versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X
Cad. saúde colet. vol.27 no.3 Rio de Janeiro jul./set. 2019 Epub 03-Out-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1414-462x201900030084
The public health system presents challenges for human resources.
To evaluate the advances and challenges in the management of human resources included in the Family Health Strategy - FHS in northern Minas Gerais, Brazil.
A cross-sectional study with 317 professionals linked to the FHS: dentists, nurses and doctors was carried out. For data collection, it was used a questionnaire with variables: sociodemographic and economic characteristics, employment relationship, career path, permanent and continuing education, and financial incentive. It was also evaluated the remuneration according to gender, career plan and professional category; and professional category according to gender, career plan and permanent education; significance level p <0.05.
The most were women (65.2%), nurses (46.3%), postgraduates (51.1%), bond by administrative contract (67.4%), no career plan (90.8%) and financial incentives (61.1%) and participated in permanent education (57.8%). More than 40% worked in the FHS of another municipality and 117 completed specialization in FHS / public / collective health. The higher remuneration was for medicine (p <0.05) and for men (p <0.05). Nursing presented higher percentage of women, of professionals with career plan and permanent education (p <0.05).
Advances stand out in professional qualification, specialists and / or capacitation in service. There are challenges concerning to the precariousness conditions of work, which contributes to the turnover of professionals.
Keywords: family health; primary health care; community medicine; community health nursing; community dentistry
No Brasil, o desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (APS) tem recebido muito destaque no sistema público de saúde. Criada como um programa que oferecia especialmente serviços de saúde materno-infantis a populações mais carentes ou de alto risco, a Saúde da Família tem sido a principal estratégia de estruturação da APS dos sistemas locais de saúde desde 19981.
A Estratégia Saúde da Família (ESF) trata-se de uma abordagem robusta de prestação de cuidados primários a populações definidas por meio da implantação de equipes de saúde multidisciplinares2 compostas, no mínimo, de médico, enfermeiro, auxiliar e/ou técnico de enfermagem e agente comunitário de saúde (ACS). Podem fazer parte da equipe o agente de combate às endemias (ACE) e os profissionais de saúde bucal: cirurgião-dentista e auxiliar ou técnico em saúde bucal. Espera-se que os profissionais de nível superior sejam, preferencialmente, especialistas em medicina de família e comunidade (médico) e em saúde da família (enfermeiro e cirurgião-dentista)3.
Nessa perspectiva, a ESF tem papel fundamental na consolidação da cobertura universal de saúde no sistema público de saúde brasileiro4. Evidências sugerem que a ESF oferece melhor acesso e qualidade e resulta em mais satisfação do usuário do que os postos e centros de saúde tradicionais ou até mesmo alguns serviços de saúde do setor privado5. Porém, como a responsabilidade pela gestão da ESF é dos municípios, há grandes variações na capacidade e qualidade das equipes de saúde da família, incluindo padrões variados de pessoal e disponibilidade de diferentes tipos de profissionais de saúde2.
Deste modo, a disponibilidade, a formação e os vínculos dos profissionais da APS para o sistema público de saúde representam um dos grandes desafios à implementação dos novos modelos6. Aliado a isso, destaca-se que o processo de fortalecimento da ESF está relacionado à valorização dos profissionais de saúde, atores fundamentais para efetivar as mudanças propostas para a reorientação do modelo assistencial7. Porém, tem-se observado, ao longo dos anos, a fragilização do trabalho em saúde, grande pilar dos sistemas de saúde, com ausência de efetivas políticas do governo federal8.
Neste contexto, a ESF apresenta um crescente desafio para a área de recursos humanos, já que o modelo assistencial adotado, que preconiza a integralidade, a humanização e a promoção da saúde, é dependente do perfil de formação e da prática dos profissionais de saúde9,10. Dados a importância da ESF e o papel singular dos profissionais de saúde na sua implementação, este artigo tem o objetivo de avaliar os avanços e desafios na gestão dos recursos humanos inseridos na ESF, no norte de Minas Gerais, Brasil.
Trata-se de estudo de abordagem quantitativa, transversal analítico, com 317 profissionais de nível superior que atuam na ESF nos 13 municípios polos das regiões de saúde do norte de Minas Gerais – Bocaiúva, Brasília de Minas, Coração de Jesus, Francisco Sá, Janaúba, Januária, Manga, Monte Azul, Montes Claros, Pirapora, Salinas, São Francisco e Taiobeiras. O norte de Minas é uma das regiões do estado de Minas Gerais com maior cobertura populacional da ESF. Os dados foram coletados entre fevereiro e dezembro de 2014, por meio de questionário autoaplicado aos profissionais. O questionário foi construído pelos próprios pesquisadores, mediante pesquisa bibliográfica sobre o tema. Um piloto foi conduzido com participação de 20 profissionais de equipes de saúde da família de Montes Claros. Esses dados foram incluídos no estudo principal, uma vez que não houve modificações no instrumento a partir do estudo piloto.
Para a coleta de dados, foram planejadas duas visitas a cada um dos municípios. Isso possibilitou abordar um maior número de profissionais, por exemplo, aqueles afastados por motivos de licença médica, férias e faltosos ao local de trabalho no dia da primeira visita. Portanto, a coleta foi presencial e no local de trabalho dos profissionais.
Os critérios de inclusão incluíram: ser profissional médico, enfermeiro ou cirurgião-dentista vinculado à ESF nos municípios sede das Regiões de Saúde do norte de Minas Gerais, independentemente do tempo de atuação na APS/ESF, sexo e idade; aceitar participar da pesquisa conforme descrição do termo de consentimento livre e esclarecido.
Foram avaliados os seguintes atributos relacionados aos recursos humanos: sexo, remuneração mensal em reais (R$), formação profissional, pós-graduação, vínculo empregatício, plano de carreira, trabalho em ESF de outros municípios, educação permanente, incentivos financeiros no salário, por exemplos, adicionais por titularidade (pós-graduação) ou por bônus financeiro com contratualização de metas. O tratamento estatístico foi realizado no programa IBM SPSS statistics 22.0.
Conduziu-se a estatística descritiva por meio dos valores absolutos e percentuais ajustados pelo número total de respondentes para cada questão. Foram apresentados médias e desvio padrão, valores mínimos e máximos e medianas da remuneração mensal do trabalho na ESF. A avaliação das variáveis deu-se por meio da comparação de medianas da remuneração mensal conforme sexo, plano de carreira e formação profissional, pelos testes não paramétricos, Mann-Whitney U e Kruskal Wallis, pela falta de normalidade na distribuição dos dados relacionados à remuneração mensal (p < 0,001), e teste de Kolmogorov Smirnov (p < 0,001). Foi verificada a associação da categoria profissional conforme sexo, plano de carreira e participação em atividade de educação permanente pelo teste qui-quadrado de Pearson. Para todos os testes estatísticos, considerou-se o nível de significância p < 0,05.
A realização da pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), sob o número 616.431. Obteve-se o consentimento institucional da Superintendência Regional de Saúde de Montes Claros, após aprovação em ata da reunião da Comissão Intergestores da Região Ampliada de Saúde do norte de Minas. Todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, conforme Resolução no 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.
A pesquisa contou com a participação de 317 trabalhadores das equipes de ESF, alocados nos 13 municípios polos de Regiões de Saúde do norte de Minas. A categoria profissional incluiu cirurgiões-dentistas (n = 86/27,3%), enfermeiros (n = 146/46,3%) e médicos (n = 83/26,3%), com perda de informações em dois questionários. Em relação ao sexo, a maioria dos participantes (n = 206/65,2%) eram mulheres. A distribuição das categorias profissionais por sexo foi apresentada na Tabela 1, o maior percentual no sexo masculino foi para medicina (n = 42/38,5%), enquanto no feminino foi para enfermagem (n = 107/52,2%), com significância estatística (p = 0,001).
Tabela 1 Distribuição dos pesquisados conforme categoria de formação e sexo. Profissionais da ESF do norte de Minas Gerais, Brasil (2014)
Sexo | Categoria de formação profissional | p valor | |||
---|---|---|---|---|---|
Medicina n (%) |
Enfermagem n (%) |
Odontologia n (%) |
Total n (%) |
||
Masculino | 42 (38,5) | 39 (35,8) | 28 (25,7) | 109 (100,0) | 0,001 |
Feminino | 41 (20,0) | 107 (52,2) | 57 (27,8) | 205 (100,0) | |
Total | 83 (26,4) | 146 (46,5) | 85 (27,1) | 314 (100,0)* |
n= número de profissionais;
*Perda de respondentes, valores percentuais ajustados
No que se refere à remuneração, o salário mensal na ESF variou de R$ 900,00 a R$ 13.000,00, com média igual a R$ 4.152,03 (± 2.907,80), e a mediana foi R$ 2.800,00. Os resultados apresentados na Tabela 2 demonstram que entre as diferentes categorias profissionais a medicina apresentou a maior média de remuneração na ESF (R$ 8.302,69) e a maior mediana (R$ 9.500,00) quando comparadas com a odontologia e a enfermagem, com significância estatística na comparação das medianas (< 0,001). Ainda em relação à remuneração do trabalho na ESF por categoria profissional, os médicos apresentaram uma variação de renda de R$ 2.900,00 a R$ 13.000,00, os enfermeiros, de R$ 1.300,00 a R$ 6.570,00 e os cirurgiões-dentistas, de R$ 900,00 a R$ 6.000,00. A média de remuneração dos trabalhadores homens foi maior (R$ 4.877,20) que a das mulheres (p = 0,026). A renda profissional não foi diferente entre os municípios com e sem plano de carreira (p = 0,886), contudo naqueles sem plano se observou maior média de remuneração mensal na ESF (R$ 4.272,06) e maior salário entre os profissionais (R$ 13.000,00), entretanto apresentaram menor mediana (R$ 2.800,00).
Tabela 2 Remuneração mensal de profissionais da ESF do norte de Minas Gerais, Brasil, conforme sexo, profissão e plano de carreira profissional (2014)
Variáveis |
Remuneração mensal na ESF (em reais – R$) |
p valor | |||
---|---|---|---|---|---|
Média (± desvio padrão) | Mínimo | Máximo | Mediana | ||
Sexo | 0,026* | ||||
Masculino | 4.877,20 (±3.291,57) | 900,00 | 12.000,00 | 2.900,00 | |
Feminino | 3.738,88 (±2.587,39) | 1.300,00 | 13.000,00 | 2.800,00 | |
Profissão | <0,001* | ||||
Medicina | 8.302,69 (±2.539,12) | 2.900,00 | 13.000,00 | 9.500,00 | |
Enfermagem | 2.523,08 (±669,72) | 1.300,00 | 6.577,00 | 2.500,00 | |
Odontologia | 2.786,25 (±724,05) | 900,00 | 6.000,00 | 2.700,00 | |
Plano de carreira | 0,886 | ||||
Sim | 3.769,12 (±2.579,88) | 1.900,00 | 12.000,00 | 2.946,00 | |
Não | 4.272,06 (±2967,72) | 900,00 | 13.000,00 | 2.800,00 |
*Significância estatística: p < 0,05
Quanto à existência de plano de carreira, cargos e salários para os profissionais da ESF, destaca-se que 278 (90,8%), entre os 306 respondentes a essa questão, afirmaram não o possuir. Na categoria medicina, apenas dois profissionais (2,4%) afirmaram ter plano de carreira. Na enfermagem e odontologia, o percentual de profissionais com plano de carreira foi maior, 14 (10,2%) e 12 (14,3%), respectivamente, com significância estatística (p = 0,025), conforme apresentado na Tabela 3.
Tabela 3 Distribuição dos pesquisados conforme categoria profissional e plano de carreira na ESF do norte de Minas Gerais, Brasil (2014)
Categoria profissional | Plano de carreira na ESF | p valor | ||
---|---|---|---|---|
Sim n (%) |
Não n (%) |
Total n (%) |
||
Medicina | 2 (2,4) | 81 (97,6) | 83 (100,0) | |
Enfermagem | 14 (10,2) | 123 (89,8) | 137 (100,0) | 0,025 |
Odontologia | 12 (14,3) | 72 (85,7) | 84 (100,0) | |
Total | 28 (9,2) | 276 (90,8) | 304* (100,0) |
n= número de profissionais;
*Perda de respondentes, valores percentuais ajustados
Verificou-se que embora a maioria dos participantes (n = 176/56,4%) tenha referido não ter trabalhado em ESF fora do atual município de exercício, demonstrando relativa fixação, o percentual de profissionais que responderam já terem atuado em diferentes municípios, pertencentes ou não ao estado de Minas Gerais, ainda foi considerável, 43,6% (n = 136 de 312 respondentes a esse quesito do questionário).
Em relação ao vínculo empregatício, observa-se predomínio do contrato administrativo, relatado por 205 dos profissionais (67,4%), seguido dos vínculos estatutário (n = 42/13,8%) e com programas federais (n = 31/10,1%). Outros vínculos foram citados, como profissional autônomo, terceirizado e com contrato pelo sistema Consolidação das Leis de Trabalho (CLT).
No que diz respeito à existência de vínculos de trabalho com outras instituições, verificou-se que a minoria dos participantes da pesquisa (n = 82/26,4%) relatou possuir outros vínculos empregatícios. Para essa questão, houve perda de respostas para seis profissionais (n = 311). Sobre incentivos financeiros para os profissionais, 190 referiram não possuir (61,1%) nenhum tipo de bônus financeiro na remuneração do trabalho na ESF, seja pela contratualização de metas, seja por incentivos financeiros relacionados à pós-graduação (titularidade).
Quanto à formação no nível de pós-graduação, a maioria (n = 202/51,1%) dos profissionais referiu ter concluído algum curso nesse nível, 103 não realizaram (32,5%) e 52 referiram estar em processo de curso (16,4%). Em relação ao tipo de pós-graduação concluída, entre os 184 profissionais que informaram o curso, 97 (52,7%) se especializaram na área de ESF, 11 (6,0%), em Saúde Pública, quatro (2,2%), em Saúde Coletiva, e cinco (2,7%), na área de Medicina da Família e Comunidade.
No que se refere à educação permanente, 148 (57,8%) profissionais, dos 256 que responderam a essa questão, afirmaram ter participado de pelo menos uma capacitação em serviço, sendo a mais destacada o Programa de Educação Permanente (PEP). A participação mensal em atividades de educação permanente foi apontada por 95 profissionais (70,9% dos 134 respondentes).
Na associação entre profissão e participação em atividades de educação permanente, na medicina houve participação de 36 (49,3%) profissionais, na enfermagem, 82 (71,3%) e na odontologia, 28 (42,4%), com diferença significativa entre os percentuais de participação por categoria profissional (p < 0,001) (Tabela 4).
Tabela 4 Distribuição dos pesquisados conforme categoria profissional e participação em atividade de educação permanente no âmbito da ESF do norte de Minas Gerais, Brasil (2014)
Categoria profissional | Educação permanente na ESF | p valor | ||
---|---|---|---|---|
Sim n (%) |
Não n (%) |
Total n (%) |
||
Medicina | 36 (49,3) | 37 (50,7) | 73 (100,0) | |
Enfermagem | 82 (71,3) | 33 (28,7) | 115 (100,0) | <0,001 |
Odontologia | 28 (42,4) | 38 (57,6) | 66 (100,0) | |
Total | 146 (57,5) | 108 (42,5) | 254* (100,0) |
n= número de profissionais;
*Perda de respondentes, valores percentuais ajustados
A predominância de profissionais enfermeiros entre os participantes deste estudo pode ser explicada pelo maior protagonismo desses profissionais na ESF11, bem como pela ausência de profissionais médicos em algumas equipes de saúde da família e pela cobertura de saúde bucal inferior à cobertura de saúde da família na região norte de Minas Gerais durante o período de realização do estudo12.
A tendência nacional de feminilização da força de trabalho no setor saúde foi observada neste estudo, no qual predominou o gênero feminino entre os participantes, o que vai ao encontro de outros estudos que apontam essa tendência no mercado de trabalho em saúde no Brasil13-17. De acordo com Wermelinger et al.16, o setor de saúde, em todo o mundo, tem forte vocação feminina, e em países mais ricos essa vocação tem expressão ainda mais forte.
A predominância de profissionais do sexo feminino entre as categorias de profissionais que atuam na APS, com exceção da categoria médica, também é um resultado já apontado na literatura13,18. Em relação a essa categoria, destaca-se que o estudo Demografia Médica no Brasil19 indicou recente tendência de feminilização da profissão na área médica, visto que no período de 2000 a 2016 foram registrados entre os novos médicos mais de 50% de mulheres.
No que se refere à remuneração dos profissionais de nível superior, a medicina apresentou a maior média de salário mensal pelo trabalho na ESF em relação a outras categorias profissionais (cirurgiões-dentistas e enfermeiros). Quanto a essa diferenciação na remuneração, os achados deste estudo se assemelham aos resultados do Censo de Recursos Humanos da APS realizado no estado de Minas Gerais18. Um estudo realizado em um município de pequeno porte do Paraná chamou a atenção para o desequilíbrio entre os salários pagos aos profissionais de nível superior da ESF. Nos municípios participantes do estudo, pagava-se aos médicos, em média, mais que o triplo dos salários dos cirugiões-dentistas e enfermeiros13.
De acordo com Ney e Rodrigues20, entre os profissionais de nível superior da ESF, os médicos são os detentores de maior poder de negociação, ocasionado pelas múltiplas alternativas que o mercado lhes oferece. Entretanto, a ESF não é o local de trabalho preferido deles. O estudo Demografia Médica no Brasil, publicado este ano, apontou que quase 80% dos recém-formados em medicina preferem trabalhar no hospital, enquanto 50% pretendem trabalhar em consultório particular19.
Neste contexto, esses profissionais podem não investir em qualificação específica para atuarem na ESF e adquirem tratamento diferenciado dos demais membros da equipe, com elevados salários e flexibilização da carga horária21. Porém, não é a remuneração que é considerada a principal determinante para fixação dos profissionais médicos em uma instituição ou cidade. Para os médicos recém-formados, as condições de trabalho e a qualidade de vida são os principais fatores que os levariam a permanecer em um local de trabalho19.
Outra questão é que profissionais que atuam em municípios sem planos de cargos, carreiras e salários (PCCS) apresentaram maior média de remuneração mensal. Esse achado pode ser atribuído à consequente restrição dos gastos com pessoal na administração direta determinada pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) que se reflete nos PCCS, restrição esta que não se aplica da mesma forma nos gastos com contratações intermediadas de pessoal para o serviço público22.
Segundo Vieira22, essa realidade se aplica particularmente aos profissionais médicos, que, pelo caráter de profissão liberal e busca de autonomia no trabalho, tendem a escolher melhores salários, os quais, na maioria dos municípios, não são contemplados nos planos de carreira pelas restrições da LRF.
Ademais, a inexistência de PCCS apontada pela maioria dos profissionais se refere à frágil interferência estatal na construção de um plano de carreira para a ESF6, bem como à incipiência na instituição desse instrumento, de forma geral no Brasil, com mais dificuldades de implantação desses em municípios de menor porte7.
Embora não verse sobre o PCCS específico à ESF, um estudo mais recente realizado pelo Ministério da Saúde, divulgado em 201423, demonstra aumento na implantação dos PCCS nas secretarias de saúde do país, principalmente a partir de 2011. Observou-se que das 519 secretarias estaduais/municipais pesquisadas, 37% possuem PCCS geral e 26%, PCCS específico para a saúde. As secretarias que não possuem nenhum tipo de PCCS somam 28%. Outro estudo20 realizado no estado do Rio de Janeiro concluiu que a inexistência de PCCS é um dos fatores que levavam à desmotivação e à rotatividade dos profissionais atuantes na ESF.
Segundo Vieira24, torna-se necessária a conscientização de que instituir um PCCS não se resume a ganhos remuneratórios, mas em uma ferramenta poderosa de melhoria nas condições de trabalho, aperfeiçoamento profissional e valorização do trabalhador. A implantação de um plano de carreiras no serviço público de saúde é uma discussão que se arrasta desde a instituição do Sistema Único de Saúde (SUS), na década de 1990, e demanda árduas negociações entre trabalhadores e gestores estatais. Os últimos detêm a premissa de aprovar uma proposta mediante a observação do impacto financeiro resultante do PCCS aos cofres públicos24.
Além disso, a redução dos investimentos em saúde nos últimos anos, decorrente da crise político-econômica que vivencia o país e, especificamente, o estado de Minas Gerais, resulta em cortes significativos de gastos, principalmente na esfera de gestão do trabalho, área negligenciada na história do SUS. Nesse contexto, Paim25 aponta cenários negativos quanto à estruturação de planos de carreira na ESF.
Em relação ao vínculo empregatício, predominou o contrato administrativo para mais da metade dos profissionais, seguido dos vínculos estatutário e com os Programas Federais. Esse dado coincide com os achados do Censo18 e também com os dados relatados por Alvarenga et al.26 e Brito et al.21, porém não conferem com os achados do estudo de base nacional7 e do estudo de Giovanella e Almeida6 para alguns países da América do Sul, como Chile, Guiana e Paraguai. Nesses estudos, o maior percentual de respostas foi equivalente ao vínculo estatutário.
Estudos apontam que a predominância desses vínculos precários, com perdas de direitos trabalhistas, é crescente no setor público e, por consequência, na ESF, resultando em instabilidade e insegurança aos profissionais, sendo apontados como principais responsáveis pela alta rotatividade deles6,27. Para Giovanella e Almeida6, a precariedade dos vínculos indica fraca intervenção estatal no direcionamento da força de trabalho para o sistema público de saúde. Embora não seja uma realidade no norte de Minas, Garrido-Pinzón e Bernardo28 discorrem sobre os novos arranjos na gestão do trabalho, com a inserção da terceirização, entre outras formas de contratação, que resultam em vulnerabilização social do trabalhador da saúde.
Tem-se que os contratos por meio de organizações terceirizadas na saúde não geram estabilidade profissional, por isso são vulneráveis e frágeis, além de impactar na saúde física e psíquica dos profissionais por submetê-los a diferenças salariais, de benefícios e de tratamento. Isso gera um fluxo migratório dos trabalhadores da ESF e interfere no princípio da atenção primária, a longitudinalidade, que pressupõe o vínculo ao longo do tempo entre profissionais e usuários e continuidade do cuidado27.
A existência de mais de um vínculo trabalhista foi verificada em pequena parcela dos participantes do estudo, corroborando os achados de Brito et al.21. Esse dado contradiz o estudo censitário18 que demonstrou que a maioria dos médicos que atuam na ESF em Minas Gerais possui outros vínculos. A realização de plantões em hospitais e nos próprios municípios são as atividades mais frequentes. Segundo esse mesmo estudo, essa multiplicidade estaria relacionada à queda nos salários ofertados na ESF18, relação essa apontada por outros estudos21,29. Em municípios de pequeno porte e de difícil acesso, observa-se que essa situação é influenciada pela escassez profissional, que torna a oferta de outros vínculos uma forma de atrair e fixar os profissionais.
A maioria dos profissionais não conta com incentivos financeiros pelo trabalho na ESF. Esse resultado condiz com o contexto apresentado, em que prevalecem vínculos precários e ausência de plano de carreira, o que certamente confirma a inexistência de políticas de incentivos baseadas em resultados por meio da contratualização de metas. Em contramão a esses resultados, deve-se destacar o esforço do Ministério da Saúde por meio da indução financeira, de reorientar a atenção à saúde dos municípios, priorizando a atenção primária. Uma forma de indução foi o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), criado em 2011 pelo Ministério da Saúde, que vincula a contratualização, por adesão espontânea, das equipes de saúde da família a repasse de recursos federais para implantação e alcance dos padrões de acesso e de qualidade na APS30. Um estudo realizado em Curitiba, Rio de Janeiro e Lisboa (Portugal) demonstrou que a contratualização das ESF resultou em melhoria de indicadores e desempenho dos serviços. Há que se ressaltar que o processo de contratualização é complexo e demanda restruturação organizacional interna, pois, sem esse atributo, torna-se um mero instrumento de verificação de cumprimento de metas e perde o caráter de possibilitar a transformação de realidades31.
A conclusão de curso no nível de pós-graduação foi constatada para mais da metade dos participantes, com grande frequência para os da área de Atenção Primária à Saúde/Saúde da Família, corroborando os achados de Gonçalves et al.17 e Brito et al.21. Os dados demonstraram busca e/ou acesso dos trabalhadores ao aperfeiçoamento da prática profissional, em áreas do conhecimento importantes para a implementação e a consolidação da proposta da ESF. Nesse sentido, uma das iniciativas do Ministério da Saúde foi criar o Sistema Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde (UNA-SUS) pelo Decreto no 7.385, de 8 de dezembro de 201032, em parceria com as demais esferas governamentais, instituições públicas de ensino superior e unidades internacionais para a formação continuada dos profissionais da área. O (UNA-SUS) ofertou cursos de pós-graduação e de extensão universitária a distância33.
No que se refere à educação permanente, destaca-se o Programa de Educação Permanente (PEP), referido pelos profissionais. Em Minas Gerais, a Secretaria de Estado da Saúde constituiu uma intervenção educacional intitulada como Programa de Educação Permanente para Médicos de Família (PEP), ou seja, estratégia educacional para os médicos que atuam na ESF34. Porém, os profissionais enfermeiros e cirurgiões-dentistas também participaram de atividades de educação em serviço, sendo provável que instituíram os próprios processos de educação permanente de acordo com as necessidades advindas do serviço. Os achados do atual estudo se assemelham com os resultados de D’Ávila et al.35 e Machado et al.36. Os resultados positivos podem ser explicados, em parte, pela implantação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS), com a criação de polos de educação permanente em saúde em diferentes municípios brasileiros, para a difusão da educação permanente de profissionais da saúde37,38, sem especificidade para o tipo de categoria profissional.
No campo dos avanços, destaca-se a conclusão de cursos de pós-graduação com formação de profissionais em área específica para atuação na ESF, bem como a participação em atividades de educação permanente, iniciativas que qualificam o trabalhador em serviço. Cabe ressaltar também o resultado referente aos incentivos financeiros atrelados à contratualização de metas. Apesar de esse avanço não ser uma realidade para a maioria dos profissionais, considera-se que o incentivo financeiro possa contribuir para transformar os processos de trabalho das equipes participantes.
De acordo com os resultados, os desafios permanecem no campo da precarização do trabalho, com intensa variação de remunerações mensais entre as categorias profissionais da ESF e inexistência de proteções trabalhistas, fatos que poderão contribuir para o fluxo migratório de profissionais entre municípios, dificuldades para instalar novas equipes, aumentar a cobertura populacional e garantir a efetividade dos princípios da APS, como a longitudinalidade do cuidado aos usuários dos serviços de saúde. Essa constatação aponta para a necessidade de estudos que possam verificar a influência do tipo de vínculo trabalhista na efetividade da atenção à saúde, no âmbito da ESF.
Ademais, é preciso envidar esforços para que a questão da precarização dos contratos de trabalho e remuneração dos profissionais, em especial na ESF, seja inserida na agenda prioritária dos três entes federativos, mediante a promoção de concursos públicos para a seleção de profissionais efetivos e remunerações adequadas, minimizando a rotatividade nos municípios mineiros.
O que é pujante nessa discussão é que a estruturação do SUS por meio da ESF perpassa pela discussão e mudança da gestão de recursos humanos na saúde vigente no país.