versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.31 supl.1 Rio de Janeiro nov. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00085614
A formação da comunidade e identidade homossexual/gay nos grandes centros urbanos no Brasil aconteceu dentro do contexto histórico das mudanças sociais, econômicas e políticas, que configuraram a transição demográfica, que iniciou na década de 1950 no Brasil 1,2. Porém, o processo de migração dos homossexuais para grandes centros urbanos nesse período teve outras motivações, para além da econômica que marcou a migração da população geral, entre elas, a busca por um distanciamento da vigilância da família e repressão social, anonimato, sociabilidade homossexual/gay e liberdade sexual 3,4,5,6.
A “abertura política” entre as décadas de 1970 e 1980 3,4, período de intensificação da luta pelos direitos sexuais e uma maior visibilidade do mundo homossexual, também influenciou a migração de homossexuais para as grandes cidades, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro, onde aumentaram os “guetos” de circulação e sociabilidade homossexual/gay 3,4,5. Esse movimento possibilitou uma maior visibilidade da identidade e cultura homossexual 3,4,5,6. Além das conquistas das últimas décadas, houve o estabelecimento de políticas públicas com ênfase nos Direitos Humanos 7,8. Por outro lado, essa visibilidade trouxe consequências como: o estigma, a discriminação e a violência que marcam diariamente a vida de muitos homossexuais brasileiros 9,10, inclusive nos grandes centros urbanos, numa sociedade que ao longo de décadas se mostra intolerante com a homossexualidade 10,11.
Contudo, as dificuldades da vida nos grandes centros urbanos, como a baixa qualidade dos serviços de transporte, segurança, educação, saúde, entre outras, alcançam todos os seus habitantes 1,2, logo, a população dos homens que fazem sexo com homens (HSH), sejam homossexuais/gays assumidos ou homens com identidade heterossexual que têm práticas homoeróticas, experimentam esta realidade. Além disso, nas grandes cidades, muitas áreas são marcadas pela ausência do poder público, configurando desta forma uma vulnerabilidade social inerente ao processo mais amplo de urbanização que o país experimentou desde a metade do Século XX 1,2.
A saúde urbana é um ramo da saúde coletiva que estuda os fatores de riscos das cidades e seus efeitos sobre a saúde e as relações sociais urbanas 1,2. Nesse contexto, a formação de redes sociais em comunidades, como forma de apoio e fortalecimento local, mostra a importância destas estruturas no contexto da saúde das populações nos grandes centros urbanos. Assim, entender o papel dessas redes, sua influência e relação com questões de saúde são um grande desafio na saúde pública 2.
Como em outros contextos, na sociabilidade homossexual/gay as redes sociais aparecem como forma de apoio aos indivíduos, existindo diferentes tipos de “redes” (amizade, movimento civil, culturais e sexuais) 3,4,5,6,12. Essas redes podem oferecer, além de uma possibilidade de socialização, atividades homoeróticas, mas também uma mobilidade e suporte social 2,3,4,5,12. Segundo alguns pesquisadores, essas redes se ramificam, se sobrepõem e se intersecionam, proporcionando uma interação entre indivíduos de diferentes classes sociais, origens e áreas da cidade, via intensa mobilidade: centro-periferia, regiões metropolitanas, interior-capital, cidades pequenas-grandes e grandes regiões do país 3,4,5,12.
A organização das relações sociais em redes sociais é objeto de pesquisa desde a década de 1930 nas ciências sociais 13. Já na Física, a teoria das redes foi sistematizada e apresentada na década de 1950 14, e tem avançado ao longo dos anos com a identificação de diferentes padrões destas estruturas 15. Desde as Redes Aleatórias (RA) 14, passando pelas Redes Pequeno Mundo (RP) 16 até as Redes Livre de Escala (LE) 17, identificadas no final da década de 1990, pesquisadores reuniram um conjunto de teorias que possibilitam conhecer as características dos diferentes tipos de redes e entender seu funcionamento, com suas potencialidades e vulnerabilidades 15,18.
Hoje é amplamente aceito que os humanos estão conectados numa grande rede de relações sociais 13,15,16,17. Nesse conjunto de relações, as pessoas estão conectadas aos amigos e familiares por laços fortes ou estreitos, e conectados por laços fracos (de forma indireta) aos amigos dos nossos amigos (conhecidos, parentes distantes, antigos colegas e vizinhos não amigos) 15,16. Considerando essa configuração de relações, em média, os seres humanos estão separados uns dos outros por seis graus, ou seja, seis pessoas, porém de maneira mais intensa estas influências ocorrem a três graus de distância (Lei dos Três Graus) 15. E, recentemente, estudos analisaram as redes de contato sexual de HSH no contexto das infecções sexualmente transmissíveis (IST) e do HIV 19. A importância dessas redes se dá, sobretudo, devido ao potencial de circulação de agentes infecciosos, cuja transmissão pode ser rápida em grandes redes de relacionamento sexual, quando diante de práticas sexuais de risco, como o sexo desprotegido, principalmente se ocorrer entre indivíduos soro discordantes 19.
Como em outras populações, os HSH estão conectados via diferentes redes sociais (amigos, parceiros sexuais, frequentadores de locais de sociabilidade gay públicos e privados) 3,4,5,6,12. Mas também há conexões com uma parcela de homens que se identificam como heterossexuais, mesmo tendo práticas homoeróticas e sexuais com outros homens 3,4,5,6,12. Dessa forma, é difícil operacionalizar um mapeamento ou cadastro dos indivíduos HSH e uma amostra aleatória, seja por razões relacionadas a estigmas, discriminação, criminalização de suas práticas sexuais, bem como a diversidade de lugares de sociabilidade e circulação.
Considerando aspectos da saúde das populações urbanas e da população dos HSH, este estudo pretende: (1) Investigar a estrutura da rede de relacionamento dos amigos mais próximos e de parceiros sexuais da população de HSH estudada; (2) Analisar a relação entre o número de conexões dos participantes da pesquisa (grau) com o número de parceiros sexuais, e também com algumas características sociodemográficas, numa amostra de HSH da terceira maior cidade do Brasil 20. A cidade de Salvador, Estado da Bahia, como outros grandes centros urbanos no país, apresenta grande desigualdade social e ocupa a 383ª posição do IDH-M do país 21, impactando a saúde das suas populações 22, principalmente aquelas em contextos de maior vulnerabilidade 1,2.
Salvador foi um dos sítios do inquérito comportamental e biológico Comportamento, Atitudes, Práticas e Prevalência de HIV e Sífilis entre Homens que Fazem Sexo com Homens em 10 Cidades Brasileiras23, realizado no período de outubro de 2008 a outubro de 2009. Nessa pesquisa, considerando todos os municípios, selecionou-se um total de 3.859 HSH 23, utilizando-se a técnica de recrutamento denominada Respondent Driven Sampling (RDS) 24, uma variante da técnica de amostragem de redes “Bola de Neve” 25 em que participantes escolhidos (sementes) dão início a um recrutamento seriado formando cadeias de recrutamento (recrutador-recrutado). O RDS seleciona uma amostra da rede de relacionamento dos recrutadores, sendo indicada para acessar populações de difícil acesso como usuários de drogas, trabalhadores sexuais e HSH 26. No RDS, algumas restrições são impostas na seleção de participantes, seja por questões éticas, operacionais ou ainda para atender algum critério de inclusão ou exclusão de interesse da pesquisa. Neste trabalho, as restrições foram: cada recrutador indicou até três outros HSH da sua rede pessoal de relacionamentos para participarem do estudo, com idade igual ou superior a 18 anos, com relato de pelo menos uma relação sexual com outro homem no último ano e com uma ampla rede pessoal de relacionamento com outros HSH 23,27.
O trabalho iniciou com a realização de grupos focais com HSH de diferentes classes sociais, idades e identidade sexual, no sentido de identificar junto à população do estudo suas preferências por local de pesquisa e tipo de ressarcimento, além de selecionar alguns HSH com ampla rede de relacionamento pessoal e que concordassem em ser “sementes” do trabalho, isto é, dar início ao recrutamento de outros HSH. As “sementes” e os demais participantes receberam três convites numerados e com data de validade para distribuir entre os HSH da sua rede de relações pessoais (amigos e parceiros sexuais). Em Salvador, foram recrutados 394 HSH, dos quais 383 homens atenderam aos critérios de inclusão e compuseram a amostra final do trabalho 27 (Figura 1).
As variáveis utilizadas na descrição do processo de recrutamento RDS foram: (1) Tamanho da rede geral de relacionamento pessoal dos participantes identificado pela pergunta: Quantos homens você conhece e que também conhecem você, que você acha que fazem sexo com outros homens, e que moram em Salvador?; (2) Tamanho da rede de maiores de 18 anos de idade identificado por meio da pergunta: Desses homens que você mencionou, quantos têm 18 anos ou mais?; (3) Tamanho da rede dos HSH mais próximos identificado pela pergunta: Quantos desses homens com 18 anos ou mais você encontrou ou falou pessoalmente, por telefone ou internet nos últimos dois meses?; (4) Tamanho da Rede de Amigos (RPA) identificado por meio da pergunta: Desses homens que fazem sexo com homens, que têm 18 anos ou mais e que você encontrou ou falou nos últimos dois meses, quantos você convidaria para participar deste estudo?, esta variável foi utilizada como estimativa do grau (número de conexões na rede de cada participante ou grau autorrelatado); (5) Tamanho da Rede de Parceiros Sexuais (RPS) identificado pela pergunta: Desses homens que você disse que encontrou ou falou nos últimos dois meses e que convidaria para participar do estudo, com quantos deles você já teve relações sexuais, ou seja, fez sexo oral (pênis na boca) ou anal (pênis no ânus)?, esta variável foi utilizada para estimar o grau do HSH que teve parceiros sexuais dentro da rede de amigos mais próximos (grau sexual autorrelatado); e (6) Identificação das conexões entre os participantes da rede pessoal de relacionamento por meio da pergunta: Desses homens que você disse que encontrou ou falou nos últimos dois meses e que convidaria para participar do estudo, quantos você acha que se conhecem entre si?, esta variável foi utilizada como número de conexões ou arestas (aresta autorrelatada) das redes RPA e RPS 27.
As variáveis sobre práticas sexuais de risco para infecção por HIV foram identificadas pelas perguntas: (1) Com quantos/as parceiros/as você teve relação sexual nos últimos 6 meses (quantos/as parceiros/as sexuais você teve, ou seja, pessoas com quem você fez sexo oral, vaginal ou anal)?; (2) Desses, quantos eram homens?; (3) Com quantos/as parceiros/as casuais você teve relação sexual nos últimos 6 meses?; (4) Desses, quantos eram homens?; 5) Com quantos/as parceiros/as fixos você teve relação sexual nos últimos 6 meses?; (6) Desses, quantos eram homens?; (7) Com quantos/as parceiros/as comerciais você teve relação sexual nos últimos seis meses?; (8) Desses, quantos eram homens? As variáveis sociais e demográficas selecionadas foram: renda familiar mensal; anos de estudos, idade, categoria sexual (HSH – heterossexuais, bissexuais, homossexuais/gays) e locais gays frequentados para busca de parceiros sexuais 27. A infecção por HIV foi identificada pelo teste rápido (Rapid Check HIV-1&2 e Bio-Manguinhos HIV-1&2) 23,27.
As variáveis contínuas foram analisadas com base na média, mediana, quartis, outros percentis e desvio padrão, bem como análise gráfica dos histogramas e box-plots. As correlações entre as variáveis numéricas e relato do grau (conexão com amigos e parceiros sexuais), número de parceiros sexuais homens, total de parceiros sexuais (homens, mulheres e travestis), idade, anos de estudos e renda familiar foram medidas valendo-se do coeficiente de correlação de Spearman 28,29. A normalidade dos dados foi verificada usando-se o teste Shapiro-Wilks 28,29. Todos os testes estatísticos utilizaram o nível de significância de 5% e foram realizados com o programa STATA, versão 10.0 (StataCorp., College Station, Estados Unidos). Para as análises das redes RPA e RPS foram utilizados os relatos como estimativa do grau dos HSH e suas arestas, conforme descrito anteriormente. Com esses dados, foram calculados: o grau médio dos participantes e o coeficiente de aglomeração geral 30,31. Esse coeficiente fornece uma aproximação para a probabilidade de dois vértices quaisquer, vizinhos de um nó em comum, estarem conectados entre si. Quanto maior o “C”, mais aglomerada a rede, ou seja, as ligações tendem a formar um único grande bloco contendo um grande número de indivíduos conectados. Isso indica que um grande número de indivíduos vizinhos na rede, sem conexão direta, também está conectado, porém via outras relações 30.
Para classificar as redes deste estudo, utilizamos a técnica indicada na literatura, e realizamos simulação de uma RA com os parâmetros relatados pelos participantes para as redes RPA e RPS, além de calcular o caminho mínimo médio (CMM), coeficiente de centralidade por aproximação e intermediação 30,31. Em seguida, foi analisada a relação entre o grau relatado (X) e suas respectivas probabilidades, neste caso calculado com a aproximação da frequência relativa (P(X=k) = número de ocorrência de vértices com grau k dividido número total de vértices da rede 29.
Para a identificação da distribuição dos graus e para verificar se esta distribuição era análoga a uma Lei de Potência, ou seja, se P(X) = constante (X)-λ, em que X é o grau da unidade observada na rede 32, avaliaram-se os seguintes itens: (1) A magnitude do coeficiente λ da Lei de Potência P(X) = constante (X)-λ, em que λ deve ser maior que dois; (2) Relação (se era linear ou não) entre o logaritmo do grau e o logaritmo da probabilidade do grau (gráfico LogP(X) x Log(X)), que retira o efeito de escala do grau observado; (3) A ordem de grandeza do grau (acima de 1.000 unidades); e (4) Similaridade da distribuição de P(X) = C(X)-λ com a distribuição dos graus (X) relatados 32,33. Em caso de todos os itens serem atendidos, considera-se que a distribuição dos graus segue a Lei de Potência, caso contrário, classifica-se como uma distribuição de “Calda Larga” 33.
Para testar a concordância entre distribuições de probabilidades observadas e a Lei de Potência, utilizou-se o teste de Kolmogorov-Smirnov para uma amostra, que verifica a aderência entre a distribuição de um conjunto de dados da amostra com uma distribuição especificada 28. Optou-se por retirar o valor extremo de parceiros sexuais (3.650 HSH) do conjunto dos graus relatados, visto ser muito discrepante dos valores típicos e dos encontrados na literatura, sendo pouco plausível uma pessoa ter uma rede de amigos próximos acima de 500 indivíduos 15,34,35,36.
Os seguintes programas foram utilizados nas análises, nas simulações e na apresentação das redes: Pajek 2.04 e 3.09 (http://pajek.imfm.si) e Gephi 0.8.2 beta (Graph Visualization and Manipulation software: http://www.gephi.com.br) – formatação gráfica e cálculos dos coeficientes das RA. O protocolo de pesquisa foi conduzido de acordo com os critérios éticos da Declaração de Helsinki e atendeu às exigências da Resolução no196/96 do Conselho Nacional de Saúde. O projeto foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética e Pesquisa do Ministério da Saúde (CONEP) (protocolo no 14494) e pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (protocolo no 241/2008).
Os HSH tinham, em média, 11 anos de estudos, 25 anos de idade e renda familiar de R$ 1.733,00 (Tabela 1). Foram classificados como homossexuais ou gays 49% dos HSH, e indicaram os seguintes locais onde circularam nos 30 dias anteriores à entrevista para buscar parceiros sexuais: bares (12%), boates (14%), casa de amigos (12%), uso da Internet (12%), festas (8%), saunas (5%), cinemas (4%) e banheiros de “pegação” (2%).
Tabela 1 Análise descritiva das características dos participantes da pesquisa.
Rede de recrutamento RDS | n | Média | Mediana | Mínimo | Máximo |
---|---|---|---|---|---|
Fatores demográficos | |||||
Anos de estudos | 382 | 11,4 | 11 | 1 | 22 |
Renda familiar (R$) | 271 | 1.733 | 1.000 | 0 | 60.000 |
Idade | 382 | 25,3 | 24 | 18 | 53 |
Recrutamento | |||||
Quantos homens você conhece e que também conhecem você, que você acha que fazem sexo com outros homens e que moram em Salvador? | 383 | 133 | 30 | 1 | 5.000 |
Desses homens que você mencionou, quantos têm 18 anos ou mais? | 381 | 98,5 | 25 | 1 | 3.700 |
Quantos desses homens com 18 anos ou mais você encontrou ou falou pessoalmente, por telefone ou internet nos últimos dois meses? | 379 | 38,1 | 10 | 1 | 3.650 |
Desses homens que fazem sexo com homens, que têm 18 anos ou mais e que você encontrou ou falou nos últimos dois meses, quantos você convidaria para participar deste estudo? | 374 | 27,8 | 8 | 1 | 3.650 |
Desses homens que você disse que encontrou ou falou nos últimos dois meses e que convidaria para participar do estudo, com quantos você já teve relações sexuais? | 374 | 5,3 | 1 | 0 | 200 |
Desses homens que você disse que encontrou ou falou nos últimos dois meses e que convidaria para participar do estudo, quantos você acha que se conhecem entre si? | 369 | 11,9 | 5 | 0 | 200 |
Nos últimos dois meses, quantas vezes você viu a pessoa que deu (vendeu/trocou) o convite para você participar do estudo? | 380 | 26,9 | 20 | 0 | 100 |
Comportamento sexual (seis meses antes da entrevista) | |||||
Com quantos/as parceiros/as você teve relação sexual? | 362 * | 8,2 | 3 | 1 | 451 |
Quantos desses parceiros eram homens? | 342 * | 7,5 | 3 | 1 | 450 |
Com quantos/as parceiros/as fixos/as você teve relação sexual? | 241 | 1,3 | 1 | 1 | 5 |
Quantos desses parceiros fixos eram homens? | 197 | 1,2 | 1 | 1 | 5 |
Com quantos/as parceiros/as casuais você teve relação sexual? | 284 | 6,2 | 2 | 1 | 150 |
Quantos desses parceiros casuais eram homens? | 253 | 6,0 | 1 | 1 | 150 |
Com quantos/as parceiros/as comerciais você teve relação sexual? | 68 | 13,1 | 2 | 1 | 451 |
Quantos desses parceiros comerciais eram homens? | 62 | 12,9 | 2 | 1 | 450 |
* Total de participantes que tiveram algum tipo de parceiro sexual (fixo, casual ou comercial). A quantidade dos demais tipos de parceiros está inserida neste grupo.
As cadeias de recrutamento dos participantes tiveram 18 sementes que recrutaram 394 HSH, sendo que destes, 11 HSH não atenderam aos critérios de inclusão e foram excluídos das análises. Quatro sementes tiveram maior sucesso no recrutamento de 12, 48, 58 e 235 participantes, respectivamente, com a formação das cadeias de recrutamentos (Figura 1).
Os participantes informaram conhecer, em média, 133 outros HSH que também moravam em Salvador, porém a distribuição foi muito assimétrica com uma mediana de 30 HSH. Já para a quantidade de HSH mais próximos, ou seja, que estiveram em contato recente nos dois meses anteriores à entrevista, a média foi de 38 HSH, distribuição igualmente assimétrica, com uma mediana de 10 HSH. Ao restringir um pouco mais para os HSH mais próximos, que os participantes convidariam para participar do estudo, a média diminuiu para 18 HSH, com mediana de oito HSH (Tabela 1).
Entre os HSH da rede pessoal de relacionamento dos recrutadores estão conectados entre si, em média, 12 HSH, e 50% dos indivíduos conhecem até cinco outros HSH dentro da mesma rede. Além disso, os participantes mantiveram relações sexuais, em média, com cinco HSH, e 50% dos entrevistados tiveram relações sexuais com pelo menos um HSH da sua rede pessoal de relacionamento (Tabela 1).
Nos seis meses anteriores à participação na pesquisa, o número médio de parceiros sexuais foi de oito pessoas (homens, mulheres e travestis). Considerando-se somente os parceiros homens, a média foi de 7,5 parceiros. Para parceiros fixos (homens, mulheres e travestis) a média foi de um parceiro, e para as parcerias sexuais casuais (homens, mulheres e travestis) a média foi de seis parceiros/as; média similar foi estimada para parceiros casuais homens no mesmo período. A idade do início da vida sexual foi, em média, aos 14,7 anos (Tabela 1).
O coeficiente de correlação entre a magnitude das conexões dos participantes (grau relatado) na RPA e as seguintes covariáveis foi estatisticamente significante: o número total de parceiros sexuais (homens, mulheres e travestis) (0,20; p = 0,0002); o número de parceiros sexuais homens (0,23; p = 0,0000); o número total de parceiros sexuais casuais (homens, mulheres e travestis) (0,23; p = 0,0001); e o número de parceiros sexuais casuais homens (0,20; p = 0,0017). Os coeficientes de correlação entre o grau relatado na RPS e as covariáveis a seguir descritas apresentaram significância estatística: número total de parceiros sexuais (homens, mulheres e travestis) (0,33; p = 0,0000); número de parceiros sexuais homens (0,36; p = 0,0000); número de parceiros sexuais fixos homens (0,18; p = 0,0143); número total de parceiros sexuais casuais (homens, mulheres e travestis) (0,28; p = 0,0000); e número de parceiros sexuais casuais homens (0,26; p = 0,0000).
A correlação entre o grau relatado da RPA e os fatores sociodemográficos mostrou significância estatística para: idade do participante (0,18; p = 0,0008), renda familiar (0,22; p = 0,0004) e anos de estudos (0,33; p = 0,0000). Para a RPS os fatores foram os mesmos da RPA: idade (0,12; p = 0,0173), renda familiar (0,13; p = 0,0361) e anos de estudos (0,20; p = 0,0001).
Na análise da RPA que considerou os HSH que os participantes convidariam a participar do estudo encontramos um coeficiente geral de aglomeração (C) igual a 0,09, e para a RP simulada este coeficiente foi de 0,07, enquanto que para a RA simulada obteve-se C = 0,02. O teste estatístico de normalidade (teste Shapiro-Wilk) para a distribuição do grau relatado das redes avaliadas mostrou que estes graus não seguem a distribuição teórica normal. A correlação entre os graus relatados e suas respectivas probabilidades na rede RPA mostrou-se estatisticamente significante (-0,39 e p = 0,0000). A função matemática que descreve tal relação é P(X) = 0,15X-, em que P(X) indica a probabilidade de um vértice da rede (HSH) com grau X ocorrer na rede analisada. Ao retirar-se o efeito da escala, a relação manteve-se significativa (Figura 2a). Porém, o teste de aderência de Kolmogorov-Smirnov mostrou que as referidas distribuições de probabilidade observadas na amostra (aproximada pela frequência relativa) e a probabilidade descrita pela relação anterior são diferentes, assim não confirmando que a distribuição do grau relatado segue uma distribuição da Lei de Potência para a RPA.
Figure 2 Relação direta (2a) e sem efeito de escala (2b) entre os graus autorrelatados e suas respectivas probabilidades.
Na RPS, formada somente pelos parceiros sexuais dos participantes, encontrou-se um C de 1,0. Para a RP simulada, C foi de 0,07 e para a RA simulada C foi 0,01 (Tabela 2). A análise da correlação entre os graus relatados e suas respectivas probabilidades na RPS mostrou que houve significância estatística (-0,96; p = 0,0000). A análise da distribuição do grau relatado não confirmou uma distribuição normal. A equação que descreve a relação do grau relatado e suas probabilidades é P(X) = 0,15X-, e mesmo com a retirada do efeito de escala, a relação manteve-se significativa (Figura 2b). O teste de Kolmogorov-Smirnov apresentou evidências de que a distribuição de probabilidade observada e a probabilidade descrita pela relação P(X) são diferentes, confirmando que a tal distribuição de graus não segue uma Lei de Potência.
Tabela 2 Estatísticas para a análise da estrutura das redes.
Rede | n | M (arestas) | L * | C **,*** | C geral | k # | Mo ## | Teste de normalidade ### | Distribuição dos graus § |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Cadeias de recrutamento RDS (383,2) | 383 | 365 | 11,3 | 0,00 | - | 1,9 | 0,9 | - | - |
Estrutura da Rede (383,2) | 383 | 370 | 7,4 | 0,01 | - | 1,9 | 0,8 | - | - |
Rede de base: autorrelato rede 60 dias | 383 | 12 §§ | - | - | 0,01 | 38 | - | Normalidade rejeitada | Qualquer |
Estrutura da Rede §§§ (383,38, p = 38/383 = 0,099) | 383 | 7.342 | 2,2 | 0,05 | - | 38,3 | 0,1 | - | Normal |
Rede amigos que convidaria para estudo (RPA) | 383 | 12 §§ | - | - | 0,09 | 18 | - | Normalidade rejeitada | Qualquer |
Estrutura da Rede §§§ (383,18, p = 18/383 = 0,047) | 383 | 3.424 | 2,8 | 0,02 | - | 17,9 | 0,2 | - | Normal |
Rede de parceiros sexuais (RPS) | 383 | 12 §§ | - | - | 1,2 | 5 | - | Normalidade rejeitada | Qualquer |
Estrutura da Rede §§§ (383,5, p = 5/383 = 0,047) | 383 | 971 | 3,1 | 0,01 | - | 5,1 | 0,4 | - | Normal |
Rede Pequeno Mundo simulada † (vértices = 383 e Prob. = 18/383 = 0,05) | 383 | 4.596 | 2,5 | 0,07 | 24 | 0,3 | - | - |
* Caminho médio mínimo; ** Coeficiente de aglomeração; *** Latapy 43 (calculado no Gephi); C geral = Num. Arestas / (k(k-1)); # Grau médio; ## Modularidade; ### Shapiro-Wilk (a = 0,05); § Teste para verificar distribuição Livre Escala (LE): log grau; §§ Homens que fazem sexo com homens que se conhecem entre si na rede (média do valor autorrelatado; §§§ Simulações no Gephi; † Simulação no Pajek.
Nas cadeias de recrutamento de Salvador (Figura 1), o número médio de HSH com quem os entrevistados disseram estar conectados, em sua rede pessoal de relacionamento, mostrou-se elevado (133 HSH) tanto em relação à média apresentada pelo conjunto dos 10 municípios do estudo multicêntrico (85 HSH), bem como em relação ao número médio de conexões reportado por outros estudos em redes de amizade e comportamento sexual 34,35,36,37. Porém esse número está próximo à capacidade humana de se relacionar com outras pessoas numa grande rede social, capacidade esta que é de aproximadamente 150 pessoas 15. Assim, os participantes da pesquisa parecem estar inseridos numa grande rede de relacionamento pessoal de HSH.
No contexto das pesquisas em IST, alguns resultados mostram que, em algumas redes, o número de parceiros sexuais está relacionado a um maior tamanho da rede social dos HSH 19,37, o que também foi verificado neste trabalho, tanto para parceiros casuais como para parceiros fixos. Embora algumas das correlações sejam moderadas, estas foram estatisticamente significativas, indicando que, quanto maior o tamanho do número de conexões dos HSH maior é o número de parceiros sexuais. Além disso, os participantes relataram que tiveram relações sexuais, em média, com cinco dos seus contatos da rede pessoal de relacionamento, o que representa aproximadamente 4% do total de homens desta rede e 18% se considerarmos o número médio de conhecidos mais próximos da rede dos HSH, ou seja, que estiveram em contato nos dois meses anteriores à entrevista. Diante dessa realidade, a preocupação fica direcionada para as práticas sexuais de risco para infecção por IST entre indivíduos com diferentes diagnósticos (positivos e negativos para os agentes infecciosos das IST), numa mesma rede de relacionamento pessoal 19,38,39.
Nessas redes de contato sexual, os agentes infecciosos podem circular rapidamente, considerando que o número elevado de parceiros sexuais pode aumentar a chance de envolvimento em práticas de risco para infecção pelo HIV e IST 35,36,38. Para esse fator, os resultados encontrados na pesquisa entre os HSH soteropolitanos são similares aos encontrados em outras pesquisas RDS 39,40,41 para todos os tipos de parceiros (fixos, casuais e comerciais). Destacamos a correlação positiva entre o número de conexões dos participantes com a idade, a renda e os anos de estudos, indicando que quanto mais velho, com maior renda e maior escolaridade maior a quantidade de conexões (amigos e parceiros sexuais) nas redes estudadas.
Em relação à descrição das redes, a RPA mostrou-se como uma rede que reflete as relações mais próximas, com contato recente, diferentemente da rede mais geral e subjetiva, que mostrou relações mais distantes (conhecidos). Na RPA, a média de conexões caiu de 133 (RPS) para 18 HSH (RPA), semelhante ao encontrado em outras pesquisas 34,35,36,37. O número médio de HSH amigos dos recrutadores foi de 12 HSH, o que reforça a tendência de relações sociais muito próximas entre os indivíduos na rede de amigos. Ainda reforçando essa ideia de proximidade, verificou-se que 50% dos participantes conhecem até cinco dos HSH da rede de amigos do recrutador.
A aglomeração dos HSH nessa rede foi baixa, indicando que os HSH não formam uma rede composta de agrupamentos ou conglomerados entre seus amigos, ou seja, muitos dos amigos do recrutador podem não se conhecer embora façam parte da mesma rede social. A análise de distribuição do grau relatado dos participantes permitiu identificar que apenas 10% dos HSH estão conectados a um grande número de outros HSH, ou seja, conhecem mais de 40 HSH. Por outro lado, existe um número muito maior de participantes (90%) com apenas duas conexões (Figura 2a). Como essa distribuição não se apresentou como uma Lei de Potência, tais informações caracterizam uma distribuição de graus cujo gráfico apresenta uma distribuição com uma “calda” bem comprida devido ao fato de que poucos participantes (cinco HSH) relataram mais de 150 conexões. Esses participantes, segundo análises descritivas, podem ser garotos de programa, o que explica o elevado grau de conexão com outros HSH. A característica da calda da distribuição de graus aproxima-se da distribuição proposta por Resnick 33, descrevendo os Modelos de Calda Larga (Heavy Tail Model), que apesar de terem semelhanças com a Lei de Potência 32, ainda apresentam sensíveis diferenças. Assim, não foi possível confirmar que RPA segue uma estrutura de uma LE 17,18, mesmo com a presença de “conectores” ou “hubs”, ou seja, HSH com um número de conexões acima da média da rede.
A RPS apresentou características similares à RPA, isto é, com características de uma RP, embora com alguns HSH classificados como conectores. Destaca-se que 25% dos entrevistados relataram que tiveram relações sexuais com mais de quatro HSH desta rede e 10% mantiveram relações sexuais com mais de 10 indivíduos desta estrutura. O coeficiente geral de aglomeração foi grande (C = 1,0), muito maior do que aquele da RP simulada (0,07) (Tabela 2), ou seja, nesta rede existe um grande agrupamento de HSH, indicando que indivíduos vizinhos na rede podem ser parceiros sexuais. Assim, os HSH desta rede estão bem conectados em função das parcerias sexuais, formando uma rede compacta e difícil de ser rompida, exceto pela retirada da rede dos poucos HSH conectores ou hubs. Na literatura, outras redes sexuais estudadas também apresentaram tais características de aglomeração e muitas conexões 36,42. A distribuição dos graus relatados segue o mesmo padrão da RPA, com uma calda comprida e sem confirmação do padrão da Lei de Potência.
O que fica evidente nas redes estudadas é a proximidade dos HSH como numa RP. Nesse tipo de estrutura a influência mútua exercida pelos vizinhos pode ser de grande utilidade para ações de prevenção às IST. Também devemos considerar que um número reduzido de HSH apresenta uma quantidade de conexões acima da média da rede, de forma similar aos hubs (conectores) nas LE, e podem fazer a ponte entre muitos indivíduos na rede devido à sua alta conectividade 15,17. Outro indicador é o coeficiente de aglomeração, pequeno na RPA, mas grande na RPS. Assim, se aceitarmos a hipótese de estarmos diante de uma RP, a aglomeração na RPS maior do que a de uma RA com o mesmo número de nós e arestas indica que a difusão de informação/contágio na rede é importante, e pode ocorrer rapidamente, uma vez que C (1,0) é muito maior do que a esperada em um modelo nulo aleatório (0,07) (Tabela 2).
Os resultados encontrados fornecem informações inéditas sobre a estrutura da rede pessoal de relacionamento dos HSH em RPA e RPS, ou seja, mostrou informações sobre a forma como os HSH soteropolitanos estão conectados. E esse conhecimento pode contribuir para o planejamento das estratégias de acesso e ações (prevenção e intervenções em saúde) de forma a focar nos indivíduos “altamente conectados” e com mais “prestígio” na rede, na expectativa de que estes influenciem outros HSH a diminuírem ou abandonarem práticas sexuais mais arriscadas para a infecção por HIV e IST 15,17. Pode-se ainda explorar o potencial de circulação de informações das redes estudadas procurando disseminar informações sobre prevenção 15,16,17, locais onde realizar o teste para o HIV e atenção às IST.
A metodologia RDS pretende acessar indivíduos que fazem parte da rede de relacionamento pessoal dos participantes, quando obedecidos alguns pré-requisitos 24. Porém, alguns desses requisitos, principalmente a seleção aleatória de pessoas da rede pessoal, é difícil de ser atendida. Além disso, não foi possível calcular o caminho mínimo médio das redes, pois não há informação sobre a quantidade de conexões entre HSH selecionados por diferentes recrutadores. No entanto, foi possível fazer uma consistente análise exploratória das redes, com os dados disponíveis: a informação sobre a quantidade de HSH da rede geral que inclui também os parceiros sexuais dos participantes. As informações sobre o tamanho da rede, número de parceiros sexuais na estrutura e número de HSH que se conhecem podem não ser precisas, o que pode enviesar as estimativas dos coeficientes encontrados. A dependência entre as unidades amostradas limita a extrapolação dos resultados encontrados para as correlações entre o tamanho da rede e o número de parceiros sexuais. Apesar disso, este trabalho é importante por apresentar resultados inéditos sobre a estrutura das redes dos HSH num grande centro urbano e pode impulsionar futuras pesquisas que possam fornecer medidas mais precisas das redes de amigos e parceiros sexuais.
As dificuldades de acesso à população dos HSH somam-se às questões relacionadas ao estigma e discriminação social 1,2, além dos demais problemas enfrentados por toda a população nos grandes centros urbanos. Porém, a população dos HSH também tem vulnerabilidade acrescida no contexto das IST e HIV (vulnerabilidade, social, individual e programática) 27. Diante desse cenário adverso, a técnica RDS mostrou ser uma estratégia eficiente e forneceu cadeias de recrutamento que fazem parte da rede de relacionamento pessoal dos HSH (rede social).
As redes capturadas apresentaram estruturas que favorecem a transmissão de agentes das IST e HIV, porém isto pode ser minimizado por fatores não analisados neste trabalho, como estratégias de escolha de parceiros segundo a sorologia HIV, relação sexual sem penetração anal, ou relação anal insertiva, bem como uso do preservativo de forma consistente 19,38,40.
As redes estudadas podem ser exploradas para a disseminação de informações de prevenção da infecção por HIV e outras IST, visto que a proximidade e a similaridade entre os HSH podem favorecer influências de comportamentos e atitudes positivas para a prevenção 16.
A identificação da relação entre tamanho da rede e número de parceiros sexuais confirma a importância do tamanho da rede pessoal no comportamento sexual dos HSH com maiores conexões 19,30,36,37,42.
Na terceira maior cidade do país 20, diante dos diferentes problemas e limitações da vida neste grande centro urbano 22, espera-se que estes resultados sejam utilizados para direcionar as políticas públicas no sentido de possibilitar uma melhor convivência com a diversidade sexual e principalmente equacionar as ações de saúde voltadas para a população dos HSH.