Compartilhar

Recovery: revisão sistemática de um conceito

Recovery: revisão sistemática de um conceito

Autores:

Ivana Oliveira Preto Baccari,
Rosana Teresa Onocko Campos,
Sabrina Stefanello

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123

Ciênc. saúde coletiva vol.20 no.1 Rio de Janeiro jan. 2015

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014201.04662013

ABSTRACT

The concept of recovery has been described in papers as a state of psychic, physical and social recuperation of day-to-day functions. The scope of this article is to analyze the concepts of the term in different research methodologies and the paradigmatic evolution of the recovery concept. Systematic bibliographical research was conducted in the Pubmed database using the words "recovery + schizophrenia" limited to freely available full papers published in the previous two years. Nineteen papers were analyzed. The majority of the papers sought associations between characteristic data and recovery; few papers discussed the concept in a way to distinguish it from other words like cure or rehabilitation. Recovery as a state in which people with severe mental illness can feel like the creators of their own itinerary tend to be found in qualitative studies and in bibliographic reviews in which the meaning of recovery is not related to the lack of symptoms and tends to prioritize how participative the life of an individual can be despite the disease. Some quantitative studies detect this conceptual difference. In qualitative research there is an increase in the concept of recovery and in ways of promoting it.

Key words: Psychiatry models/theories; Rehabilitation; Research and methods projects; Interdisciplinary relations; Social and political issues

Introdução

O conceito de recovery tem sido descrito em artigos, principalmente internacionais e do campo da psiquiatria, como um estado de recuperação ou restabelecimento de funções psíquicas, físicas e sociais no funcionamento cotidiano, que pode ou não ser temporário1 , 2. Encontramos raras referências ao recovery em artigos nacionais. Por outro lado, o conhecimento das características desse processo de restabelecimento seria fundamental aos gestores e profissionais da saúde, por meio do reconhecimento de caminhos que o favoreceriam ou dificultariam.

O uso da palavra recovery, nesse sentido, surgiu na década de 70 e estabeleceu-se internacionalmente nos anos 80 como novo paradigma na Saúde Mental. O termo, cuja tradução permanece controversa, nasceu a partir de discussões de usuários que estabeleceram um conjunto de características processuais que os faziam sentir como que retomando os rumos de sua própria vida, após terem sido diagnosticados como portadores de transtorno mental grave. Esse conceito ultrapassa as noções de cura e de remissão de sintomas como objetivos para o tratamento do sofrimento mental e está embasado na recuperação da esperança, reaquisição de algo perdido com a doença e melhora na qualidade de vida. Trata-se de um modelo conceitual que leva em consideração condições internas e externas para sua efetividade. A partir disso, surgem os chamados serviços orientados para recovery, em que se definem características para o funcionamento de serviços com vistas a facilitar que seus usuários alcançassem recovery 1 , 2.

Consideram-se três pressupostos à noção de recovery: 1. pode ocorrer naturalmente, independentemente de tratamento; 2. pode ocorrer com ajuda de intervenção adequada; 3. recupera a dimensão de esperança, modificando a percepção das representações acerca das doenças mentais2.

É de interesse ao campo da Saúde Coletiva o conceito ampliado de recovery, de forma a aproximá-lo das práticas em Saúde Mental nos serviços estabelecidos a partir da Reforma Psiquiátrica brasileira. A abordagem voltada às noções de melhora a partir da percepção de pacientes - no lugar da mera avaliação dos parâmetros cujas mudanças a equipe espera - parece fundamental à efetiva mudança do modelo profissional-centrado de saúde no Brasil.

Objetivo

A palavra recovery, para The New Oxford American Dictionary , significa: 1. a return to a normal state of health, mind or strength; 2. the action or process of regaining possession or control of something stolen or lost. In recovery: in the process of recovering from mental illness, drug addiction, or past abuse 3 (Retorno ao estado normal de saúde, mental ou física; ação. 2. A ação ou processo de restabelecer posse ou controle de algo roubado ou perdido. In recovery: em processo de restabelecimento de doença mental, dependência química ou abuso de drogas). Essa definição aponta para o fato de que o que se discute aqui não se trata de mera formalidade de tradução terminológica, mas de expansão conceitual, não obstante o dicionário já aponte um processo linguístico de evolução do termo na expressão in recovery: o que era retorno à condição pré-mórbida passa, com a expressão, a significar um processo de recuperação.

O que se pretende, portanto, é analisar a utilização desse conceito expandido dentro do campo da psiquiatria e da saúde mental e estabelecer possíveis relações epistemológicas entre distintas apresentações conceituais e metodologias de pesquisa. A dificuldade se dá com o fato de que a expressão idiomática não necessariamente é usada para marcar a diferença conceitual, ou seja, encontramos tanto a palavra isolada como a expressão sendo utilizadas em sentidos que vão do mais restrito ao mais amplo na literatura especializada1 , 2 , 4 - 25. Dessa forma, optou-se por não se realizar tradução, assim como não marcar a expressão pelo sentido expandido. Até o momento, o uso do novo conceito, embora amplo, depende de definições presentes no corpo do texto para que não se perca na ambiguidade, já que se trata de substantivo que pode ser usado em sentido vocabular, em artigos ou outros textos quaisquer, inclusive do campo da psiquiatria.

Metodologia

Realizou-se pesquisa de artigos na base Pubmed usando as palavras recovery e schizophrenia. Limitamos a busca a dois anos retrospectivos e a artigos completos gratuitos. Obtiveram-se 22 artigos, que foram impressos e seus resumos lidos4 - 25. Três artigos foram excluídos por não ter relação com a proposta desse artigo: o primeiro por tratar da recuperação pós-cirúrgica de abdome agudo, por tricobezoar em paciente com história familiar de esquizofrenia (Síndrome de Rapunzel)4. O segundo tratava do efeito do tabagismo crônico sobre a modulação do lobo temporal medial e sobre o volume do hipocampo em alcoolistas5. O terceiro e último artigo excluído falava sobre a recuperação no exame de potencial evocado auditivo em ratos mutantes, com reduzida função de neurotransmissores do tipo NMDA de glutamato6. Os demais 19 artigos foram lidos integralmente e analisados7 - 25.

Discussão

Análise descritiva

Dez dos trabalhos analisados são quantitativos7 - 16 (seis do tipo coorte7 - 12, dois transversais13 , 14 e dois ensaios clínicos randomizados15 , 16); quatro trabalhos são revisões bibliográficas17 - 20 (três não-sistemáticas17 - 19 e uma sistemática20); três trabalhos são qualitativos21 , 23; um trabalho usou triangulação de métodos quantitativos e qualitativos24; um trabalho é composto por debate de cartas entre especialistas25. Quanto à origem dos estudos, a maioria são norte-americanos (nove)10 , 14 , 16 , 17 - 19 , 21 , 23 , 24, dois são ingleses12 , 15, dois canadenses22 , 25, um indiano8, um espanhol7, um holandês9 e três foram feitos por meio de associação entre países11 , 13 , 20 (um por Inglaterra e Nova Zelândia11; outro por EUA e Israel13; o último por vários países europeus20). Apresentaremos a seguir um resumo geral dos artigos.

Ensaios Clínicos Randomizados

Os ensaios clínicos randomizados foram ambos realizados com pacientes diagnosticados com esquizofrenia ou distúrbios esquizoafetivos (DSM-IV-TR e DSM-IV, respectivamente), que eram participantes de terapia cognitiva. Um dado interessante é que, nos dois estudos, a maioria dos participantes tinha nível universitário, entretanto poucos deles tinham emprego15 , 16. O estudo norte-americano acompanhou 49 pacientes por um ano e comparou aqueles que utilizavam terapia cognitiva com aqueles que não receberam esse tipo de abordagem terapêutica. Usou como critério para recovery manifestações de planejamento de atividades futuras expressas em relacionamentos, correlacionando-as negativamente à disfuncionalidade e à função neurocognitiva. Encontrou correlação entre maior habilidade de planejar o futuro e melhores resultados funcionais, porém não houve correlação entre a primeira e a taxa de neurocognição16.

O segundo estudo é inglês e trabalhou com 50 pacientes. Investigou bases neuroanatômicas da esquizofrenia, procurando analisar regiões cerebrais responsáveis pela habilidade de planejamento, cruzando medidas clínicas de planejamento e psicopatologia com análises de ressonância magnética. Usou uma base de dados de um estudo clínico randomizado com pacientes participantes de terapia cognitiva, na qual não havia diferenças iniciais quanto a características sociodemográficas, habilidade de planejamento ou morfologia cerebral, categorias depois ajustadas para múltiplas comparações. Os pesquisadores esperavam que indivíduos com menor habilidade de planejamento apresentassem redução de volume e densidade nas regiões fronto-mediais e cingulares cerebrais. Para mensurar tal habilidade, usaram dois parâmetros clínicos de capacidade/possibilidade de planejamento -demonstração de inferir consequências de suas ações a longo prazo e de fazer planos futuros -, considerando-os comportamentos-chave para a habilidade cognitiva e inferindo que inabilidades funcionais na doença seriam devidas aos fatores neuroanatômicos destacados. Houve associação positiva entre as habilidades consideradas e maior volume e densidade corticais nas regiões ventro-mediais pré-frontais bilateralmente, na órbito-frontal direita, no córtex cingulado posterior e no córtex cingulado anterior esquerdo, sugerindo assim uma chave biocomportamental entre a doença e o curso da disfunção. Os pesquisadores atentam, entretanto, para o fato de o estudo ter sido realizado apenas com pacientes esquizofrênicos, não havendo comparação com a população geral, mas entre pacientes que demonstraram ou não as habilidades supracitadas, consideradas mediadoras de recovery 15.

Estudos do tipo coorte e transversais

Vejamos agora os estudos do tipo coorte, que são bastante diversos quanto às associações e/ou correlações buscadas7 - 12. Um artigo espanhol dois anos prospectivos estudou o prognóstico de 48 pacientes diagnosticados no ingresso com episódio psicótico agudo (DSM-IV), com ênfase em fatores sociodemográficos e clínicos do episódio-índice, analisando as mudanças de diagnóstico ocorridas em mais da metade dos participantes. Entretanto, a única variável capaz de predizer mudança de diagnóstico após dois anos foi a presença de delírio de controle durante o episódio psicótico agudo. O diagnóstico inicial de transtorno esquizofreniforme ou psicose não especificada relacionou-se ao diagnóstico posterior de esquizofrenia ou de psicose afetiva, ao passo que diagnóstico inicial de transtorno psicótico breve ou induzido por substâncias associou-se a melhor prognóstico, uma vez que houve tendência dos participantes permanecerem com o diagnóstico inicial. Neste estudo, a existência de conhecimento sobre a própria doença por parte dos pacientes não influenciou o prognóstico (o que, de acordo com os autores, vai de encontro à tendência de muitos trabalhos atuais); aponta que a maioria dos pacientes acompanhados estavam cientes de sua doença e tiveram boa adesão ao tratamento, talvez pelo fato mesmo de tratar-se de psicose aguda, que, por definição, tem curta duração7.

Uma interessante pesquisa que também versa sobre o primeiro episódio psicótico e abre questionamentos sobre o conceito de recovery foi conduzida na Holanda. Analisaram-se as taxas de recovery nos últimos nove meses de 125 pacientes com esquizofrenia e outras psicoses não afetivas (diagnóstico pela entrevista SCAN - Avaliação Clínica em Neuropsiquiatria) acompanhados por dois anos. Recovery foi definido como remissão sintomática e funcional. Metade dos pacientes (52,0%) apresentaram remissão de sintomas no período; um quarto (26,4%), recuperação funcional; um quinto (19,2%), recovery. Todavia, os autores ponderam que os usuários, baseados em sua experiência de esquizofrenia, têm desenvolvido o seu próprio conceito de recovery, caracterizado pela reabilitação prática e descrita por pesquisadores como "um processo no qual as pessoas estão aptas a viver, aprender e participar integralmente em suas comunidades"9, além de "viver uma vida completa e produtiva a despeito de suas inabilidades"9. Acerca disso, a experiência de recuperação estaria para além de parâmetros clínicos mensuráveis, citando autores que introduzem a idéia de que pacientes só experimentam recoverycaso apresentem remissão de sintomas e recuperação funcional sem a necessidade de medicação, uma vez que transtornos depressivos induzidos pelos medicamentos acabam tornando-se um obstáculo ao estabelecimento de recovery. De fato, de todos os pacientes que apresentaram recuperação funcional, 72,7% apresentaram critérios para recovery, mas apenas 36,9% deles tiveram remissão dos sintomas. A dose de antipsicóticos prescrita não variou entre pacientes que apresentaram ou não recovery, sendo os mais prescritos risperidona, olanzapina, quetiapina e clozapina. Entretanto, havia a prioridiferenças entre os grupos: pacientes que tiveram recoveryapresentaram menos sintomas positivos e negativos diversos, além de menos sintomas gerais; tendiam a não ter iniciado quadro com diagnóstico de esquizofrenia (apenas 8,8% de pacientes com esquizofrenia apresentaram recovery comparado a 27,9% de pacientes com outras psicoses não afetivas). Não houve, todavia, para a taxa de recovery, diferenças significativas com relação a gênero, qualidade de vida, tempo de resposta a sintomas positivos, uso de maconha, influência de morar sozinho ou com outros. Não obstante, postergar o tratamento pode prejudicar as chances de recovery. O estudo conclui que se a maioria dos pacientes com remissão funcional tinha também apresentado remissão de sintomas e a minoria dos pacientes com remissão de sintomas tinha apresentado remissão funcional,o funcionamento social torna-se um importante parâmetro na pesquisa de resultados do tratamento de esquizofrenia, sendo, portanto, melhor preditor de recovery 9.

Um terceiro estudo do tipo coorte também utilizou o primeiro episódio psicótico como base, desta vez enfatizando a influência do uso de substâncias psicoativas no primeiro ano de doen ça. Foi realizado na Inglaterra e acompanhou 152 pacientes com diagnóstico de esquizofrenia ou transtorno esquizofreniforme (DSM-IV) por 14 meses. Os pacientes não participaram de nenhum programa para controle/diminuição do uso de drogas e ainda assim as taxas de uso caíram ao longo da pesquisa - exceto o tabaco, cujo uso aumentou. O uso de tabaco não foi incluído nas demais análises. Vários tipos de drogas foram descritas: álcool, maconha, estimulantes (principalmente anfetaminas e cocaína), ecstasy, LSD, opióides, barbitúricos e/ou benzodiazepínicos, PCP e/ou angel dust. O uso persistente de drogas (pessoas que já usavam e continuaram usando ao longo do estudo) foi associado a mais sintomas positivos, sintomas negativos e doença mais generalizada, porém o uso passado não se associou a nenhuma destas variáveis. Entretanto, pessoas que afirmaram nunca terem usado drogas apresentaram melhora mais acentuada no teste funcional de memória espacial. Os autores ponderam que muitas podem ser as explicações para a piora dos sintomas em usuários crônicos: diminuição do efeito dos antipsicóticos, as substâncias usadas poderiam exacerbar os sintomas positivos, menor adesão ao tratamento, maior propensão para automedicação em pessoas que apresentam pior quadro clínico, ou mesmo maior tendência destas a buscarem drogas na tentativa de terem atenuados seus sintomas12.

A diferença de gênero na esquizofrenia (SADS - Listagem de Transtornos Afetivos e Esquizofrenia - e/ou entrevista Schizophrenia State Inventory) e em outros transtornos psicóticos foi analisada em uma pesquisa longitudinal norte-americana, em que 97 pacientes foram recrutados durante um episódio agudo de doença e acompanhados por vinte anos em seis momentos distintos. Menores taxas de atividade psicótica foram encontradas em mulheres ao longo do curso da doença, além de melhora da atividade psicótica somente em mulheres. Também as taxas de recovery foram significativamente maiores em dois dos seis tempos do estudo nesse gênero. 61% das mulheres haviam passado por algum período de recovery ao longo do trabalho contra apenas 41% dos homens, sendo que após dois anos do recrutamento não havia diferença de gênero na atividade psicótica, que passou a ser significativa em favor das mulheres a partir do quarto a quinto ano do episódio agudo. Em geral, os homens apresentaram atividade psicótica oscilante em contraste com a tendência ao declínio nas mulheres, sem que houvesse diferenças na pré-morbidade entre eles. Há uma alusão à defesa por outros pesquisadores de que o estrógeno funcionaria como antipsicótico natural, entretanto essa hipótese foi refutada pelos autores, pois as taxas de psicose não se alteraram em mulheres pós-menopausa10.

Correlações entre aspectos de esperança, expectativa no futuro e representações como estigma, sintomas clínicos, ansiedade e preferências de enfrentamento foram pesquisadas em 143 pessoas com esquizofrenia ou transtorno esquizoafetivo (SCID-IV - Manual de Diagnóstico Estatístico IV) em um estudo transversal norte-americano. Esperança no futuro foi correlacionada a menor alienação, tendência a não ignorar estressores, menor desconforto emocional e menos sintomas negativos. Maior compreensão de suas formas de representação correlacionou-se a menor incorporação do estereótipo de doente mental, menos sintomas negativos, menos fobia social e menor tendência a ignorar estressores (enfrentamento do tipo fuga). Menor esperança não se relacionou a idade, sexo, educação ou diagnóstico; por outro lado, sintomas positivos foram pouco relacionados aos níveis de esperança. Sobre isso, sugerem os autores que a experiência da alucinação e ilusão, já que provoca uma disrupção temporal, tem efeito limitado sobre a expectativa do futuro e habilidade posterior para persistir. A fraca relação entre experiências de discriminação e esperança sugerem que, apesar da experiência, a forma como a pessoa internaliza o estigma é que influencia sua esperança no futuro14.

Nessa linha de pensamento, um estudo transversal realizado em parceria entre EUA e Israel testou pathways (modelos racionais de causalidade) entre formas de internalizar estigmas e recovery em 102 pacientes com esquizofrenia ou transtornos esquizoafetivos (DSM-IV), procurando efeitos da terapia cognitiva comportamental ou reabilitação vocacional. Classificaram-se as formas de enfrentamento em seis tipos, sendo que "ignorar" e "resignar-se" eram considerados formas negativas de o paciente lidar com a doença, a primeira pela escolha de não se pensar nos agentes estressores, e a segunda por ser um indício de que a pessoa acredita que nada pode ser feito. O modelo inicial de "linhas de ação" que levariam a pessoa ao recovery ou à recaída foi refeito após a análise estatística. As análises não sustentaram a hipótese de que internalizar o estigma permeia o autoconhecimento sobre a doença mental, sobre a esperança e a autoestima. Entretanto, houve evidência de que esquiva como forma de enfrentamento relaciona-se a isolamento social. Afirmam os autores que "esperança e autoestima aparentemente estão relacionadas a esses fatores". A despeito disso, os autores concluem que as formas estudadas de internalização do estigma correlacionam-se ao recovery 13.

Privação socioeconômica foi associada à necessidade de maior tempo de internação em um estudo que acompanhou por dois anos 660 pacientes a partir de uma internação índex na Nova Zelândia. O estudo foi realizado em parceria com a Inglaterra e colheu informações adicionais durante a admissão de 291 dos participantes. Usou-se como critério de seleção o endereço de pacientes que residiam na área considerada mais pobre de Auckland, no distrito cuja população é em geral composta por indígenas e minorias étnicas. Esse grupo de pacientes foi comparado ao das demais internações durante os dois anos do estudo. Contabilizou-se o número de dias que esses pacientes permaneceram internados nos dois anos seguintes. Hospitalizações mais extensas foram associadas à maior privação socioeconômica e à etnia, ao estado conjugal solteiro e ao diagnóstico primário (esquizofrenia e transtornos de humor). 250 pacientes (38%) tiveram uma ou mais hospitalizações outras no período. Os resultados continuaram significativos ajustando-se os fatores de confusão "etnia" e "diagnóstico primário", mas a associação não se manteve quando se ajustaram outros fatores como idade, gênero, estado conjugal e residência urbana. As informações adicionais colhidas de uma amostra dos pacientes na entrada não divergiram das do resto da coorte. As informações iniciais apontaram 48% de comorbidades psiquiátricas, 91% tinham sintomas variados de distanciamento da realidade ou importantes disfunções, 14% tinham história de agressão ou excitabilidade, 11% tinham problemas com abuso de drogas, 5% tinham várias doenças físicas, 26% tinham suporte social tênue e 68% foram admitidos involuntariamente, sendo a não adesão a medicamentos considerado o principal motivo da internação. Os autores apontam que embora não tenha havido associação entre a extensão das internações e o nível socioeconômico após ajustamento para comorbidade, cronicidade e funcionamento empobrecido, esta associação poderia existir indiretamente11.

O último estudo de coorte foi realizado em Bombaim-Índia e recrutou 200 pacientes esquizofrênicos (DSM-IV) para acompanhamento por dez anos. Passada uma década, 122 pacientes foram incluídos no estudo final, após tratamento e acompanhamento, sendo que 107 dos pacientes estavam vivendo na comunidade com suas famílias (87,7%); 61 apresentaram recovery (30,5%); 40 não apresentaram recovery (20%); 43 pacientes viviam de forma independente (72,9%); 24 buscavam por emprego (40%). Consideraram-se pobres esses resultados de tratamento a longo prazo. Recovery foi considerado heterogêneo, já que pacientes ditos recuperados continuavam vivendo com sintomas, sofrimento e disfunção8.

Estudos qualitativos

Três trabalhos qualitativos foram analisados21 , 23: um estudo de caso norte-americano21 e duas amplas pesquisas que sistematizaram categorias diretamente relacionadas ao processo de recovery 22 , 23. O primeiro descreveu o sucesso de um programa de tratamento contínuo que visa à promoção de recovery, analisando desfechos de quatro pacientes com esquizofrenia paranóide em uma clínica de Saúde Mental de Nova Iorque. O programa segue um curriculum CDT (Continuing Day Treatment), uma série de propostas para promover práticas clínicas com intervenção terapêutica individualizada voltada a pacientes esquizofrênicos que não apresentaram boa evolução anterior quando em serviços de saúde convencionais. Tem tido resultados diminuindo hospitalizações e preservando o funcionamento social, oferece três modalidades de atenção a portadores crônicos de esquizofrenia: suporte a usuários de drogas, a pessoas idosas, além de um programa bifásico interdisciplinar. Este se caracteriza por uma fase de tratamento intensivo com ênfase em comportamento, sintoma e habilidades interpessoais, seguida de outra com atividades de lazer e relacionamentos. Destaca-se o esforço no sentido de esclarecer os pacientes sobre os riscos de não adesão a medicamentos e sobre possíveis impactos do uso de medicações. Descreve-se que tem conseguido o mérito de, apesar da gravidade dos casos com que trabalha, os pacientes tratados conseguirem atingir bom nível de recovery e permanecer na comunidade. De fato, narram-se quatro casos bastante complexos que apresentaram melhora significativa21.

Um estudo procura caracterizar e definir o processo de recovery, considerado o cerne das políticas atuais de Saúde Mental canadenses. Defende que a noção atual de recovery é confusa e a palavra abarca muitos significados, a depender do contexto. Além disso, é freqüentemente confundido com cura, reabilitação e reajustamento, conceito que não se sustenta na literatura, pois o recovery é um caminho de aprofundamento pessoal que os indivíduos podem seguir e engloba trabalho, sentimentos e planos para o futuro. Depende de condições externas, mas fundamentalmente de fatores internos: autoconhecimento da doença, transformação do senso de si próprio, reconciliação com a sociedade e desenvolvimento de relações interpessoais e que, portanto, para definição de recovery faz-se necessária a inclusão das perspectivas dos pacientes, familiares, cuidadores para melhor refinamento terminológico, pois essas pessoas quase sempre têm real percepção dos progressos do indivíduo em relação à doença, já que conhecem seus recursos e seu potencial. Aponta-se que a literatura tem contribuído ao conceito de recovery com quatro tipos principais de estudo: 1) longitudinais; 2) biográficos e narrativos; 3) qualitativos; 4) estudos de modelos de recovery para planejamento de serviços de saúde. Com o intuito de construir uma grounded theory sobre recovery, recrutaram-se pacientes representativos de quatro tipos de doenças (esquizofrenia, transtorno afetivo bipolar, transtorno de ansiedade, personalidade borderline), seus familiares e cuidadores, num total de 108 participantes. O tamanho da amostra não se baseou em representatividade, mas na quantidade necessária para saturação empírica. Realizaram-se dois grupos focais com amostra dos participantes para validação dos resultados. Entretanto, os resultados e conclusões da pesquisa não foram citados no artigo, que se restringiu à elucidação metodológica22.

O terceiro e último estudo qualitativo também discute a concepção do recovery, citando alguns tipos: social (envolvendo o setor financeiro, independência residencial e baixo isolamento social); completo (ausência de sintomas psicóticos e retorno ao funcionamento pré-morbidade); conquista de bem-estar e vida satisfatória. É um estudo exploratório norte-americano realizado com 177 membros de um plano de saúde privado. Por meio de entrevistas em profundidade, pacientes descrevem os fatores que os influenciam positivamente no sentido de alcançar recovery. O bom relacionamento com o médico mostrou-se um dos principais estímulos para a experiência interna da mudança por parte do paciente. Os principais resultados encontrados com o intuito de desvendar-se o que os médicos podem fazer para ajudar o paciente a alcançar recovery foram: ter conhecimento da história do paciente; refinar a escuta e manter discussão para tomar decisões compartilhadas; apresentar liderança, mas aliada aos interesses dos pacientes; cultivar aproximação e paciência, pois isso afeta percepção e avaliação dos pacientes. Por fim, discutem-se riscos de falar-se abertamente de recovery aos pacientes, no sentido de que poderia haver um excesso de expectativa e de exigência, ultrapassando o potencial de um indivíduo em particular. Conclui-se que, quando o médico ultrapassa esse limite, ele pode perder o paciente, mas isso não provocará exacerbação da doença23.

Estudo com triangulação de métodos

Um único trabalho realizou triangulação de métodos qualitativos e quantitativos. 177 indivíduos com esquizofrenia, transtorno esquizoafetivo, psicose de humor ou transtorno bipolar participaram de um estudo norte-americano em que realizaram entrevistas em profundidade. Informações qualitativas também foram colhidas dos serviços de saúde. Os resultados dessa primeira fase indicam que o paciente se sente confortável com médicos que são acessíveis e têm disponibilidade - inclusive aceitando ligações telefônicas -, que "olham nos olhos", que percebem e respeitam o distanciamento ou proximidade que determinado paciente prefere na inter-relação, que oferecem boa escuta e acreditam no que o paciente diz, que mantêm com o paciente uma relação de amizade, despertando confiança (observa-se que, muitas vezes, um atendimento padrão pode ser percebido como um não cuidar). Outras informações foram levantadas: relacionamentos colaborativos são críticos para decisões médicas, necessidade de seguimento com o mesmo médico - que deve ser flexível e ter habilidade para resolver problemas criativamente - e, finalmente, percebeu-se que um forte senso de esperança pode se desenvolver no paciente a partir de atitudes positivas do médico. A fase quantitativa teve como base a pesquisa quali e associou grande satisfação com medicamentos à diminuição dos sintomas e melhor qualidade de vida e recovery 24.

Revisões Bibliográficas

A revisão sistemática trata sobre a qualidade do cuidado institucional a pacientes com história longa de problemas mentais. Parte de sua discussão é destinada à questão do recovery, incluindo breve descrição de um Guidelines para Serviços Orientados ao Recovery, da Associação Americana de Psiquiatria20. Duas das revisões não sistemáticas se destinam à análise e discussão da atual concepção de recovery, incluido a descrição do desenvolvimento histórico do termo17 , 19.

Uma das revisões não sistemáticas também analisa o conhecimento em uma perspectiva neurológica: diminuição de volume cerebral, diminuição da concentração de determinados neurotransmissores, fatores genéticos, diminuição dos danos neurológicos por meio de antipsicóticos. Recupera a noção de tipos independentes de recovery possíveis (no nível das funções biológicas, da psicose, da função cognitiva, da capacidade funcional, da qualidade de vida e de auto-implicação), uma vez que domínios de prioridades possam ser estabelecidas para tratamento, dada a heterogeneidade de necessidades de diferentes indivíduos esquizofrênicos18. O artigo de revisão sistemática retoma muitas dessas questões, com ênfase em evidências dos tipos de serviço que deveriam ser prestados em uma instituição "ideal", baseada na vida em comunidade: flexibilidade, privacidade, engajamento e relações terapêuticas positivas20. Terapia cognitivo-comportamental e orientação vocacional são as intervenções não médicas mais citadas20, o que coincide com os achados de nossa revisão.

Opinião de especialista

Finalmente, encontramos dentre os artigos uma curiosa publicação de debate de cartas entre especialistas, que consiste em um pequeno texto em que um pesquisador escreve sobre a discrepân cia do uso do jargão recovery entre familiares, pacientes e médicos. Defende que pacientes usam pouco essa terminologia, assim como familiares, que tendem a evitá-la e substituí-la por "sinô nimos", devendo ser autorizados e incentivados como forma de expandir seus conceitos pessoais de superação da doença. Como vimos, a própria evolução do conceito de recovery atribuiu-lhe um significado complexo, embora carente de consenso25.

Síntese do uso terminológico

Pôde-se estabelecer a maneira como o termo foi utilizado nos diversos artigos estudados. Nos ensaios clínicos, são estabelecidos critérios para recovery, que seriam:

1. Manifestações de planejamento de atividades futuras expressas em relacionamentos, associando-as negativamente à disfuncionalidade e tentando associa-las à menor função neurocognitiva (associação esta não significativa)16;

2. Demonstração de capacidade de inferir conseqüências de suas ações a longo prazo e de fazer planos futuros15 , 16, por meio da análise de regiões cerebrais responsáveis pela habilidade de planejamento15, ou por resultados obtidos com Terapia Cognitivo-Comportamental16. Assim, ob ser va-se uma relação entre o conceito de recovery e o de foresight nesses estudos, de forma que considera-se foresight um sinal de recovery 15 , 16. São usadas escalas para medir resultados funcionais e neurocognição em um dos artigos16e para foresight em ambos15 , 16, mas não para recovery, entendido como a completa recuperação funcional em decorrência de medidas de foresight 15 , 16.

Nos estudos do tipo coorte7 - 12, aparece recoverycomo:

1. Recuperação rápida após episódio psicótico agudo7;

2. Remissão sintomática e funcional8 , 9, envolvendo no mínimo duas dimensões, uma dimensão clínica e outra social8;

3. Melhora em teste funcional10 , 12 (SWM, Spatial Working Memory 12; Harrow Functioning Interview 10);

4. Melhor score em testes ou conjuntos de testes considerados preditores de recovery 7 - 10(DUP/TTR/PANSS/GSDS/WHOQoL-Bref 9; SADS10, Struc tured Follow-up Questionnaire, SFQ7; Clinical Global Impression Scale 8 , 10; LKP10; Strauss-Carpenter scale 10; Behavior Rating Scale of the Psychiatric Assessment Interview 10;Comprehensive Psychopathological Rating Scale, CPRS/Scales for the Assessment of Positive and Negative Symptoms/Social Function Scale/Schedule for the Assessment of Insight/Abnormal Involuntary Movements Scale/National Adult Reading Test Revised 12), testes que abrangem a ausência de sintomas importantes, funcionamento adequado, ausência de empobrecimento social significativo, ausência de reinternação;

5. Conceito heterogêneo8, já que pacientes ditos recuperados continuavam vivendo com sintomas, sofrimento e disfunção8;

6. Recuperação da doença, medida por menor tempo de hospitalização11.

De forma geral, observa-se o uso de escalas7 - 10 , 12 , e, portanto, de critérios - tal como nos estudos clínicos randomizados15 , 16 -, concomitante a pequenas descrições de aspectos gerais considerados indicadores de recovery 7 , 8 , 10 - 12. Apesar disso, o uso de escalas acaba por englobar maior número de critérios simultaneamente, de forma a expandir sua caracterização. Em um dos artigos, pondera-se que os pacientes, baseados em sua experiência de esquizofrenia, têm desenvolvido o seu próprio conceito de recovery, caracterizado pela reabilitação prática e descrita por pesquisadores como "um processo no qual as pessoas estão aptas a viver, aprender e participar integralmente em suas comunidades"9, além de "viver uma vida completa e produtiva a despeito de suas inabilidades"9. Distingue-se tanto a expressão in recovery, caracterizada por uma experiência subjetiva pessoal, em oposição a from recovery, definição clínica proposta pelo Remission Working Group, quanto recovery de cura, apesar de considerar in recovery no estudo apenas os pacientes com remissão sintomatológica completa, com ou sem uso de medicamentos9. Todavia, refere existência de pacientes cujos sintomas não lhes incomode, estando em uma espécie de "paraíso dorecovery"9. A prevalência destes pacientes mostrou-se em consonância com a de sintomatologia psicótica na população geral9. Um artigo sugere o desenvolvimento futuro de modelos de recovery baseados em vários níveis, incluindo o socioeconômico11.

Em estudos transversais13 , 14, aparece recovery como:

1.Mudanças não lineares em domínios semi-independentes, medidas objetivamente a partir de sintomas, frequência de sociabilização e emprego ouexperiência interna e subjetivação, medidas como percepção de qualidade de vida e de propósito na vida13.

2. Esperança no futuro, associada estatisticamente à menor alienação, à menor tendência a ignorar estressores e ao menor desconforto emocional/sintomas negativos14. Em ambos são usados conjuntos de escalas: The Positive and Negative Syndrome Scale, PANSS13 , 14; Scale for Assessing Unawareness of Mental Disorder, SUMD13; Internalized Stigma of Mental Illness Scale, ISMIS13 , 14; Beck Hopelessness Scale, BHS13 , 14; Rosenberg Self Esteem Schedule (RSES)13; Ways of Coping Questionnaire 13 , 14, WCQ; Multidimensional Anxiety Questionnaire, MAQ14.

Em estudos qualitativos21 , 23, ocorre recovery com presença de:

1. O essencial para viver, trabalhar, aprender e participar na comunidade, sendo possível o uso de medicamentos; distingue-se o conceito do de cura; há possibilidade de mudanças; e é considerado caminho não linear e processo contínuo21;

2. Um processo mais ou menos linear, em que se sucedem determinados passos, a saber, a) experiência da esquizofrenia e sua "descida ao inferno", b) aparecimento de alguma esperança, c) processo de introspecção, d) desenvolvimento de espírito de luta, e) descoberta de mecanismos de bem-estar, f) capacidade de manejo de forças internas e externas, g) percepção de "luz no fim do túnel"22. Dependeria de pelo menos quatro condições: conhecimento sobre a doença, transformação da autopercepção, reconciliação com o sistema e desenvolvimento de relações interpessoais22. O conceito é amplamente discutido, de forma a distinguí-lo paradigmaticamente de possíveis sinônimos e empreende-se comparação do processo entre grupos de pacientes com transtornos esquizofrênicos, afetivos, ansiosos e de personalidade borderline 22.A noção de recovery é considerada paradigmática do sistema de saúde canadense22.

3. Novas possibilidades de crescimento pessoal (há subdivisão em tipos: social,envolvendo setor financeiro, independência residencial e baixo isolamento social; completo, com ausência de sintomas psicóticos e retorno ao funcionamento pré-morbidade, prevendo conquista de bem-estar e vida satisfatória23). Enfatiza-se a relação médico-paciente, identificando o que médicos podem fazer para ajudar o paciente a alcançar recovery: ter conhecimento da história do paciente; refinar a escuta e manter discussão para tomar decisões compartilhadas; apresentar liderança, mas aliada aos interesses dos pacientes; cultivar aproximação e paciência, pois isso afeta percepção e avaliação dos pacientes23. Consideram-se riscos de falar-se abertamente de recovery aos pacientes, no sentido de que poderia haver um excesso de expectativa e de exigência23. Esse artigo qualitativo23 faz parte de um amplo estudo chamadoSTARS Study (Study of Transitions and Recovery Strategies)23 , 24, assim como o que envolve triangulação de métodos24, descrito adiante.

Ainda nos estudos qualitativos, percebe-se a concepção de recovery como novo paradigma 21 , 23: um trajeto com condições para interação pessoal, ambiental e organizacional comuns a diferentes pessoas com problema de saúde mental. Tratam do conceito e abrangência deste conhecimento; da inclusão de familiares, pacientes e cuidadores para redefinição terminológica21 , 23 (em consonância com estratégias avaliativas de 4ª geração)26; da discussão com literatura: os tipos principais de estudo em que se daria a discussão são longitudinais, biográficos e narrativos, qualitativos e/ou estudos de modelos de recovery para planejamento de serviços de saúde22. É relevante o intuito de um dos estudos em construir uma grounded theory sobre recovery, descrito como um processo dinâmico e não linear adotado pelo indivíduo para recuperar o senso de si mesmo e equilibrar demandas internas e externas com vistas a mudar seu percurso social e recuperar a sensação de bem-estar em todos os níveis psicossociais23 e de outro estudo em definir o processo de forma linear22.

O estudo quanti-quali24 faz parte do STARS Study (Study of Transitions and Recovery Strategies). Em sua fase qualitativa, retoma o artigo supracitado23 sobre relação médico-paciente, estabelecendo algo como um guia de boas práticas médicas, baseado na cogestão de projeto terapêutico entre médico e paciente. Sua fase quantitativa teve como base a pesquisa quali e associou grande satisfação com medicamentos à diminuição dos sintomas e melhor qualidade de vida e recovery. Utiliza também escalas de Recovery: Personal Confidence & Hope e Goal & Success Orientation 24

Na carta de especialista25, conceitua-se recovery como: a base da transformação dos serviços de Saúde Mental norte-americanos, resultando em décadas de pesquisa, ativismo e mudança na reabilitação psiquiátrica. Trata-se de espécie de carta-resposta canadense ao editor da revista Psychiatric Services. Retoma as discussões clássicas de Anthony nos anos 90, definindo essa como a década do recovery.Argumenta que em estudos canadenses, os pacientes não usam o termorecovery para descrever suas experiências, mas sinônimos e que os serviços de Saúde Mental precisam entender melhor os princípios de recovery, aprender a trabalhar com a estratégia de recovery e a "empoderar" seus pacientes25.

Também a revisão bibliográfica sistemática20trata Recovery como conceito, com ênfase em um modelo de Recovery, que permita incorporação de aspectos da promoção em saúde: relações não-coercivas entre serviços de Saúde e seus usuários; empowerment; autonomia e incentivo à melhora nos níveis de independência, utilizando técnica Delphi20. Tal modelo seria originário de narrativas de experiências de pacientes e "Serviços Orientados para Recovery" e das discussões de Anthony27, que define A deeply personal, unique process of changing one's attitudes, values, feelings, goals, skills and roles. It is a way of living a satisfying, hopeful and contributing life even with the limitations caused by illness20 (grifo nosso).

Ainda, este modelo abarca domínios (conhecimento sobre a doença e sobre tratamentos disponíveis; empowerment; satisfação e qualidade de vida) e sinais (trabalho; estudo; participação em atividades; lazer; boas relações familiares; independência; controle sobre seu tratamento, medicamentos e vida financeira; vida social; participação na comunidade; direito a voto)20. Da mesma forma, nas revisões não sistemáticas, aparece Recovery como conceito e processo ("estar in recovery")17 - 19. A remissão do transtorno é necessária, mas não suficiente, pois a medida de recovery deixa de relacionar-se à ausência de sintomas e passa a priorizar o quão participativa pode ser a vida de um indivíduo na comunidade não obstante a doença17 - 19.

Conclusão

Analisando os artigos originais7 - 16 , 21 , 25, percebemos que a maioria dos trabalhos tem o intuito de procurar associações entre dada característica e recovery, mas poucos9 , 11 são aqueles que discutem a sua concepção propriamente dita de forma que esta se distinga de termos comuns como "cura" e "reabilitação". A percepção de recovery como um novo paradigma, que dependa fundamentalmente de uma condição subjetiva, em que o portador de transtorno mental grave possa sentir-se criador de seus caminhos, tende a estar mais presente em estudos com metodologia qualitativa21 , 23. Discussões sobre essa abordagem aparecem também nas revisões bibliográficas17 - 20, cujo conteúdo recupera a literatura com vistas a expandir o termo para além da visão da medicina clássica e referem-se sobretudo a esquizofrênicos, cuja perspectiva passou da recuperação quase impossível ao recovery perfeitamente esperado ao longo do último século.

Dessa forma, a medida de recovery deixa de relacionar-se à ausência de sintomas e passa a priorizar o quão participativa pode ser a vida de um indivíduo na comunidade não obstante a doença. Assim, o termo também passa a englobar maior número de pessoas, pois muitos que não apresentam remissão completa sintomatológica, ou mesmo que apresentam períodos de piora, podem estar in recovery, ou seja, têm plena consciência do que podem ser, apesar de. Alguns estudos quantitativos vislumbraram essa diferença conceitual, quando relacionam recovery a fatores socioeconômicos, embora não a contemplem em profundidade9 , 11.

Percebemos que a condição de recovery se torna mais viável na medida em que deixa de ser definitiva e absoluta, ou seja, seus critérios passam a ser permeáveis por condições subjetivas mais amplas e também mais ímpares. Em pesquisa multicêntrica brasileira recente27, realizada no campo da Saúde Coletiva, estudou-se a diferença da concepção de recovery - traduzido como "restabelecimento" - entre as perspectivas de psiquiatras e de usuários, concluindo que existem pontos tanto de divergência quanto de convergência em suas percepções, sendo perfeitamente possível a criação de contextos em que ambas experiências possam servir para esclarecimentos mútuos28. Se, por um lado, a pesquisa qualitativa mostra-se mais apropriada para discussões conceituais mais profundas - tais como nas pesquisas da fenomenologia descritiva ou nas da hermenêutica29 -, por outro, as distintas acepções do termo em pesquisas quantitativas parecem espelhar a incorporação gradual dessa perspectiva. Verifica-se problemática semelhante quanto ao uso recente do termo empoderamento 30. É perfeitamente compreensível que uma palavra seja usada em sua língua original de forma habitual, sem que se expresse a necessidade de defini-la. O fato de artigos cujo propósito eram outros que não o de estudar sua evolução histórica terem tido o cuidado de fazer ponderações e estabelecer-lhe critérios, ainda que parciais, são indícios de que a noção de recovery está em atual evolução.

REFERÊNCIAS

1. Duarte T. Recovery da Doença Mental: Uma Visão para os Sistemas e Serviços de Saúde Mental. Análise Psicológica 2007; 1(35):127-133.
2. Jorge Monteiro F, Matias J. Atitudes Face ao Recovery na Doença Mental em Utilizadores e Profissionais de uma Organização Comunitária: Uma Ajuda na Planificação de Intervenções Efetivas? Análise Psicológica 2007; 1(35):11-125.
3. The New Oxford American Dictionary. Oxford: Oxford University Press; 2001.
4. Dindyal S, Bhuva Nj, Dindyal S, Ramdass M, Narayansingh V. Trichobezoar presenting with the 'comma sign' in Rapunzel Syndrome: a case report and literature review. Cases J 2008; 1(1):286.
5. Gazdzinski S, Durazzo TC, Yeh PH, Hardin D, Banys P, Meyerhoff DJ. Chronic cigarette smoking modulates injury and short-term recovery of the medial temporal lobe in alcoholics. Psychiatry Res 2008; 162(2):133-145.
6. Bickel S, Lipp HP, Umbricht D. Early auditory sensory processing deficits in mouse mutants with reduced NMDA receptor function. Neuropsychopharmacology 2008; 33(7):1680-1689.
7. Pedrós A, Martí J, Gutiérrez G, Tenías J, Ruescas S. Two-year diagnostic stability and prognosis in acute psychotic episodes. Actas Esp Psiquiatr 2009; 37(5):245-251.
8. Srivastava AK, Stitt L, Thakar M, Shah N, Chinnasamy G. The abilities of improved schizophrenia patients to work and live independently in the community: a 10-year long-term outcome study from Mumbai, India. Ann Gen Psychiatry 2009; 8:24.
9. Wunderink L, Sytema S, Nienhuis FJ, Wiersma D. Clinical recovery in first-episode psychosis. Schizophr Bull 2009; 35(2):362-369.
10. Grossman LS, Harrow M, Rosen C, Faull R, Strauss GP. Sex differences in schizophrenia and other psychotic disorders: a 20-year longitudinal study of psychosis and recovery. Compr Psychiatry 2008; 49(6):523-529.
11. Abas MA, Vanderpyl J, Robinson E. Socioeconomic deprivation and extended hospitalization in severe mental disorder: a two-year follow-up study. Psychiatr Serv 2008; 59(3):322-325.
12. Harrison I, Joyce EM, Mutsatsa SH, Hutton SB, Huddy V, Kapasi M, Barnes TR. Naturalistic follow-up of co-morbid substance use in schizophrenia: the West London first-episode study. Psychol Med 2008; 38(1):79-88.
13. Yanos PT, Roe D, Markus K, Lysaker PH. Pathways between internalized stigma and outcomes related to recovery in schizophrenia spectrum disorders. Psychiatr Serv 2008; 59(12):1437-1442.
14. Lysaker PH, Salyers MP, Tsai J, Spurrier LY, Davis LW. Clinical and psychological correlates of two domains of hopelessness in schizophrenia. J Rehabil Res Dev 2008; 45(6):911-919.
15. Eack SM, George MM, Prasad KM, Keshavan MS. Neuroanatomical substrates of foresight in schizophrenia. Schizophr Res 2008; 103(1-3):62-70.
16. Eack SM, Keshavan MS. Foresight in schizophrenia: a potentially unique and relevant factor to functional disability. Psychiatr Serv 2008; 59(3):256-260.
17. Essock S, Sederer L. Understanding and measuring recovery. Schizophr Bull 2009; 35(2):279-281.
18. Lieberman JA, Drake RE, Sederer LI, Belger A, Keefe R, Perkins D, Stroup S. Science and recovery in schizophrenia. Psychiatr Serv 2008; 59(5):487-496.
19. Davidson L, Schmutte T, Dinzeo T, Andres-Hyman R. Remission and recovery in schizophrenia: practitioner and patient perspectives. Schizophr Bull 2008; 34(1):5-8.
20. Taylor TL, Killaspy H, Wright C, Turton P, White S, Kallert TW, Schuster M, Cervilla JA, Brangier P, Raboch J, Kalisová L, Onchev G, Dimitrov H, Mezzina R, Wolf K, Wiersma D, Visser E, Kiejna A, Piotrowski P, Ploumpidis D, Gonidakis F, Caldas-de-Almeida J, Cardoso G, King MB. A systematic review of the international published literature relating to quality of institutional care for people with longer term mental health problems. BMC Psychiatry 2009; 9:55.
21. Handa K, Grace J, Trigoboff E, Olympia JL, Annalett D, Watson T, Poulose MC, Muzaffar T, Noyes FL, Kabatt A, Cushman S, Antonelli M, Baxter-Banks G, Newcomer D. Continuing Day Treatment Programs Promote Recovery in Schizophrenia: A Case-based Study. Psychiatry (Edgmont) 2009; 6(4):32-36.
22. Noiseux S, St-Cyr Tribble D, Leclerc C, Ricard N, Corin E, Morissette R, Lambert R. Developing a model of recovery in mental health. BMC Health Serv Res 2009; 9:73.
23. Young AT, Green CA, Estroff SE. New endeavors, risk taking, and personal growth in the recovery process: findings from the STARS study. Psychiatr Serv 2008; 59(12):1430-1436.
24. Green CA, Polen MR, Janoff SL, Castleton DK, Wisdom JP, Vuckovic N, Perrin NA, Paulson RI, Oken SL. Understanding how clinician-patient relationships and relational continuity of care affect recovery from serious mental illness: STARS study results. Psychiatr Rehabil J 2008; 32(1):9-22.
25. Piat M, Sabetti J, Couture A. Do consumers use the word "recovery"? Psychiatr Serv 2008; 59(4):446-447.
26. Guba EG, Lincoln YS. Fourth generation evaluation. Newbury Park: Sage; 1989.
27. Anthony WA. Recovery from mental illness: The guiding vision of the mental health service system in the 1990s. Psychiatr Rehabil J 1993; 16(4):11-23.
28. Lopes TS, Dahl CM, Serpa Junior OD, Leal EM, Onocko Campos RT, Diaz AG. O processo de restabelecimento na perspectiva de pessoas com diagnóstico de transtornos do espectro esquizofrênico e de psiquiatras na rede pública de atenção psicossocial. Saude soc 2012; 21(3):558-571.
29. Leal EM, Serpa Junior OD. Acesso à experiência em primeira pessoa na pesquisa em Saúde Mental. Cien Saude Colet 2013; 18(10):2939-2948.
30. Vasconcelos EM. Empoderamento de usuários e familiares em saúde mental e em pesquisa avaliativa/interventiva: uma breve comparação entre a tradição anglo-saxônica e a experiência brasileira. Cien Saude Colet 2013; 18(10):2825-2835.