versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.39 no.4 São Paulo out./dez. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20170085
Paciente do sexo masculino, 33 anos, previamente hígido e sem comorbidades conhecidas, foi admitido no Serviço de Nefrologia do Hospital Geral de Fortaleza (HGF) por queixa de plenitude gástrica, edema de membros inferiores, tosse não produtiva e urina espumosa de início há três meses. Referia também dispneia aos médios esforços progredindo para grandes esforços há 15 dias da admissão. Teve perda ponderal de 10 kg nesse período.
Estado geral bom, eupneico, alerta e orientado, pequeno linfonodo palpável, móvel, fibroelástico, com aproximadamente um centímetro em cadeia cervical posterior esquerda. Ausculta cardíaca sem alterações. Ausculta respiratória com murmúrio vesicular universal presente, reduzido em base esquerda. Abdome plano, flácido, indolor à palpação, sem visceromegalias, Traube livre. Pulsos periféricos palpáveis com edema de membros inferiores (+/4+), ausência de cianose e extremidades bem perfundidas.
Dentre os exames laboratoriais realizados, constavam albumina 2,5 mg/dl, FAN e anti-DNA não reagentes, pesquisa de crioglobulinemia negativa. Sorologias para HIV, hepatite B, hepatite C e sífilis não reagentes. Complemento dentro da normalidade, velocidade de hemossedimentação 140 mg/dl e PCR 8,5 mg/dl. Eletroforese de proteínas com ausência de pico monoclonal. Os demais exames laboratoriais estão descritos na Tabela 1.
Tabela 1 Exames laboratoriais realizados durante internamento
Dia | 1 | 2** | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | 8** | 9*** |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Hb (g/dL) | 11,7 | 8,3 | 7,2 | 7,0 | 7,4 | 8,5 | 8,0 | - | - |
Plaquetas (unidades/mm3) | 206.200 | 377.000 | 400.000 | 417.500 | 412.500 | 490.000 | 400.000 | - | - |
Ur (mg/dL) | 34 | 54 | 38 | 45 | 45 | 64 | 62 | 10 | 28 |
Cr (mg/dL) | 1,2 | 5,4 | 5,7 | 6,8 | 7,0 | 8,0 | 4,9 | 1,6 | 0,77 |
CT (mg/dL) | 648 | - | - | - | 333 | - | - | - | - |
HDL (mg/dL) | 38 | - | - | - | 34 | - | - | - | - |
LDL (mg/dL) | 473 | - | - | - | 243 | - | - | - | - |
ASLO (UI/ml) | < 52,5 | - | - | - | - | - | - | - | - |
Proteinúria na urina de 24 horas (g) | 10,9 | - | - | - | - | - | - | - | 11,2 |
Sumário de urina | proteína +++ | - | - | - | - | - | - | - | proteína ++ |
Hb - hemoglobina, TAP - tempo de atividade de protrombina, Ur - ureia, Cr - creatinina, CT - colesterol total, HDL - lipoproteína de alta densidade, LDL - lipoproteína de baixa densidade.
*Iniciado hemodiálise.
**Função renal na ocasião da alta hospitalar do paciente.
***Função renal na ocasião do primeiro retorno ambulatorial.
Ultrassonografia (US) de vias urinárias evidenciou rins levemente aumentados (RD: 13,8 x 6,8 x 5,8 cm - parênquima 1,5 cm; RE: 13 x 7,1 x 6,1 cm - parênquima: 1,5 cm) e aumento da ecogenicidade cortical, sugestivo de nefropatia parenquimatosa com ausência de cálculos. Realizou investigação de causas secundárias de síndrome nefrótica, que foram todas negativas, sendo realizada biópsia renal, que foi sugestiva de glomerulopatia membranosa, conforme microscopia óptica ilustrada na Figura 1.
Figura 1 Microscopia óptica de fragmento de biópsia renal - coloração pela prata - evidenciando espessamento de membrana basal glomerular com espículas.
Após 1 semana da admissão, realizou outro US abdome total, por conta de uma dor abdominal mal definida, que mostrou sinais sugestivos de trombose da veia renal direita. Após isso, foi iniciada anticoagulação plena com heparina em infusão contínua. No dia seguinte, paciente evoluiu com anúria por mais de 12 horas, náuseas, dois episódios eméticos, dois episódios febris (37,8ºC e 38,1ºC) e piora das escórias nitrogenadas (creatinina 5,6; ureia 60), sendo suspeitado de trombose de veia renal bilateral. Foi submetido à angiografia (arteriografia e flebografia) renal, que confirmou a hipótese de trombose de veia renal bilateral (Figura 2). Realizada trombectomia bilateral e trombólise à esquerda, bem como mantido em anticoagulação (inicialmente com heparina e, posteriormente, com varfarina).
Paciente permaneceu em hemodiálise por duas semanas, evoluindo com melhora progressiva da diurese e função renal. Teve alta hospitalar com recuperação da função renal, creatinina de 1,66 mg/dl. Primeiro retorno ambulatorial após a alta com creatinina de 0,77 mg/dl.
A trombose de veia renal (TVR) foi descrita por Rayer em 1840 e sua associação com síndrome nefrótica (SN) foi relatada pela primeira vez em 1939 por Doroe, Schlesinger e Savitz.1
Incialmente, existiam relatos conflitantes sobre a relação causa e efeito da TVR na SN, porém, nos últimos anos, foi melhor descrito TVR como consequência da SN.2
A TVR é vista com mais frequência em glomerulopatias membranosas e membranoproliferativas do que em outros tipos, como lesão mínima e GESF.3
A idade avançada, nefropatia membranosa, proteinúria e hipoalbuminemia graves são reconhecidos como fatores de risco aumentado para desenvolvimento de tromboembolismo.4
O mecanismo patogênico da TVR na SN não é completamente compreendido, porém estabelece-se que a SN é associado a um estado de hipercoagulabilidade, sendo reforçado ainda mais pela perda urinária e, consequentemente, nível sérico reduzido de antitrombina III.5
O quadro clínico resulta do equilíbrio entre oclusão aguda, extensão da trombose e desenvolvimento da circulação colateral. A apresentação aguda da trombose de veia renal é pouco frequente e caracteriza-se, principalmente, com dor aguda no flanco e hematúria. Os achados laboratoriais que podem sugerir TVR são variação da proteinúria (aumento importante após evento), aumento de creatinina sérica, hematúria, glicosúria, piúria, acidose hiperclorêmica.6,7 Na maioria dos casos, os pacientes são assintomáticos, tornando a TVR subdiagnosticada.8
O diagnóstico precoce é essencial, pois trata-se de uma condição reversível. O exame diagnóstico padrão ouro é a flebografia renal, porém a USG com Doppler de veias renais e a TC de abdome contrastada têm sido medidas não invasivas rápidas e seguras para a visualização direta do trombo.9,10
O tratamento recomendado é a anticoagulação plena, que deve ser imediatamente iniciada. A recomendação atual é de se começar com heparinização e após associar varfarina, sendo que o tempo total de anticoagulação, para um primeiro episódio de tromboembolismo venoso é, pelo menos, 3-6 meses e até que a causa da SN tenha sido resolvida ou esteja em remissão.11,12
Em relação aos novos anticoagulantes orais (inibidores diretos do fator Xa e inibidor direto da trombina), já existe recomendação como opção à anticoagulação com varfarina no tratamento de tromboembolismo venoso profundo de uma forma geral e embolia pulmonar.13,14 O grande limitante na utilização dessas medicações é a impossibilidade de utilizá-las em paciente com clearance de creatinina menor do que 15 ml/min.15
A trombólise não foi totalmente estudada em tromboembolismo associado à SN. A maioria das evidências para o seu uso foi derivada de relatos e séries de casos que, geralmente, são de valor limitado. Portanto, a maioria dos especialistas recomenda a terapia trombolítica para TVR bilateral grave ou com embolia pulmonar maciça.16
O caso relatado ilustra uma apresentação aguda da TVR, à esquerda, com TVR direita provavelmente crônica, em um paciente com SN. O paciente não apresentou clínica clássica. A TVR bilateral foi suspeitada pela anúria e piora da função renal súbita. A venografia, padrão ouro, foi realizada para obter o diagnóstico, bem como a intervenção terapêutica, sendo realizada trombectomia bilateral e trombólise localizada na veia renal esquerda. Houve melhora modesta no fluxo renal de forma imediata e recuperação completa da função renal após duas semanas do evento.