versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465
Esc. Anna Nery vol.23 no.1 Rio de Janeiro 2019 Epub 31-Jan-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0214
A organização dos sistemas de saúde pode variar entre uma conjuntura de total fragmentação, até a completa integração dos seus componentes, transitando entre as inúmeras possibilidades de arranjos entre os dois extremos desse espectro, o que repercute nas características dos modelos de atenção adotados. Em geral, sistemas fragmentados vinculam-se a modelos de atenção que respondem às condições agudas, enquanto que sistemas integrados estão articulados a modelos de atenção às condições crônicas1.
A mudança nos quadros epidemiológico, demográfico, nutricional e tecnológico resultou no atual perfil de situação de saúde da população, com tripla carga de doenças, caracterizado pela coocorrência de condições crônicas e agudas, somadas ainda aos agravos decorrentes de causas externas. Assim, a implantação de modelos de atenção que respondam adequadamente às condições crônicas faz-se necessária. Diante desta nova agenda, muitos países vêm reformulando seus sistemas de saúde nos últimos anos, redirecionando-os a uma estrutura integrada, com foco no fortalecimento da Atenção Primária à Saúde (APS) e do cuidado integral2.
No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS), organizado por meio do estabelecimento das Redes de Atenção à Saúde (RAS), busca qualificar a atenção por meio da ampliação do acesso e longitudinalidade do cuidado, tendo como objetivo o alcance da integralidade3-4. Nas RAS, a população, a estrutura operacional e os modelos de atenção devem ser definidos de modo a responder prontamente aos eventos agudos, como também manejar as condições crônicas de saúde1. As RAS são desenhadas de maneira a centralizar na APS a coordenação do cuidado e ordenação das redes, buscando fornecer um contínuo coordenado de ações e serviços de saúde a partir de uma população definida territorialmente. Essa forma de organização valoriza os fluxos de comunicação interorganizacional, partindo de um modelo mais hierarquizado para alcançar uma relação integrada entre os elementos da sua estrutura operacional, entre eles os pontos de atenção secundários e terciários, sistemas de apoio e a APS4-5. Nesse sentido, buscam a integração entre os pontos de atenção à saúde, no sentido de permitir a integralidade do cuidado1.
A operacionalização das RAS no SUS ainda se encontra em processo de consolidação e discussão de estratégias visando à sua implantação plena3,5, o que tem incentivado a realização de pesquisas científicas sobre esse tema6. As RAS, como normatizadoras e organizadoras de um modelo de atenção, apresentam uma matriz discursiva, ideológica, que as estrutura, de modo que a produção científica sobre esse tema pode ser considerada como reverberações, efeitos e visibilidades possíveis de uma realidade em construção do cotidiano dos serviços e práticas em saúde. Diante dessa conjuntura, questiona-se: Qual a tendência de investigação sobre o tema Redes de Atenção à Saúde nas produções científicas na área da saúde no Brasil?
Este estudo teve como objetivo analisar a tendência de investigação de teses e dissertações brasileiras da área da saúde sobre o tema Redes de Atenção à Saúde.
Trata-se de um estudo descritivo e exploratório de abordagem quantitativa, de base documental, realizado a partir da base de dados Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)7, vinculada ao Ministério da Educação brasileiro.
A coleta de dados se deu em janeiro de 2018, no site da CAPES, que disponibiliza o Catálogo em regime de domínio público. Utilizou-se o termo “Rede de Atenção à Saúde” no campo de busca, com aplicação do filtro “Ciências da Saúde” no campo Grande Área Conhecimento. Foram considerados como critérios de inclusão: tese ou dissertação da área da saúde, desenvolvida no cenário brasileiro, defendida entre os anos 2013 e 2016. Foram excluídos trabalhos que não disponibilizassem o resumo, ou que não apresentassem o termo Rede de Atenção ou Redes de Atenção no título ou resumo, tendo constado na busca inicial por apresentarem o termo no nome da linha ou projeto de pesquisa a que estavam vinculados.
A delimitação temporal estabelecida visou contemplar o último quadriênio de avaliação da CAPES. Além disso, considera-se que esse recorte temporal da busca possibilitou a inclusão de produções desenvolvidas com base nos dispositivos normativos e contextuais a partir do ano de 2010, tendo em vista a publicação da Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Desde 2011, efetivamente, as RAS assumem o centro da política de atenção à saúde do MS, pautando o debate nacional e redirecionando os recursos federais que foram disponibilizados, potencializando os recursos estaduais e municipais.
A busca inicial apresentou 365 resultados, dos quais 288 estavam vinculados à grande área das Ciências da Saúde. Destes, 220 foram defendidos no quadriênio 2013-2016. Cinco trabalhos foram excluídos por não disponibilizarem o resumo na base de dados e 25, por apresentarem o termo Rede de Atenção ou Redes de Atenção apenas no nome da linha ou projeto de pesquisa aos quais estavam vinculados. Assim, obteve-se uma amostra final de 190 trabalhos.
A análise dos dados consistiu na extração das informações de cada tese ou dissertação, considerando: Ano de defesa; Região; Instituição; Programa de Pós-Graduação; Abordagem metodológica; Método; Contexto do estudo; Participantes da pesquisa; Descritores/Palavras-chave; e do resumo os Resultados e C onclusões. Os dados de caracterização foram organizados em planilha do software Excel® e analisados por estatística descritiva das variáveis. O material textual referente aos resultados e conclusões foi processado por meio do software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRAMUTEQ®).
O IRAMUTEQ possibilita o processamento e análise estatística sobre um corpus textual por meio do agrupamento de vocábulos, chamados de ocorrências, por similaridade semântica. Desse modo, permite cinco tipos de análises: Estatísticas textuais clássicas; Pesquisa de especificidades de grupos e análise fatorial confirmatória; Classificação Hierárquica Descendente (CHD); Análise de similitude de palavras; e Nuvem de palavras8-9.
Vale destacar que o IRAMUTEQ possui uma interface singular, que se difere de outros softwares semelhantes. Nesse sentido, cabe descrever os significados da sua nomenclatura. O corpus compreende o agrupamento textual total utilizado na análise, que é composto por um conjunto de textos. Cada texto é representado por uma unidade a ser analisada, que neste estudo correspondeu a cada resumo incluído na análise. Os textos são, ainda, divididos pelo software em Segmentos de Texto (STs), fragmentos textuais de aproximadamente três linhas delimitados por similaridade semântica8-9.
O corpus foi preparado com base na unificação dos textos, compostos pelos trechos de resultado e conclusão de cada resumo dos trabalhos selecionados, organizados em um arquivo do programa Open Office®. O material foi revisado para eliminar possíveis erros de digitação e uniformizar siglas, permitindo que termos diferentes, mas com o mesmo significado, fossem considerados nas análises como similares. Foram padronizados os termos: Rede de Atenção à Saúde, Atenção Primária à Saúde, Estratégia Saúde da Família, Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), Sistema Único de Saúde (SUS), saúde mental e assistência farmacêutica. Termos compostos por mais de uma palavra foram reescritos, sendo separados com traço subscrito, identificando-os como um único termo. Ainda, os termos Atenção Básica e Atenção Básica à/em Saúde foram substituídos por Atenção Primária à Saúde, considerando a equivalência dos termos definida pela Política Nacional de Atenção Básica10, permitindo maior consistência dos dados.
As categorias de palavras incluídas para análise foram: adjetivos, substantivos, verbos e formas não reconhecidas, uma vez que estas incluíam termos frequentes no corpus, como siglas e termos unificados, de modo que 91,3% dos STs fossem aproveitados para análise. Para este estudo, foram realizadas as análises por Estatística textual clássica e CHD. As ocorrências apresentadas em cada uma das classes na CHD são ordenadas de forma decrescente de acordo com o valor obtido no teste do Qui-Quadrado (X2), e todas apresentaram valores estatisticamente significantes (p<0,0001).
Dos 190 trabalhos selecionados, 153 (80,5%) eram Dissertações e 37 (19,5%), Teses, cuja caracterização está apresentada na Tabela 1.
Tabela 1 Caracterização das teses e dissertações brasileiras da área da saúde com a temática Rede de Atenção à Saúde defendidas entre 2013 e 2016 (n=190).
N | % | ||
---|---|---|---|
Ano de defesa | 2013 | 28 | 14,7 |
2014 | 40 | 21,1 | |
2015 | 73 | 38,4 | |
2016 | 49 | 25,8 | |
Região | Sudeste | 98 | 51,5 |
Sul | 41 | 21,6 | |
Nordeste | 31 | 16,3 | |
Centro-Oeste | 18 | 9,5 | |
Norte | 2 | 1,1 | |
Instituição | Fundação Oswaldo Cruz | 19 | 10,0 |
Universidade Federal de Santa Catarina | 17 | 8,9 | |
Universidade Federal de Minas Gerais | 13 | 6,8 | |
Universidade de São Paulo (Ribeirão Preto) | 11 | 5,8 | |
Universidade de Brasília | 9 | 4,7 | |
Outras | 121 | 63,8 | |
Programa de Pós-Graduação | Enfermagem | 59 | 31,1 |
Saúde Coletiva | 42 | 22,1 | |
Saúde Pública | 16 | 8,4 | |
Odontologia | 10 | 5,3 | |
Saúde da Família | 9 | 4,7 | |
Outros | 54 | 28,4 | |
Abordagem metodológica | Qualitativa | 111 | 58,4 |
Quantitativa | 51 | 26,8 | |
Qualitativa e quantitativa ou mista | 22 | 11,6 | |
Não identificado | 6 | 3,2 | |
Método | Pesquisa descritiva e/ou exploratória | 46 | 24,2 |
Estudo de caso | 34 | 17,9 | |
Estudo transversal | 20 | 10,5 | |
Não mencionado | 27 | 14,2 | |
Outros | 63 | 33,2 | |
Contexto do estudo | Atenção Primária à Saúde | 52 | 27,4 |
Rede municipal de saúde | 51 | 26,8 | |
Pontos de atenção secundários e terciários | 38 | 20,0 | |
Rede regional / intermunicipal de saúde | 15 | 7,9 | |
Rede nacional de saúde | 13 | 6,8 | |
Rede estadual de saúde | 10 | 5,3 | |
Instituições de Ensino Superior | 8 | 4,2 | |
Sistemas de apoio | 1 | 0,5 | |
Outros | 2 | 1,1 | |
Participantes da pesquisa | Profissionais | 59 | 31,0 |
Usuários e familiares | 32 | 16,8 | |
Usuários, profissionais e gestores | 18 | 9,4 | |
Gestores | 17 | 8,9 | |
Profissionais e gestores | 16 | 8,4 | |
Usuários e profissionais | 13 | 6,8 | |
Docentes e estudantes | 6 | 3,5 | |
Usuários e gestores | 1 | 0,5 | |
Outros | 18 | 9,4 | |
Não mencionado | 10 | 5,3 |
Os 190 trabalhos apresentaram 809 palavras-chave e 394 termos diferentes. As palavras-chave mais frequentes foram: Atenção Primária à Saúde (54;28,4%), Enfermagem (29;15,3%), Estratégia Saúde da Família (23;12,1%), Sistema Único de Saúde (20;10,5%), Assistência à Saúde (15;7,9%), Avaliação em Saúde (14;7,4%) e Integralidade em Saúde (14;7,4%).
Em relação à análise dos dados textuais, o corpus geral foi constituído por 188 textos, pois não foi possível identificar claramente em dois resumos os resultados e/ou conclusões da pesquisa. Nestes, emergiram 38.531 ocorrências, sendo 5.284 palavras distintas. A análise por estatística textual clássica evidenciou como termos mais frequentes, em ordem decrescente: saúde, serviço, cuidado, atenção, profissional, rede, Rede de Atenção à Saúde, Atenção Primária à Saúde, trabalho e processo, mostrando-se, de modo geral, semelhante à frequência de palavras-chave.
No material analisado, identificaram-se cinco classes semânticas: 1) Gestão das Redes de Atenção à Saúde; 2) Redes temáticas de Atenção à Saúde; 3) APS como ordenadora da rede; 4) Formação profissional para atuação em rede; 5) Resultados estatísticos. A análise por CHD evidenciou relação entre as Classes 1 e 4 e Classes 3 e 2. Ambos os agrupamentos são permeados pela Classe 5, que correspondeu a inferências estatísticas dos resultados e aspectos epidemiológicos dos estudos, a qual não será discutida neste artigo pois não representou tendência temática de investigação. A Figura 1 ilustra a distribuição e relação entre as classes.
Figura 1 Tendências do tema de Rede de Atenção à Saúde em teses e dissertações brasileiras da área da saúde de 2013 a 2016 - Classificação Hierárquica Descendente a partir do software IRAMUTEQ
A Classe 1, Gestão das Redes de Atenção à Saúde, incorporou 24,9% dos STs e teve como destaque as ocorrências Modelo, Ator, Processo, Gestão e Trabalho. Nesta classe, destacou-se a necessidade de reorientação do modelo assistencial para atingir os pressupostos da RAS. Apesar de os estudos indicarem a APS como eixo reestruturante do modelo assistencial (como apresentado na classe 3), constatou-se que os modelos predominantes são pouco atuantes nas ações de promoção da saúde. São recorrentes conteúdos relacionados à fragilidade da responsabilidade coletiva e da incorporação de diferentes saberes à prática de saúde, apontando a necessidade de reorganização do processo de trabalho das equipes multiprofissionais, uma vez que a coordenação do cuidado pela APS sustenta-se, obrigatoriamente, por ações compartilhadas por vários profissionais. Também houve destaque à orientação das redes por políticas nacionais, permitindo seu fortalecimento por meio da execução adequada por seus atores: profissionais, gestores e usuários. Apesar de apresentarem a importância do diálogo entre equipes, gestores e usuários para consolidação de um modelo de atenção às condições crônicas, os estudos constataram deficiência da participação social. Foi identificada baixa capacidade gerencial dos municípios, sendo um entrave destacado a limitada capacidade assistencial instalada dos municípios de pequeno porte. Somado a isso, há dificuldade de planejamento das ações intermunicipais, incluindo financiamento e processo decisório compartilhado.
A Classe 2 foi denominada Redes temáticas de Atenção à Saúde, representada por 16,8% dos STs. Nesta classe, o termo Criança foi o mais significativo. Além disso, destacaram-se temas referentes às redes de atenção à saúde materno-infantil (incluindo processo de parto e nascimento, prematuros, neonatos e adolescentes), saúde auditiva, e atenção a pessoas com doenças crônicas. Os conteúdos apresentados abordavam aspectos relacionados à importância do posicionamento do profissional, sendo este capaz de determinar o perfil assistencial do serviço de saúde: se voltado à fragmentação ou à integralidade do cuidado.
Na perspectiva das redes temáticas, foi indicada baixa interação entre os serviços da rede, apontando-se falhas no referenciamento aos serviços especializados, reflexos de um modelo médico-assistencial hegemônico, hospitalocêntrico e centrado na doença, ainda presente. Foi destacada a necessidade de ações que articulem promoção da saúde às práticas de cuidado, com foco no autocuidado e participação da equipe multiprofissional, usuário e familiar para um cuidado compartilhado.
A Classe 3, APS como ordenadora da rede, obteve a maior frequência de STs, com 27,1%, e apresentou destaque das ocorrências Acesso e Serviço. Nessa classe, foi recorrente a abordagem do distanciamento e da fragilidade na integração entre os diferentes serviços de saúde, com destaque para a incipiência dos sistemas logísticos. A comunicação não efetiva entre todos os níveis assistenciais foi apontada como óbice no acompanhamento do usuário ao longo da rede. Nos pontos de atenção secundários e terciários, os estudos indicaram morosidade referente à realização de exames complementares e na avaliação por outros profissionais. Nos serviços de urgência e emergência, foi frequente a indicação de demandas que poderiam ser absorvidas pela APS. Os estudos analisados trouxeram ainda a necessidade de reestruturação da APS que, uma vez consolidada, se torna porta de entrada prioritária para o acesso aos demais serviços, permitindo que esta assuma seu papel central na organização da rede.
A Classe 4, Formação profissional para atuação em rede, teve 18,3% dos STs e apresentou interface com a Classe 1, indicando interesse sobre a perspectiva da Educação Permanente como Política de Saúde e, por conseguinte, dispositivo da gestão em saúde. Nesse sentido, a educação permanente é adotada como ferramenta para fortalecer o comprometimento e preparo de profissionais e gestores quanto à gestão das redes. Os textos apresentaram conteúdos relacionados à necessidade de reorientação da formação, com foco na integralidade, uma vez que consideram o modelo atual distante do ideal de formação profissional para o SUS. Também são indicadas estratégias como o apoio matricial realizado pelo NASF, que, apesar de ainda apresentar articulações pouco estruturadas, assegura retaguarda especializada aos profissionais e oportuniza uma matriz de aprendizagem diferenciada que agrega a troca de saberes multiprofissionais à produção contínua de cuidado. Foram sugeridas, ainda, a integração ensino-serviço nas instâncias intersetoriais de gestão e a educação permanente em saúde como instrumento para realizar mudanças e gerar transformações.
A instituição da Portaria 4.279 de 2010, que estabelece as RAS no âmbito do SUS no Brasil, resultou em aumento das discussões e investigações sobre a temática, o que pode ter contribuído para a progressão do número de estudos de 2013 a 20153. Consulta ao Catálogo de Dissertações e Teses da Capes mostra que, em 2017, foram defendidas 84 teses e dissertações sobre o tema. Esse número é maior em relação a todos os anos anteriores e mostra a expansão das investigações acerca da temática RAS7.
Observou-se dispersão dos trabalhos, uma vez que as 190 teses e dissertações foram desenvolvidas em 126 instituições. No entanto, foi observada concentração dos estudos na Região Sudeste, com 51,5% das teses e dissertações defendidas no período. Estes dados corroboram com a irregular distribuição nacional dos cursos de mestrado e doutorado. Estudo que objetivou analisar a distribuição da pós-graduação stricto sensu no Brasil identificou que 50,7% dos cursos de mestrado e doutorado se concentravam no Sudeste do país11.
Em relação ao programa de pós-graduação de origem dos trabalhos, houve destaque para Enfermagem e Saúde Coletiva. No contexto do SUS, a redefinição da identidade por meio da autonomia e empoderamento do enfermeiro foi impulsionada sobremaneira pela criação da Estratégia Saúde da Família (ESF). A partir de então, com o fortalecimento do SUS e consolidação da ESF, as demandas da APS exigiram maior autonomia e incremento do escopo de atuação desse profissional, o que influenciou na valorização do seu trabalho, com destaque à sua atuação na gestão dos serviços. Somado a isso, por possuir em seu currículo acadêmico disciplinas relacionadas à administração, o enfermeiro necessita explorar o contexto e os modelos de atenção nos quais a interação entre as pessoas acontece. Desta forma, mesmo que o tema Redes de Atenção à Saúde seja interdisciplinar e multiprofissional, caracteriza-se como um importante nicho de atuação para a Enfermagem12.
A predominância da produção na Enfermagem também pode ser interpretada como um alerta para a importância de novos estudos sobre o tema em outras áreas no campo da saúde. Os processos de gestão e trabalho das várias profissões no SUS possuem interface com o modelo de atenção à saúde, as Redes de Atenção à Saúde, e mais especificamente as Redes Temáticas de Atenção à Saúde, podendo fomentar diferentes produções acadêmicas.
A produção do conhecimento em ciências da saúde é sustentada por meio das abordagens quantitativa e qualitativa, por vezes utilizadas de modo associado. Os estudos analisados utilizaram majoritariamente abordagem qualitativa. Apesar da hegemonia dos estudos quantitativos em saúde, a pesquisa qualitativa ganha espaço à medida que temas referentes às ciências humanas e sociais são introduzidos nas investigações, fazendo do desenvolvimento de estudos com rigor metodológico alicerçado em bases teóricas um desafio13-14.
No tangente aos métodos de pesquisa, predominou o uso de desenhos de pesquisa descritiva e/ou exploratória e estudo de caso. Ao passo que estudos exploratórios e descritivos possibilitam uma compreensão ampla de fenômenos de investigação, é importante o investimento em desenhos de pesquisas com maior envergadura teórico-metodológica. O uso do estudo de caso como referencial metodológico permite a análise de uma instituição, um setor, um programa de governo, o que possibilita representar um caso peculiar ou comparar um conjunto destes. Esse método é útil na área da saúde, pois possibilita a investigação de fenômenos complexos, como o das redes de atenção, por meio de múltiplas fontes de coleta de dados, permitindo sua profunda compreensão15.
A maioria dos estudos foi realizada no contexto da APS e da rede municipal de saúde, apresentando coerência ao princípio do SUS de descentralização político-administrativa com foco na municipalização, e no pressuposto de coordenação das RAS pela APS. Apesar da recomendação de que uma rede de saúde atinja sua autonomia e seja capaz de ofertar a integralidade nos três níveis de atenção nos limites da região de saúde16, apenas 7,9% dos estudos analisados focalizou esse contexto. O fortalecimento dos territórios regionais exige reflexão e discussão da gestão regional, de modo a definir, colaborativamente, estratégias de acesso e integração regional, instrumentos de regulação, e planejamento e alocação da oferta, visando assegurar a integralidade da atenção6,17.
Os estudos incluíram como participantes os principais atores das RAS, ou seja, profissionais, usuários, familiares e gestores, além de educadores e profissionais em formação. Esse achado vai ao encontro da estratégia nacional de implementação das RAS com a inclusão de diferentes atores, governamentais e sociais, e suas interdependências, permitindo o contraponto de interesses diversos frente ao benefício coletivo16.
As palavras-chave mais frequentes do estudo demonstraram coerência com os termos mais frequentes, com destaque ao tema APS, indicando que os descritores representam adequadamente os resultados encontrados pelos estudos. Essa análise também demonstra conformidade com as linhas prioritárias de investigação sobre as RAS, que inclui a APS como coordenadora do cuidado e integração entre os serviços de saúde6.
Há que se considerar que as mudanças nos modelos de atenção e arranjos organizativos ocorrem com mais lentidão do que os fatores que influenciaram o aumento das condições crônicas. Desse modo, hoje majoritariamente as condições crônicas são atendidas por modelos de atenção a condições agudas1,18, justificando a necessidade evidenciada nos resultados deste estudo de reorientação do modelo assistencial, adequando-o para atender às condições crônicas.
Nesse sentido, a responsabilização coletiva, incluindo atuação multiprofissional e participação social, faz-se substancial para atingir os objetivos das RAS. A formação de recursos humanos é ponto central para estruturação e integração das redes, gerando profissionais preparados para atuar como protagonistas no sistema de governança das RAS19. A reorganização do trabalho das equipes deve levar em conta os pressupostos da governança, tendo como objetivo final fortalecer a capacidade de gestão regional por meio do planejamento, monitoramento e avaliação. O termo “governança” não emergiu como ocorrência frequente em nenhuma das classes deste estudo, o que permite inferir que o uso do termo ainda é incipiente neste contexto. Entretanto, emergiram dos resultados ações que podem ser consideradas estratégias de fortalecimento da governança regional, como a capacitação de profissionais em conceitos de redes, fomento a sistemas de avaliação da qualidade dos serviços e a orientação dos municípios pela região de saúde sobre um planejamento de saúde compartilhado20.
Ainda em relação à gestão das RAS, o incentivo à municipalização no SUS encontra problemas no acesso à média e alta complexidade, considerando a predominância de municípios de pequeno porte e a normalmente baixa capacidade instalada destes, levando a uma situação comum de dependência externa, especialmente aos serviços de média e alta complexidade. Com o intuito de amenizar estes prejuízos, a regulamentação do SUS realizada em 2011 buscou priorizar o planejamento ascendente, substancial neste processo. Nessa conjuntura, as redes regionais de saúde se mostram fundamentais no processo de tomada de decisão e de responsabilidades compartilhadas entre municípios21.
No intuito de promover uma economia de escala em rede, sem prejuízo da integralidade, são definidas as redes temáticas de atenção à saúde. No SUS, são redes temáticas prioritárias: Rede Cegonha, de atenção psicossocial, doenças crônicas, rede de atenção às urgências e emergências e de atenção à pessoa com deficiência22. O destaque da ocorrência criança na análise deste estudo e a presença de outros termos relacionados vai ao encontro dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, compromisso proposto pela Organização das Nações Unidas e firmado pelos líderes mundiais no ano 2000. Nesse documento, dois dos oito objetivos tratavam da redução da mortalidade infantil e melhora da saúde materna23. Essa tendência identificada indica, ainda, interesse de investigação sobre a Rede Cegonha que, no Brasil, tem como foco a saúde materna e de crianças até dois anos24. No contexto da saúde da mulher, esta rede qualificou a atenção a estas populações, que apresentava indicadores de saúde desfavoráveis, necessitando, deste modo, de uma política de atenção direcionada às suas especificidades25.
A assistência à saúde na lógica das redes temáticas está relacionada aos pontos de atenção secundários e terciários e seus serviços especializados. O conceito de pontos de atenção à saúde vem, no contexto da RAS, como estratégia para remodelação dos serviços isolados e fragmentos organizados no até então vigente modelo piramidal, indicando o interesse na atenção integrada promovida pelas redes temáticas26.
No entanto, a continuidade do cuidado ainda apresenta fragilidade, especialmente em relação aos fluxos descontínuos de referência e contrarreferência27-28, pouca articulação dos pontos de atenção especializados com a APS e raros processos efetivos de contrarreferência28-29. Nesse sentido, vislumbra-se espaço de atuação do enfermeiro de ligação como estratégia para superação da fragilidade na integração entre os serviços de saúde e promoção da continuidade do cuidado na rede de saúde. Em serviços de saúde que visam à melhoria da comunicação e do planejamento de cuidados entre os pontos de atenção, é possível promover a atuação deste profissional como responsável pelo gerenciamento da informação e coordenação de cuidados e serviços. Esta tem sido uma estratégia aplicada para alcance da integralidade e continuidade do vínculo nos fluxos do usuário pelo sistema em outros contextos, a exemplo de países como Canadá, Espanha e Portugal, e tem obtido resultados exitosos no que tange à continuidade do cuidado em pontos de transição, com foco na transição do ambiente hospitalar à APS, momento sensível à descontinuidade do cuidado 4,30-31.
A Classe 2 comportou-se como complementar à Classe 3, indicando a associação entre as redes temáticas e sua orientação pela APS. A atribuição da APS como coordenadora do cuidado inclui a organização da prestação do cuidado ao paciente, gerenciando os recursos e dispositivos para distribuição da atenção entre os prestadores. A ausência ou incipiência desta coordenação pressupõe dificuldade no acesso e na continuidade do cuidado, desperdício de recursos financeiros, duplicação de serviços especializados e má qualidade da atenção2,4. No entanto, esta problemática não se restringe à realidade brasileira. Estudo realizado em dez países sobre a longitudinalidade do cuidado na percepção de médicos da APS avaliou como desfavoráveis a comunicação com os demais prestadores de serviços e a coordenação do cuidado pela APS, caracterizando-se como um dos principais entraves em sistemas de saúde do mundo todo2.
Diante do exposto, a integração horizontal e vertical das RAS depende diretamente de mecanismos de comunicação eficientes32. A transferência limitada de informação entre os pontos de atenção configura importante limitação para a coordenação do cuidado, dificultando o acompanhamento do paciente e prejudicando em muitos momentos seu acesso ao diagnóstico final e tratamento5. No entanto, os resultados do estudo não apresentaram avanços no que tange aos sistemas de apoio técnico e logísticos das RAS, sendo destacada a imaturidade da implantação destas ferramentas no SUS.
Por fim, a última classe apresentou a necessidade de formação profissional orientada aos pressupostos da RAS, destacando que os recursos humanos representam elemento fundamental para a organização e desempenho satisfatório da rede de saúde. Nesse sentido, os profissionais devem ser capacitados e motivados a trabalhar como protagonistas no serviço, visando à qualidade e aperfeiçoamento das redes. Estudo de caso realizado nas redes de atenção à saúde do Brasil e Colômbia apontou a fragilidade do treinamento profissional de acordo com o modelo de atenção, tanto em relação aos profissionais da APS como nos demais níveis de atenção5.
Além disso, o modelo de contratação temporária e a carga horária reduzida influenciam na rotatividade profissional e criação de vínculos com a população, respectivamente, e comprometem a longitudinalidade da atenção e continuidade do cuidado, indicando a necessidade de uma política de valorização profissional e de fortalecimento dos vínculos com a APS, o que demanda eficiência e esforço dos gestores5,20. Também é importante potencializar a comunicação entre os profissionais, oportunizando trocas de conhecimento e fortalecendo vínculos de colaboração e trabalho em equipe5.
É importante pontuar que o uso do software não substituiu a análise e as inferências dos pesquisadores em relação aos resultados. A partir da análise por CHD, os autores definiram a nomenclatura das classes e apresentaram inferências sobre as relações sugeridas pelo programa, com base na literatura e no conhecimento prévio sobre a temática.
Como limitações deste estudo, deve-se considerar o fato de não ter sido acessado o texto completo das teses e dissertações, restringindo-se a análise aos resumos disponibilizados no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES. Também é importante ponderar que o período em análise contempla o auge da estruturação e implantação das RAS, uma vez que, em geral, foram analisadas dissertações iniciadas a partir de 2012 e teses, de 2013. Assim, novos estudos devem ser realizados buscando acompanhar as tendências da produção do conhecimento acerca da temática em voga, bem como os desdobramentos teórico-práticos das investigações que já foram realizadas e/ou estão sendo desenvolvidas.
Foram identificadas tendências da produção do conhecimento no âmbito acadêmico, no Brasil, em relação à investigação do modelo de atenção à saúde e aos componentes da estrutura operacional: APS como ordenadora da rede e demais níveis. A formação dos profissionais para atuação em rede, incluindo formação acadêmica e a educação permanente em saúde, com foco para a gestão das RAS, também se apresentaram como tendência.
Considerando os elementos constituintes das RAS, foram identificadas como lacunas a serem exploradas em futuros estudos os componentes da estrutura operacional: sistemas logísticos, sistemas de apoio técnico e diagnóstico e sistema de governança, além da formação profissional orientada aos pressupostos da RAS, com destaque à integração entre os serviços e continuidade do cuidado. Desse modo, pontua-se a necessidade de novos estudos para explorar os avanços alcançados e lacunas ainda existentes em cada das categorias apresentadas no presente estudo.