versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.43 no.2 São Paulo mar./abr. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/s1806-37562016000000002
A tuberculose é uma das doenças mais antigas da história da humanidade, apesar de ser considerada uma doença curável. A introdução dos esquemas terapêuticos de curta duração, com a associação de rifampicina, isoniazida, pirazinamida e etambutol, mostrou eficácia próxima a 100%, desde que os fármacos sejam administrados nas doses corretas e pelo tempo adequado nos casos sensíveis aos fármacos; contudo, a tuberculose continua a ser um grave problema de saúde pública em pleno século XXI.1-4 Anualmente, segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde, a tuberculose incidiu em mais de 9 milhões de pessoas, das quais 1,5 milhões evoluíram para óbito, enquanto 300.000 desenvolveram um segundo episódio da doença após ser tratadas e consideradas curadas,3 situação denominada recorrência de tuberculose (RTB).
Estudos mostram que os indivíduos curados previamente de tuberculose apresentam um maior risco de desenvolver novamente a doença quando comparados à população geral, risco esse que pode chegar a mais de quatro vezes, de acordo com a situação epidemiológica da doença no local de estudo.5,6 Ressalta-se que a RTB é um grande problema para os programas de controle da doença e é ainda pouco valorizada e estudada pela academia e autoridades sanitárias. A taxa de RTB mostra ampla variação, sendo de 0,4% nas localidades que realizam o tratamento diretamente supervisionado (TDO) e alcançando valores superiores a 30% dos casos tratados adequadamente, porém, na forma autoadministrada.7-9
A RTB pode ser devida a duas situações. A primeira seria a reativação endógena da tuberculose, também denominada de recidiva, causada pela mesma cepa bacteriana do primeiro episódio da doença, provavelmente devido à persistência bacilar. A segunda situação seria devida a uma segunda infecção exógena, ou reinfecção, decorrente de uma nova cepa do Mycobacterium tuberculosis. Não há diferença clínica entre as situações de recidiva e reinfecção; contudo, é possível diferenciá-las empregando-se técnicas de biologia molecular, que não estão habitualmente disponíveis nas atividades clínicas rotineiras.5,8,10-12 O British Medical Research Council identificou que 91% das recidivas ocorreram antes do 12º mês pós-alta do tratamento, e uma recente revisão dos últimos ensaios clínicos para novos esquemas terapêuticos para tuberculose demonstrou que 94% das recidivas ocorreram em até 18 meses após o término do tratamento prévio.13 Alguns estudiosos classificam a RTB em recente ou tardia; a RTB recente deve ocorrer em até 18 meses pós-alta do primeiro tratamento, enquanto a RTB tardia ocorreria em período superior a 18 meses pós-alta do tratamento prévio.6,8,12,14
O melhor conhecimento e entendimento dos casos de RTB permitirão aprimorar as ações de vigilância e de seguimento dos casos pós-alta do tratamento de tuberculose, melhorando o controle da doença e minimizando a perpetuação da cadeia de transmissão nas populações. O presente estudo pretendeu descrever os casos de RTB a partir de uma coorte de pacientes de um Programa de Controle de Tuberculose (PCT) municipal e identificar possíveis preditores entre os casos de RTB segundo a sua classificação (recente ou tardia).
O estudo foi realizado no município de Carapicuíba, cidade-dormitório da região metropolitana da Grande São Paulo. Segundo o último censo, apresentava 369.908 habitantes, com uma das maiores densidades populacionais do país, 10.576 habitantes/km2. O município de Carapicuíba é considerado um município prioritário pelo Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT) desde 1995 devido a sua alta carga de tuberculose, apresentando uma incidência média de 41,77 casos por 100.000 habitantes nos últimos 5 anos.15 O PCT municipal iniciou suas atividades na década de 1990, considerado pelo Ministério da Saúde como prioritário, segundo critérios epidemiológicos desde então. Em 2004, o PCT implantou a estratégia de TDO nas unidades básicas de saúde e descentralização do diagnóstico por meio da busca ativa de pacientes sintomáticos respiratórios e coleta de material para a realização de baciloscopia em todas as unidades de saúde públicas. Recentemente foi implantado o teste rápido de biologia molecular.
Estudo epidemiológico observacional analítico e retrospectivo a partir de uma coorte de casos novos de tuberculose notificados e tratados no PCT municipal. O período de formação da coorte foi de primeiro de janeiro de 2000 até 31 de dezembro de 2010. Todos os casos que apresentaram um primeiro diagnóstico de tuberculose pulmonar (TBP) e completaram com sucesso o tratamento (alta e cura confirmada ou não, segundo o PNCT) foram selecionados e seguidos até 31 de dezembro de 2012 (Figura 1). Os critérios de inclusão, exclusão e seguimento da coorte fizeram parte de um estudo maior aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo, protocolo nº 0690/11.15 Definiu-se como caso de RTB (variável dependente) todo aquele em que houve desenvolvimento de um segundo episódio de tuberculose após completar o primeiro tratamento, sendo classificados como RTB recente ou tardia. Considerou-se como caso de RTB recente aquele no qual houve um segundo diagnóstico de TBP em até 18 meses pós-alta do primeiro tratamento. Considerou-se como caso de RTB tardia aquele no qual houve um segundo diagnóstico de TBP após 18 meses pós-alta do primeiro tratamento.
Utilizaram-se relatórios de notificação dos casos de TBP dos Sistemas de Notificação de Tuberculose Epi-TB (2000-2005) e TBweb (2006-2010), esse último em tempo real, utilizados no Estado de São Paulo. Após a identificação dos respectivos números dos prontuários médicos, esses foram levantados para a coleta individual dos dados em questionários específicos para o estudo, digitados no pacote estatístico Epi Info, versão 3.3. Foi realizada a digitação dupla e a utilização do utilitário "data compare " para verificar possíveis inconsistências e eliminar erros de digitação.
As variáveis independentes analisadas do primeiro episódio de TBP foram sociodemográficas (sexo, idade, escolaridade, ocupação segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e comunicante domiciliar); comorbidades/hábitos deletérios (diabetes mellitus, HIV, etilismo, tabagismo e drogadição); sinais e sintomas (tempo dos sinais e sintomas, tosse, febre e sudorese); clínicas (TBP bacilífera, comprometimento pulmonar bilateral e presença de cavitação pulmonar); equipamentos de saúde e de diagnóstico (tipo de estabelecimento e tipo de serviço); e acompanhamento do tratamento do primeiro episódio de TBP (número de tomadas autoadministradas, número de tomadas em estratégia TDO, número de tomadas em estratégia TDO não realizadas [faltantes], ganho de peso em kg na fase de ataque do tratamento, ganho de peso em kg na alta do tratamento, baciloscopia negativa na fase de ataque do tratamento, eventos adversos durante o tratamento e comunicante domiciliar adoecido por tuberculose ativa durante seguimento da coorte).
Foi confeccionada uma tabela de distribuição de frequências em números absolutos e relativos para análise do perfil dos casos de RTB. Para a análise de possíveis associações das variáveis independentes, segundo a variável dependente categorizada em RTB recente ou tardia, foi realizado o teste de qui-quadrado com a correção de Yates ou o teste exato de Fisher quando indicado; para a estimativa de risco foi utilizada a razão de prevalência (RP), com IC95% e nível de significância de p ≤ 0,05; para as variáveis contínuas segundo a categoria de RTB (grupos independentes), foram realizadas análises pelos testes t de Student (Levene) ou de Mann-Whitney (Kruskal-Wallis) com nível de significância de p ≤ 0,05. Todas as análises estatísticas foram executadas com o pacote estatístico SPSS Statistics, versão 20 (IBM Corporation, Armonk, NY, EUA).
Ao final do seguimento da coorte (N = 963), observaram-se 47 casos de RTB (4,88%); metade deles ocorreu em até 34 meses pós-alta do primeiro tratamento, com média de tempo transcorrido para o segundo episódio de 36,12 meses (variação, 2,52-98,04 meses). Desses 47 casos, 7 (14,89%) ocorreram em até 6 meses pós-alta do tratamento, enquanto 13 (27,66%) e 16 (34,04%) ocorreram em até 12 meses e em até 18 meses, respectivamente, sendo considerados como casos de RTB recente; os demais 31 casos (65,96%) ocorreram após 18 meses e considerados como RTB tardia (Figura 2).
Figura 2 Recorrência acumulada de tuberculose pulmonar segundo o tempo de seguimento em meses. Carapicuíba, 2000-2012.
Observamos que 35 (74,47%) dos casos de RTB eram do sexo masculino, e a média de idade era de 32,77 anos. Aproximadamente 45% tinham de ≥ 8 anos de estudo, a maioria estava ocupada (70,22%) e possuía comunicantes domiciliares (93,62%). A comorbidade mais prevalente foi diabetes mellitus (14,89%), e o hábito deletério mais prevalente foi tabagismo (44,68%). Tosse foi relatada pela maioria dos indivíduos (97,87%). Das variáveis clínicas, verificamos que 80,85% eram casos bacilíferos (baciloscopia positiva ao diagnóstico), 63,83% tinham comprometimento pulmonar bilateral, e 57,45% apresentavam imagens sugestivas de cavidades do parênquima pulmonar; somente 8,51% foram diagnosticados em estabelecimentos privados e pouco mais da metade em unidades de urgência/emergência ou em hospitais.
O número médio de tomadas dos medicamentos nas modalidades autoadministrada e TDO foi de 92,27 e 84,73 tomadas, respectivamente; 46,81% dos casos apresentaram eventos adversos durante o primeiro tratamento de TBP, porém somente 1 caso (4,54%) foi identificado como do tipo maior (hepatotoxicidade medicamentosa), sem substituição do esquema padrão de tratamento. Em 74,47% e 82,98% dos casos, respectivamente, verificamos aumento de peso no final da fase de ataque e na alta do tratamento, enquanto aproximadamente 15% dos casos apresentaram comunicantes domiciliares adoecidos pela doença (tuberculose ativa) durante o tratamento dos casos da coorte.
Na análise bivariada das variáveis categóricas segundo as variáveis RTB recente ou tardia (Tabela 1), o nível de escolaridade foi a única variável com significância (p ≤ 0,05), ou seja, quanto menor era o nível de escolaridade, maior foi a associação com RTB recente (RP = 1,70 para até 3 anos de estudo; RP = 1,59 para 4-7 anos de estudo). Para as demais variáveis categóricas, não verificamos significância estatística. Ainda segundo a análise bivariada das variáveis quantitativas (Tabela 2), verificamos diferença significante somente para a variável ganho de peso em kg na alta do tratamento, que foi em média de 1,78 kg e de 5,31 kg para os grupos de RTB recente e tardia, respectivamente.
Tabela 1 Distribuição de frequência e razão de prevalência segundo tipo de recorrência de tuberculose pulmonar. Carapicuíba, 2000-2012.
Variáveis | Total | % | Recorrência | RP | IC95% | p | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Recente | Tardia | ||||||||
n | % | n | % | ||||||
TOTAL | 47 | 100,00 | 16 | 34,04 | 31 | 65,96 | |||
Sexo | |||||||||
Masculino | 35 | 74,47 | 11 | 31,43 | 24 | 68,57 | 0,58-3,04 | 0,518 | |
Feminino | 12 | 25,53 | 5 | 41,67 | 7 | 58,33 | 1,33 | ||
Nível de escolaridade, anos | |||||||||
≤ 3 | 8 | 17,02 | 6 | 75,00 | 2 | 25,00 | 1,70 | 1,19-2,42 | 0,004 |
4-7 | 18 | 38,30 | 4 | 22,22 | 14 | 77,78 | 1,59 | 1,11-2,27 | 0,011 |
≥ 8 | 21 | 44,68 | 6 | 28,57 | 15 | 71,43 | |||
Ocupação | |||||||||
Desocupado | 7 | 14,89 | 4 | 57,14 | 3 | 42,86 | 1,39 | 0,94-2,06 | 0,102 |
Ocupado | 33 | 70,22 | 8 | 24,24 | 25 | 75,76 | 1,00 | 0,60-1,68 | 1,000 |
Outros | 7 | 14,89 | 3 | 42,86 | 4 | 57,14 | |||
Comunicante domiciliar | |||||||||
Não | 3 | 6,38 | 0 | 0,00 | 3 | 100,00 | |||
Sim | 44 | 93,62 | 16 | 36,36 | 28 | 63,64 | |||
Diabetes | |||||||||
Não | 40 | 85,11 | 13 | 32,50 | 27 | 67,50 | |||
Sim | 7 | 14,89 | 3 | 42,86 | 4 | 57,14 | 1,32 | 0,50-3,46 | 0,676 |
HIV | |||||||||
Não | 45 | 95,74 | 15 | 33,33 | 30 | 66,67 | |||
Sim | 2 | 4,26 | 1 | 50,00 | 1 | 50,00 | 1,50 | 0,35-6,37 | 0,626 |
Etilismo | |||||||||
Não | 33 | 70,21 | 12 | 36,36 | 21 | 63,64 | 1,27 | 0,50-3,27 | 0,742 |
Sim | 14 | 29,79 | 4 | 28,57 | 10 | 71,43 | |||
Tabagismo | |||||||||
Não | 26 | 55,32 | 10 | 38,46 | 16 | 61,54 | 1,35 | 0,59-3,10 | 0,477 |
Sim | 21 | 44,68 | 6 | 28,57 | 15 | 71,43 | |||
Drogadição | |||||||||
Não | 41 | 87,23 | 15 | 36,58 | 26 | 63,42 | 2,20 | 0,35-13,74 | 0,648 |
Sim | 6 | 12,77 | 1 | 16,67 | 5 | 83,33 | |||
Tempo sinais/sintomas, semanas | |||||||||
≤ 3 | 4 | 8,51 | 1 | 25,00 | 3 | 75,00 | |||
≥ 4 | 43 | 91,49 | 15 | 34,88 | 28 | 65,12 | 1,40 | 0,24-8,00 | 0,690 |
Tosse | |||||||||
Não | 1 | 2,13 | 1 | 100,00 | 0 | 0,00 | |||
Sim | 46 | 97,87 | 15 | 32,61 | 31 | 67,39 | |||
Febre | |||||||||
Não | 8 | 17,02 | 3 | 37,50 | 5 | 62,50 | 1,13 | 0,41-3,05 | 0,821 |
Sim | 39 | 82,98 | 13 | 33,33 | 26 | 66,67 | |||
Sudorese | |||||||||
Não | 7 | 14,89 | 3 | 42,86 | 4 | 57,14 | 1,32 | 0,50-3,46 | 0,676 |
Sim | 40 | 85,11 | 13 | 32,50 | 27 | 67,50 | |||
Bacilífero | |||||||||
Não | 9 | 19,15 | 5 | 55,56 | 4 | 44,44 | 1,92 | 0,89-441 | 0,239 |
Sim | 38 | 80,85 | 11 | 28,95 | 27 | 71,05 | |||
Comprometimento bilateral | |||||||||
Não | 17 | 36,17 | 5 | 21,41 | 12 | 78,59 | |||
Sim | 30 | 63,83 | 11 | 36,67 | 19 | 63,33 | 1,25 | 0,52-2,99 | 0,614 |
Cavitação pulmonar | |||||||||
Não | 20 | 42,55 | 6 | 30,00 | 14 | 60,00 | |||
Sim | 27 | 57,45 | 10 | 37,04 | 17 | 62,96 | 1,23 | 0,54-2,83 | 0,615 |
Tipo de estabelecimento | |||||||||
Ambulatório | 23 | 48,93 | 9 | 39,13 | 14 | 60,87 | 1,34 | 0,60-3,00 | 0,471 |
Outrosa | 24 | 51,07 | 7 | 29,17 | 17 | 70,83 | |||
Tipo de serviço | |||||||||
Público | 43 | 91,49 | 14 | 32,56 | 29 | 67,44 | |||
Privado | 4 | 8,51 | 2 | 50,00 | 2 | 50,00 | 1,54 | 0,53-4,48 | 0,598 |
Baciloscopia negativa na fase de ataque | |||||||||
Sim | 33 | 70,21 | 10 | 30,30 | 23 | 69,70 | |||
Não | 14 | 29,79 | 6 | 42,86 | 8 | 57,14 | 1,41 | 0,64-3,13 | 0,406 |
TDO | |||||||||
Não | 28 | 59,57 | 10 | 35,71 | 18 | 64,29 | 1,13 | 0,49-2,59 | 0,769 |
Sim | 19 | 40,43 | 6 | 31,58 | 13 | 68,42 | |||
Eventos adversos | |||||||||
Não | 25 | 53,19 | 8 | 32,00 | 17 | 68,00 | |||
Sim | 22 | 46,81 | 8 | 36,36 | 14 | 63,64 | 1,14 | 0,51-2,52 | 0,753 |
Comunicantes adoecidos | |||||||||
Não | 40 | 85,11 | 13 | 32,50 | 27 | 67,50 | |||
Sim | 7 | 14,89 | 3 | 42,86 | 4 | 57,14 | 1,32 | 0,50-3,46 | 0,676 |
RP: razão de prevalência; e TDO: tratamento diretamente observado. aUrgência/emergência e hospital.
Tabela 2 Variáveis segundo o tipo de recorrência. Carapicuíba, 2000-2012.
Variáveis | Recorrência | Diferençaa | p | |
---|---|---|---|---|
Recente | Tardia | |||
Média | Média | |||
Idade, anos | 37,94 | 30,10 | 7,84 | 0,096 |
Tomadas TA, n | 99,57 | 88,50 | 11,07 | 0,667 |
Tomadas TDO, n | 85,00 | 84,89 | 0,11 | 0,419 |
Falta de tomadas TDO, n | 11,22 | 2,19 | 9,03 | 0,119 |
Ganho de peso em 60 dias de tratamento, kg | 1,11 | 3,39 | 2,27 | 0,108 |
Ganho de peso no final do tratamento, kg | 1,78 | 5,31 | 3,53 | 0,045 |
TA: tratamento autoadministrado; e TDO: tratamento diretamente observado. aValores em módulo.
Considerando as proporções de casos de RTB em diferentes localidades, essas variaram de 0,4% até 61,7% entre os estudos revisados4,6,9,16-20; nossos achados apresentaram uma incidência de RTB dentro do estimado para localidades que apresentam um PCT bem estruturado, variando em 5-6%.21,22 Comparando a incidência de RTB em diversas localidades, como na América do Norte e Austrália,16,18 consideradas localidades de baixa incidência de tuberculose; Brasil e Espanha,19,20 com média incidência, e África do Sul e Etiópia,4,20 com alta incidência, nossos achados estão dentro da variabilidade apresentada de acordo com os estudos analisados, independentemente da heterogeneidade e da carga de tuberculose que os mesmos apresentavam.3,4,6,12,16-20
A RTB por recidiva ocorre em períodos mais próximos ao término do tratamento prévio, principalmente entre o 6º e 12º mês13,14; por esse motivo, ensaios clínicos de fase 3 para a análise da eficácia de drogas novas ou de esquemas de tratamento para tuberculose realizam o seguimento dos casos até o 18º mês pós-alta (cura) do tratamento prévio.13 A recidiva, também denominada de reativação endógena, é causada pela mesma cepa bacteriana do primeiro episódio da doença, provavelmente devido à persistência bacilar. O termo persistência refere-se à capacidade dos bacilos de sobreviverem dormentes dentro de macrófagos alveolares ou em áreas de caseificação, mesmo quando esses são sensíveis aos tuberculostáticos e quando as concentrações bactericidas dos quimioterápicos durante o tratamento são adequadas. Ao encontrar condições favoráveis, esses bacilos se tornam metabolicamente ativos e iniciam a multiplicação celular. Quando essa multiplicação ocorre durante o tratamento, eles são esterilizados completamente pela quimioterapia; porém, se a retomada da atividade metabólica ocorrer após a alta medicamentosa, ocorre a RTB.13,23-26
Vários pesquisadores8,12,19,26-30) concordam que a RTB por reinfecção exógena ocorre em períodos mais longínquos ao término do primeiro tratamento, de forma mais constante com o passar do tempo e predominantemente em localidades com média e alta carga de tuberculose, devido à cadeia de transmissão estar ativa. Essa observação foi comprovada experimentalmente em laboratório,21 onde se pôde observar que, após a cura, os animais do experimento desenvolveram uma resposta imune antigênica específica transitória, contudo decrescente com o passar do tempo. Essa resistência temporária limitaria a disseminação hematogênica de novas invasões bacilares e, por inferência, um segundo episódio de tuberculose por infecção exógena precoce.
Identificamos como fator de risco para RTB recente em nosso estudo a baixa escolaridade, que pode ter interferido na adesão ao tratamento. Mesmo sem significância estatística, nos casos de RTB recente, o número de tomadas autoadministradas do medicamento foi superior em relação ao número nos casos de RTB tardia; contudo, não foi possível mensurar exatamente o número de doses ingeridas. Podemos conjecturar uma menor adesão para os casos de RTB recente, reforçando as recomendações de diversos estudos e da Organização Mundial de Saúde para a utilização da modalidade TDO.3,14,16,19,24 Há muito tempo a tuberculose é uma doença relacionada com a pobreza e ao baixo desenvolvimento socioeconômico, mensurada indiretamente por níveis educacionais muito baixos ou ausentes9,10,12,31; portanto, a pobreza pode estar associada às piores condições de saúde, ou essa última pode limitar as condições e a manutenção do trabalho ou de melhores oportunidades laborais. Essa situação também pode impactar na adesão do tratamento e na irregularidade do uso dos fármacos,14,16,19,24 justificando o mecanismo biológico já mencionado anteriormente para a persistência bacilar nos casos de RTB e confirmado por outros estudos.32,33
Em nossa casuística verificamos a associação de RTB recente com os pacientes com menor aumento de peso em kg na alta do tratamento, sugerindo uma maior ativação dos mediadores químicos identificados nos casos de tuberculose e/ou uma menor velocidade na normalização desses. Um ensaio clínico34 concluiu que, nos indivíduos com relatos de emagrecimento prévio ao diagnóstico e posterior aumento de peso inferior a 5% da massa corporal durante o tratamento, havia um maior risco de RTB. A associação entre emagrecimento e RTB foi encontrada em estudos observacionais35-37) e em um estudo operacional realizado em Bangladesh,38 assim como essa também já havia sido verificada em experimentos com animais de laboratório.23,33 Emagrecimento e desnutrição frequentemente são observados nos doentes com tuberculose; porém, a causa e o efeito são difíceis de serem distinguidos. Sabe-se que o TNF-α é liberado na circulação desses doentes pelas células fagocitárias sensibilizadas e que essa substância está relacionada com emagrecimento e caquexia, o que pode explicar em parte essa queixa comumente observada nos casos de tuberculose.32-36 Além do TNF-α, IL-1, IL-6, IFN-γ e prostaglandinas apresentam concentrações alteradas em indivíduos com caquexia, enfatizando o papel das doenças crônicas, como a tuberculose, no processo do emagrecimento.37
Há potenciais limitações no presente estudo, como vieses de memória e de informação. O primeiro viés seria consequência das respostas autorrelatadas dos pacientes ou de seus responsáveis para algumas das variáveis de exposição, como tempo do início dos sinais e sintomas até o tratamento, assim como presença de tosse, febre e sudorese. As variáveis com possível viés de informação seriam principalmente as comorbidades e os hábitos deletérios, como etilismo, tabagismo e drogadição. Esses dois possíveis vieses podem ter alterado a significância nas análises dessas variáveis. Também não foi possível controlar as variáveis de confusão devido ao pequeno número de casos de RTB ocorridos durante o seguimento da coorte, impossibilitando análises estatísticas estratificadas ou multivariadas entre os dois tipos de RTB analisadas. Outra limitação foi a impossibilidade de distinção do tipo de RTB entre reativação endógena e reinfecção exógena. Os métodos de biologia molecular não são empregados como rotina nos programas brasileiros como já em alguns países, como os Estados Unidos. Contudo, isso não invalida os resultados do presente estudo. Um fator favorável ao presente estudo é que esse foi um estudo observacional retrospectivo com dados secundários de um PCT municipal, que são muito mais próximos e representativos das práticas clínico-operacionais quotidianas do que em ensaios clínicos controlados.
Em resumo, verificamos, segundo o critério de RTB, uma maior intensidade de recorrências até o 18º mês (RTB recente) e um aumento praticamente constante após aquele período para os casos de RTB tardia, o que está de acordo com a literatura científica. A baixa escolaridade pode indicar uma menor adesão ao tratamento, dificultando a esterilização dos bacilos e facilitando sua persistência em forma dormente, o que mascara a efetividade do tratamento, como também encontrado em nosso estudo. Prolongar o tratamento de acordo com as tomadas em TDO não realizadas, como já preconizado pelo PNCT, poderia ser uma medida para diminuir a RTB recente e também para os casos com ausência ou reduzido aumento de peso ao final do tratamento. Essa variação de peso poderá servir como um marcador biológico que pode ser utilizado pelos serviços de saúde que realizam o tratamento de tuberculose; contudo, esses achados devem ser mais bem estudados por outros estudos sobre RTB.