 São Paulo 2018 Epub 08-Nov-2018
http://dx.doi.org/10.31744/einstein_journal/2018rc3887
A condição de gêmeos siameses é rara, com incidência estimada de 1 em 50 mil nascidos vivos. Esta afecção é mais comum em crianças do sexo feminino, com um razão sexual de 3:1.(1,2)Tais pacientes são gêmeos monozigóticos e monocoriônicos. A separação incompleta da massa celular interna com cerca de 13 a 15 dias de gestação é responsável por esta anormalidade.(3)A união pode ocorrer em locais diferentes, e aqueles classificados como isquiópagos (unidos pelo ísquios) possuem maior risco de apresentar complicações do trato urinário inferior.
A separação raramente envolve questões urgentes, e o tempo ideal para a separação é dentro do primeiro ano de vida, pois este período é adequado para possibilitar as investigações necessárias antes do procedimento.
Poucos estudos lidam com seguimento a longo prazo, principalmente em relação ao funcionamento urológico e à continência urinária. O presente relato de caso apresenta a reconstrução urinária secundária, após conjunto de ações para separação de gêmeos siameses que apresentavam extrofia de bexiga aos 13 anos de idade.
Gêmeos tetrapus do sexo masculino com peso de 3.900kg e nascidos por cesariana. No nascimento, estavam face a face e unidos do abdômen inferior ao períneo ( Figura 1 ). Um terceiro gêmeo de saco gestacional diferente também nasceu. Os isquiópagos apresentavam dois rins e duas uretras normais, mas ambos possuíam clássica bexiga com complexo extrofia-epispádia. O períneo dos gêmeos siameses possuía dois pênis separados com epispádia e um hemiescroto bem desenvolvido em cada paciente, sem evidência de testículos no lado não desenvolvido.
Os gêmeos foram separados aos 8 meses de idade. O intestino grosso, com suprimento sanguíneo duplo, foi dividido longitudinalmente. Os órgãos pélvicos foram revisados e a bexiga e trato genital, distribuídos.
Após a separação com sucesso, o gêmeo 1 realizou, aos 3,8 anos, o primeiro procedimento urológico, que consistiu em fechamento da bexiga extrófica. Porém, o paciente apresentou deiscência da bexiga e, subsequentemente, foi submetido à segunda tentativa de fechamento e à enterocistoplastia, mas sem sucesso, apresentando deiscência persistente.
Os pacientes foram admitidos com idade de 13 anos em nossa instituição. Ambos apresentavam reconstruções vesical e peniana não resolvidas.
Em exame clínico o gêmeo 1 apresentava neobexiga visível no quadrante abdominal inferior, estoma urinário ascendente, comunicação aberta da bexiga com o pênis, ainda sem intervenção cirúrgica ( Figura 2 ). O gêmeo 2 não tinha sido operado e apresentava características clássicas do complexo extrofia vesical e epispádia. A principal expectativa dos pacientes eram continência e abandono do uso de fraldas. Decidiu-se por avaliação intraoperatória da viabilidade da enterocistoplastia anterior do gêmeo 1, considerando a possibilidade de fechamento do colo vesical e reparação do canal eferente. Para o gêmeo 2, planejou-se criar reservatório ileal continente (com conduto cateterizável), baseado no conceito desenvolvido por um dos autores deste relato.(4)
Figura 2 Neobexiga visível no quadrante inferior direito do abdômen, estoma urinário ascendente e comunicação da bexiga com o pênis
Após reavaliação da neobexiga do gêmeo 1, foi encontrada quantidade razoável de tecido da enterocistoplastia prévia e tubo ileal alongado semelhante a um conduto, porém anastomosado na parte inferior da neobexiga. Decidiu-se reduzir 50% da extensão do tubo e reimplantá-lo na parte média do reservatório, utilizando o conceito de túnel extramucoso.(5)Foram realizados fechamento do colo vesical, da neobexiga e reconfiguração da parede abdominal, por meio da rotação de retalhos de pele, para cobrir o defeito ( Figura 2 ).
O paciente obteve resultado satisfatório na parede abdominal, e a bexiga permaneceu quase fechada, porém uma fístula se desenvolveu no colo vesical. Após 6 meses, o paciente foi novamente submetido a procedimento cirúrgico, para fechamento da fístula e correção da epispádia ( Figura 3 ). Apesar de todos os esforços, uma fistula de pequeno fluxo persistiu na área do colo vesical. Decidiu-se, então, pela construção de reservatório urinário continente, sendo descartado o componente da bexiga nativa e utilizada apenas a parte da neobexiga intestinal. Foi necessário segmento ileal adicional, que foi incorporado ao reservatório para aumentar a neobexiga. Os ureteres foram implantados no reservatório, e o apêndice foi mobilizado e utilizado como canal eferente ( Figura 4 ). O resultado foi um paciente com reservatório continente e esvaziamento da bexiga em intervalos de 4 horas.
Figura 4 Confecção de reservatório urinário com segmento ileal adicional e uso do apêndice como conduto urinário
Para o gêmeo 2, baseado na experiência anterior com o irmão e nas possíveis ocorrências referentes ao fechamento tardio da extrofia de bexiga, que estão associadas com alta incidência de deiscência e fístula, decidiu-se construir, de imediato, um reservatório cateterizável com 40cm do íleo (técnica de Macedo). Os ureteres foram implantados no reservatório, e a placa da bexiga foi desprezada sem ser extirpada ( Figura 5 ). No final, o paciente evoluiu sem intercorrências e apresentou continência em intervalos de 4 horas de cateterização. O seguimento médio foi de 8 meses.
Em 1955, Spencer realizou a primeira separação de gêmeos isquiópagos, mas somente um deles sobreviveu.(6)A fusão pélvica, como observada em gêmeos isquiópagos, classificados como simétricos, assimétricos e pigópagos, resulta em anomalias geniturinárias, e a incidência de órgãos pélvicos compartilhados é de 15% para gêmeos pigópagos e 51% para isquiópagos.(1)
A maioria dos gêmeos isquiópagos tem quatro rins e duas bexigas. Nossos pacientes, apesar de apresentarem uma bexiga cada, compartilhavam os mesmos desafios encontrados em casos extróficos para reconstrução da bexiga e pênis. Diferentemente do conceito clássico de fechamento precoce da placa da bexiga, as características específicas dos nossos pacientes impuseram uma segunda intervenção.
A correção do colo da bexiga permanece um dos aspectos críticos do tratamento de extrofia.(7,8)O gêmeo 1 apresentou deiscência após enterocistoplastia, e nossa tentativa para reconstruir o colo da bexiga falhou, devido à fístula urinária persistente. Em tais casos, como da extrofia de bexiga não resolvida na idade adulta, é preferível reduzir a exposição do paciente e construir de imediato reservatório continente cateterizável. O reservatório de Mainz é uma alternativa interessante para este objetivo.(9)Contudo, em nosso caso, preferimos utilizar o íleo e, apesar do uso do reservatório ileal cateterizável para aumento da bexiga, ganhamos experiência com construção de reservatório urinário como substituto para rabdomiossarcoma da bexiga, por meio da técnica de Macedo.(10)
A continência do conduto também é um aspecto crítico das técnicas de construção de condutos cateterizáveis. Estudo realizado em Indiana, com acompanhamento médio de 28 meses, relatou que 97,5% (194/195) dos pacientes incluídos no estudo continuaram a usar o canal cateterizável de Monti para drenagem da bexiga. Dos 199 pacientes, 17 (8,5%) necessitaram de revisão da bexiga ou do canal. Para estes, os autores relataram como indicações primárias o alongamento e angulação do canal em “7”, e o deficiente comprimento do túnel em “8”. Dezesseis pacientes (8%) apresentaram dificuldades menores com o cateterismo. Apenas 4 dos 115 pacientes (3,5%) apresentaram incontinência do canal.(11,12)
O período de complicações pós-operatórias pode variar. Leslie et al., sugeriram que, apesar do pico inicial ser seguido por período relativamente estável livre de complicação, problemas tardios podem ser detectados em seguimento de longo prazo. Ainda, Leslie et al., relataram a necessidade de revisão cirúrgica em 39% dos pacientes, mais importante para estenose do estoma (18%) e a necessidade de aplicação de agentes espessantes (8%) para tratar a incontinência no estoma urinário.(13)
Nossa experiência com a técnica de Macedo mostrou incontinência de 13,6%.(14)O princípio de continência dos canais nesse conceito é baseado em tubo fixado ao longo de túnel seroso. Além disso, aprendemos a partir de experiência anterior, que a angulação do tubo ao longo do ápice da bexiga tem um papel significativo para promover continência.(15)
Na busca por alternativas para melhorar a resistência do conduto, encontramos a técnica de Yachia, caracterizada pelo cruzamento de feixes do músculo reto abdominal ao longo do tubo.(16)Após adicionar este princípio à técnica de Macedo, obtemos melhora nos resultados de continência de 87 a 100% nos casos primários.(17,18)Subsequentemente, confirmamos nossos resultados clínicos por meio da pressão profilométrica do canal, que conduz pressão no segmento distal no grupo estudado, com procedimento de Yachia (média de 72,9 e pico de 128,7cmH2O) sendo significativamente maior (p<0,05) do que com a condução da pressão do segmento distal no grupo controle – sem o uso do procedimento de Yachia (média de 48,3 e pico de 65,1cmH2O).(19)
As reconstruções urinárias complexas também podem ser realizadas em gêmeos isquiópagos, permitindo atingir continência urinária e melhora na autoestima, mesmo em situações clínicas difíceis.