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Recuperação da função renal após episódio de trombose de veia renal bilateral como complicação da glomerulopatia membranosa: relato de caso

Recuperação da função renal após episódio de trombose de veia renal bilateral como complicação da glomerulopatia membranosa: relato de caso

Autores:

Ana Larissa Pedrosa Ximenes,
Elizabeth De Francesco Daher,
Pedro Duarte Barreto Castillo,
Francisco Eduardo Siqueira da Rocha,
Camila Freire Salem de Miranda,
Flavio Bezerra de Araujo

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Nephrology

versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239

J. Bras. Nefrol. vol.39 no.4 São Paulo out./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20170085

Relato de caso

Paciente do sexo masculino, 33 anos, previamente hígido e sem comorbidades conhecidas, foi admitido no Serviço de Nefrologia do Hospital Geral de Fortaleza (HGF) por queixa de plenitude gástrica, edema de membros inferiores, tosse não produtiva e urina espumosa de início há três meses. Referia também dispneia aos médios esforços progredindo para grandes esforços há 15 dias da admissão. Teve perda ponderal de 10 kg nesse período.

Estado geral bom, eupneico, alerta e orientado, pequeno linfonodo palpável, móvel, fibroelástico, com aproximadamente um centímetro em cadeia cervical posterior esquerda. Ausculta cardíaca sem alterações. Ausculta respiratória com murmúrio vesicular universal presente, reduzido em base esquerda. Abdome plano, flácido, indolor à palpação, sem visceromegalias, Traube livre. Pulsos periféricos palpáveis com edema de membros inferiores (+/4+), ausência de cianose e extremidades bem perfundidas.

Dentre os exames laboratoriais realizados, constavam albumina 2,5 mg/dl, FAN e anti-DNA não reagentes, pesquisa de crioglobulinemia negativa. Sorologias para HIV, hepatite B, hepatite C e sífilis não reagentes. Complemento dentro da normalidade, velocidade de hemossedimentação 140 mg/dl e PCR 8,5 mg/dl. Eletroforese de proteínas com ausência de pico monoclonal. Os demais exames laboratoriais estão descritos na Tabela 1.

Tabela 1 Exames laboratoriais realizados durante internamento 

Dia 1 2** 3 4 5 6 7 8** 9***
Hb (g/dL) 11,7 8,3 7,2 7,0 7,4 8,5 8,0 - -
Plaquetas (unidades/mm3) 206.200 377.000 400.000 417.500 412.500 490.000 400.000 - -
Ur (mg/dL) 34 54 38 45 45 64 62 10 28
Cr (mg/dL) 1,2 5,4 5,7 6,8 7,0 8,0 4,9 1,6 0,77
CT (mg/dL) 648 - - - 333 - - - -
HDL (mg/dL) 38 - - - 34 - - - -
LDL (mg/dL) 473 - - - 243 - - - -
ASLO (UI/ml) < 52,5 - - - - - - - -
Proteinúria na urina de 24 horas (g) 10,9 - - - - - - - 11,2
Sumário de urina proteína +++ - - - - - - - proteína ++

Hb - hemoglobina, TAP - tempo de atividade de protrombina, Ur - ureia, Cr - creatinina, CT - colesterol total, HDL - lipoproteína de alta densidade, LDL - lipoproteína de baixa densidade.

*Iniciado hemodiálise.

**Função renal na ocasião da alta hospitalar do paciente.

***Função renal na ocasião do primeiro retorno ambulatorial.

Ultrassonografia (US) de vias urinárias evidenciou rins levemente aumentados (RD: 13,8 x 6,8 x 5,8 cm - parênquima 1,5 cm; RE: 13 x 7,1 x 6,1 cm - parênquima: 1,5 cm) e aumento da ecogenicidade cortical, sugestivo de nefropatia parenquimatosa com ausência de cálculos. Realizou investigação de causas secundárias de síndrome nefrótica, que foram todas negativas, sendo realizada biópsia renal, que foi sugestiva de glomerulopatia membranosa, conforme microscopia óptica ilustrada na Figura 1.

Figura 1 Microscopia óptica de fragmento de biópsia renal - coloração pela prata - evidenciando espessamento de membrana basal glomerular com espículas. 

Após 1 semana da admissão, realizou outro US abdome total, por conta de uma dor abdominal mal definida, que mostrou sinais sugestivos de trombose da veia renal direita. Após isso, foi iniciada anticoagulação plena com heparina em infusão contínua. No dia seguinte, paciente evoluiu com anúria por mais de 12 horas, náuseas, dois episódios eméticos, dois episódios febris (37,8ºC e 38,1ºC) e piora das escórias nitrogenadas (creatinina 5,6; ureia 60), sendo suspeitado de trombose de veia renal bilateral. Foi submetido à angiografia (arteriografia e flebografia) renal, que confirmou a hipótese de trombose de veia renal bilateral (Figura 2). Realizada trombectomia bilateral e trombólise à esquerda, bem como mantido em anticoagulação (inicialmente com heparina e, posteriormente, com varfarina).

Figura 2 Angiografia renal bilateral (arterial e venosa). 

Paciente permaneceu em hemodiálise por duas semanas, evoluindo com melhora progressiva da diurese e função renal. Teve alta hospitalar com recuperação da função renal, creatinina de 1,66 mg/dl. Primeiro retorno ambulatorial após a alta com creatinina de 0,77 mg/dl.

Discussão

A trombose de veia renal (TVR) foi descrita por Rayer em 1840 e sua associação com síndrome nefrótica (SN) foi relatada pela primeira vez em 1939 por Doroe, Schlesinger e Savitz.1

Incialmente, existiam relatos conflitantes sobre a relação causa e efeito da TVR na SN, porém, nos últimos anos, foi melhor descrito TVR como consequência da SN.2

A TVR é vista com mais frequência em glomerulopatias membranosas e membranoproliferativas do que em outros tipos, como lesão mínima e GESF.3

A idade avançada, nefropatia membranosa, proteinúria e hipoalbuminemia graves são reconhecidos como fatores de risco aumentado para desenvolvimento de tromboembolismo.4

O mecanismo patogênico da TVR na SN não é completamente compreendido, porém estabelece-se que a SN é associado a um estado de hipercoagulabilidade, sendo reforçado ainda mais pela perda urinária e, consequentemente, nível sérico reduzido de antitrombina III.5

O quadro clínico resulta do equilíbrio entre oclusão aguda, extensão da trombose e desenvolvimento da circulação colateral. A apresentação aguda da trombose de veia renal é pouco frequente e caracteriza-se, principalmente, com dor aguda no flanco e hematúria. Os achados laboratoriais que podem sugerir TVR são variação da proteinúria (aumento importante após evento), aumento de creatinina sérica, hematúria, glicosúria, piúria, acidose hiperclorêmica.6,7 Na maioria dos casos, os pacientes são assintomáticos, tornando a TVR subdiagnosticada.8

O diagnóstico precoce é essencial, pois trata-se de uma condição reversível. O exame diagnóstico padrão ouro é a flebografia renal, porém a USG com Doppler de veias renais e a TC de abdome contrastada têm sido medidas não invasivas rápidas e seguras para a visualização direta do trombo.9,10

O tratamento recomendado é a anticoagulação plena, que deve ser imediatamente iniciada. A recomendação atual é de se começar com heparinização e após associar varfarina, sendo que o tempo total de anticoagulação, para um primeiro episódio de tromboembolismo venoso é, pelo menos, 3-6 meses e até que a causa da SN tenha sido resolvida ou esteja em remissão.11,12

Em relação aos novos anticoagulantes orais (inibidores diretos do fator Xa e inibidor direto da trombina), já existe recomendação como opção à anticoagulação com varfarina no tratamento de tromboembolismo venoso profundo de uma forma geral e embolia pulmonar.13,14 O grande limitante na utilização dessas medicações é a impossibilidade de utilizá-las em paciente com clearance de creatinina menor do que 15 ml/min.15

A trombólise não foi totalmente estudada em tromboembolismo associado à SN. A maioria das evidências para o seu uso foi derivada de relatos e séries de casos que, geralmente, são de valor limitado. Portanto, a maioria dos especialistas recomenda a terapia trombolítica para TVR bilateral grave ou com embolia pulmonar maciça.16

O caso relatado ilustra uma apresentação aguda da TVR, à esquerda, com TVR direita provavelmente crônica, em um paciente com SN. O paciente não apresentou clínica clássica. A TVR bilateral foi suspeitada pela anúria e piora da função renal súbita. A venografia, padrão ouro, foi realizada para obter o diagnóstico, bem como a intervenção terapêutica, sendo realizada trombectomia bilateral e trombólise localizada na veia renal esquerda. Houve melhora modesta no fluxo renal de forma imediata e recuperação completa da função renal após duas semanas do evento.

REFERÊNCIAS

1 Chugh KS, Malik N, Uberoi HS, Gupta VK, Aggarwal ML, Singhal PC, et al. Renal vein thrombosis in nephrotic syndrome-a prospective study and review. Postgrad Med J 1981;57:566-70. PMID: 7329894 DOI:
2 Loscalzo J. Venous thrombosis in the nephrotic syndrome. N Engl J Med 2013;368:956-8. PMID: 23465106 DOI:
3 Llach F, Arieff AI, Massry SG. Renal vein thrombosis and nephrotic syndrome. A prospective study of 36 adult patients. Ann Intern Med 1975;83:8-14. DOI:
4 Llach F, Koffler A, Finck E, Massry SG. On the incidence of renal vein thrombosis in the nephrotic syndrome. Arch Intern Med 1977;137:333-6. PMID: 843151 DOI:
5 Janda SP. Bilateral renal vein thrombosis and pulmonary embolism secondary to membranous glomerulonephritis treated with percutaneous catheter thrombectomy and localized thrombolytic therapy. Indian J Nephrol 2010;20:152-5. DOI:
6 Qian Q, Saucier NA, King BF. Acute bilateral renal vein thrombosis. Am J Kidney Dis 2009;54:975-8. PMID: 19748714 DOI:
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8 Laville M, Aguilera D, Maillet PJ, Labeeuw M, Madonna O, Zech P. The prognosis of renal vein thrombosis: a re-evaluation of 27 cases. Nephrol Dial Transplant 1988;3:247-56.
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10 Asghar M, Ahmed K, Shah SS, Siddique MK, Dasgupta P, Khan MS. Renal vein thrombosis. Eur J Vasc Endovasc Surg 2007;34:217-23.
11 Wu CH, Ko SF, Lee CH, Cheng BC, Hsu KT, Chen JB, et al. Successful outpatient treatment of renal vein thrombosis by low-molecular weight heparins in 3 patients with nephrotic syndrome. Clin Nephrol 2006;65:433-40.
12 Singhal R, Brimble KS. Thromboembolic complications in the nephrotic syndrome: pathophysiology and clinical management. Thromb Res 2006;118:397-407. PMID: 15990160
13 Madan S, Shah S, Dale P, Partovi S, Parikh SA. Use of novel oral anticoagulant agents in venous thromboembolism. Cardiovasc Diagn Ther 2016;6:570-81.
14 Kearon C, Akl EA, Ornelas J, Blaivas A, Jimenez D, Bounameaux H, et al. Antithrombotic Therapy for VTE Disease: CHEST Guideline and Expert Panel Report. Chest 2016;149:315-52.
15 Belmar Vega L, de Francisco ALM, Bada da Silva J, Galván Espinoza L, Fernández Fresnedo G. Nuevos anticoagulantes orales en pacientes con enfermedad renal crónica. Nefrologia 2017;37:244-52.
16 Ramadoss S, Jones RG, Foggensteiner L, Willis AP, Duddy MJ. Complete renal recovery from severe acute renal failure after thrombolysis of bilateral renal vein thrombosis. Clin Kidney J 2012;5:428-30.