versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.14 no.2 São Paulo abr./jun. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082016ED3725
No último mês de março, diversos especialistas se reuniram em Genebra, em um encontro organizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), para discutir o dramático aumento de casos de infecção pelo Zika vírus nas Américas.(1) Dentre os presentes, destacavam-se virologistas, imunologistas, neurologistas e epidemiologistas, todos muito preocupados em conter a rápida propagação do vírus pelo Brasil e por outros países do continente.
O Zika vírus, outrora um agente ocasional causador de doença em humanos, é responsável por uma atual epidemia brasileira e latino-americana com casos de microcefalia, síndrome de Guillain-Barré, mielites e meningoencefalites,(2,3) a ponto de a OMS ter declarado situação de emergência em saúde pública de interesse internacional.
No entanto, é o contexto particular do aumento de casos de microcefalia(3-7) relacionados à infecção materna pelo Zika que funciona como um excelente modelo para a discussão de diversas questões bioéticas, entre as quais: o dilema do profissional de saúde ao atender uma gestante com feto microcefálico; os princípios de autonomia da mãe e do feto; a discussão sobre a liberação do aborto em casos de malformação fetal (ideia levantada pela Organização Não Governamental - Anis, autora da ação que autorizou, via Supremo Tribunal Federal, a interrupção da gestação em fetos anencéfalos em 2012); os modelos de relação médico-paciente; e a alocação de recursos e igualdade de acesso ao sistema de saúde.
Na bioética, não existem verdades absolutas e imutáveis, mas uma série de conceitos e um conjunto de ações, que visam identificar e auxiliar na resolução dos inúmeros dilemas éticos que surgem diariamente no cuidado com o paciente.
Para tanto, consideramos o contexto em si (o dilema ético) e seus fatores agravantes e atenuantes antes de se tomar uma decisão, que, muitas vezes, não é a ideal, mas que, para aquele caso, específico parece ser a mais adequada.
A abordagem bioética requer uma atitude contínua, tanto em nossa atividade médica, como em nossa postura como cidadão. Muitas vezes tais papéis se superpõem, como no caso de mulheres que nos questionam sobre a infecção pelo Zika vírus. Nessas situações, não basta apenas discutir sobre um eventual adiamento de uma gravidez, por vezes tão desejada, mas, em ocorrendo a gravidez, discutir as questões relacionadas ao risco de nascimento de uma criança com microcefalia.
Hoje em dia, parece ser mais fácil discutir o adiamento da gravidez. Com o descontrole da epidemia e as notícias que nos chegam, parece uma atitude sensata, mas é inegável que estaremos interferindo na liberdade de decisão da futura mãe.
Obstetras e infectologistas são capazes de avaliar o risco estatístico de aparecimento de uma malformação fetal, que geralmente é considerado remoto e ocasional, e que não costuma influenciar na decisão de engravidar. Mas, e o risco atual de aparecimento de microcefalia?
É sabido que casos gerais de microcefalia relacionados a outros fatores, tão ou mais prevalentes que o Zika vírus, continuam a ocorrer, como alcoolismo, diabetes gestacional mal controlado e outras infecções perinatais, como toxoplasmose, rubéola, citomegalovirose e sífilis.
Entretanto, desde novembro de 2015, a relação temporal entre a epidemia de Zika e o alarmante aumento da prevalência de microcefalia indicava uma forte relação entre os eventos. A confirmação da presença do vírus no líquido amniótico de duas grávidas do estado da Paraíba (Brasil),(4,5) que tiveram clínica compatível com Zika e deram à luz a crianças microcefálicas, e a identificação do vírus em amostras de tecidos de crianças que nasceram com microcefalia(6) levaram o Ministério da Saúde a confirmar a relação entre o vírus e a microcefalia,(7) o que tem causado muita preocupação às gestantes desde então.
Oficialmente, o Ministério da Saúde reforça às gestantes que façam um pré-natal qualificado, realizando os exames previstos, e que relatem a seus médicos quaisquer alterações clínicas, além de continuar com as medidas de prevenção ao Aedes aegypti (uso de mangas compridas, repelentes, mosquiteiros e eliminação de criadouros). Antes de viajar às áreas de risco, as grávidas devem consultar seu médico.
Aos profissionais de saúde, a recomendação do Ministério da Saúde faz menção à avaliação cuidadosa do perímetro cefálico e à idade gestacional durante o pré-natal, assim como a notificação dos casos suspeitos de microcefalia no momento do nascimento. Por estarem constantemente em contato com a população, os profissionais de saúde devem reforçar as medidas de combate à proliferação do mosquito.
Mas, em época de consulta com o “Dr. Google”, os fatos podem ser um pouco mais conflitantes. O Centers for Disease Control (CDC), em boletim publicado no último dia 11 de março, recomenda que mulheres grávidas adiem viagens para áreas onde a transmissão do Zika vírus esteja ocorrendo,(8) posição semelhante à da diretora geral da OMS.
Mais polêmico que postergar uma viagem é discutir se mulheres que vivem em áreas com epidemia de Zika devem adiar a gravidez, por vezes tão intensamente planejada. Um cenário é protelar a gravidez aos 25 anos, outro totalmente diferente é abordar o assunto com uma mulher com mais de 40 anos (lembre-se que resolução recente do Conselho Federal de Medicina liberou mulheres com mais de 50 anos para fazer tratamento de inseminação artificial sem autorização da entidade).
Quem nos garante que tal epidemia irá passar em breve? Recentemente, o CDC emitiu orientações recomendando que homens e mulheres que tenham contraído Zika esperem antes de ter filhos. Segundo a agência norte-americana, as mulheres devem esperar pelo menos 8 semanas após o início dos sintomas antes de tentar engravidar. Para os homens a recomendação é de pelo menos 6 meses.(9)
No caso de exposição a áreas de risco onde circula o Zika, a recomendação para tentar a concepção é de 8 semanas. Tais orientações se baseiam em dados limitados sobre a permanência do vírus no sangue e no sêmen. Até agora não há evidências de que um feto gerado após o desaparecimento do vírus da corrente sanguínea tenha risco de desenvolver a infecção.(9)
Alguns estudiosos brasileiros lembram que tais recomendações do CDC se aplicam ao contexto norte-americano, onde não ocorreu uma epidemia, podendo servir como margem de segurança para as pessoas diagnosticadas com Zika daqui em diante. Um ponto de concordância entre os cientistas brasileiros e o CDC é que decisões sobre o momento de engravidar são pessoais, complexas e devem ser individualizadas caso a caso, contando com a orientação de um obstetra.
O certo é que a análise dos dados da literatura indica que o número de notificações de casos de microcefalia em crianças nascidas de gestantes com infecção por Zika vírus no Brasil aumentou mais de 20 vezes se comparado a notificações de anos anteriores.(2,4)
Desde o início das investigações pelo Ministério da Saúde, em outubro do ano passado, foram 7.150 notificações até 16 de abril de 2016. Dos casos já finalizados, foram descartados 2.241 e confirmados 1.168 casos de microcefalias e outras alterações do sistema nervoso sugestivos de infecção congênita.(10) Permanecem em investigação 3.741 casos.
Dos 1.168 casos, 192 já tiveram confirmação laboratorial para Zika vírus. Entretanto, o próprio Ministério da Saúde ressalta que tal dado não representa adequadamente a totalidade do número de casos relacionados ao vírus, considerando que houve infecção pelo Zika vírus na maior parte das mães que tiveram bebês nascidos com microcefalia.(10)
Até 16 de abril, foram registrados 246 óbitos fetal ou neonatal (3,4% do total dos casos notificados) suspeitos de microcefalia e/ou alteração do sistema nervoso central após o parto ou durante a gestação (aborto ou natimorto). Em 51 casos, a microcefalia foi confirmada. Outros 165 casos continuam em investigação, sendo que 30 foram descartados.(10)
É certo que a maioria das grávidas expostas ao Zika vírus dá à luz a bebês sem microcefalia, mas o risco real de ocorrência de malformações ainda gera informações conflitantes, mesmo na literatura médica.
A análise de dados do surto de Zika vírus que atingiu a Polinésia Francesa entre 2013 e 2014 sugeriu um risco de ocorrência de microcefalia de cerca de 1% nos casos em que a infecção ocorreu no primeiro trimestre da gravidez,(11) ou seja, menor que o risco de microcefalia associada a outras infecções congênitas como citomegalovírus e rubéola.
Já Kleber de Oliveira et al.(6) relataram prevalência de microcefalia significativamente maior (2,8 versus 0,6 casos de microcefalia por 10 mil nascidos vivos) nos Estados brasileiros onde ocorre transmissão ativa de Zika.(6) O recém-publicado estudo de coorte do grupo carioca de Brasil et al.(12) incluiu 88 grávidas com pelo menos 5 dias de rash cutâneo pruriginoso. Em 72 mulheres (82%), foi confirmada infecção pelo Zika vírus, que pode ter ocorrido entre a 5a e a 38a semana de gestação.
O aspecto mais preocupante deste estudo foi mostrar que 29% das ultrassonografias obstétricas realizadas em 42 gestantes com teste positivo para Zika (58%) mostraram anormalidades muito importantes como retardo de crescimento intraútero com ou sem microcefalia, calcificações ventriculares, oligodrâmnio e alterações de fluxo arterial, além de dois óbitos fetais.(12)
Apesar da comunidade médica ter caminhado bastante em tão pouco tempo em relação à infecção pelo Zika vírus, faltam estudos para responder uma série de questionamentos, entre eles a taxa de transmissão vertical e a de fetos infectados que manifestam as complicações.(13,14)
Em abril de 2016, o CDC, partindo de uma rigorosa revisão das evidências científicas existentes até então, confirmou a relação entre o Zika vírus e a ocorrência de microcefalia, imputando ao vírus os danos cerebrais identificados nos fetos.(3)
E, obviamente, toda essa insegurança em gerar crianças com microcefalia reacendeu o polêmico debate sobre o direito da mulher em relação ao seu próprio corpo e, por conseguinte, ao aborto.
Como lidar com o nascimento de uma criança com microcefalia grave? Qual o impacto futuro dessa sequela? Haverá condições de inclusão plena dessa criança na sociedade? A mãe teria o direito de abortar?
Essa mãe, sob forte impacto emocional e, muitas vezes, abandonada pelo companheiro, está apta a exercer sua autonomia? E a autonomia da criança, pela qual ela é a responsável?
O princípio do respeito à autonomia constitui uma das quatro premissas fundamentais da bioética proposta por Beauchamp et al.,(15) além da beneficência, da não maleficência e da justiça.
Porém não é de estranhar que um olhar bioético sobre um assunto tão complexo possa enveredar para abordagens distintas. Outro pensador da bioética, Lévinas,(16) propõe o modelo da alteridade, ou seja, “colocar o outro no lugar do ser” conforme define o Professor José Roberto Goldim.(17) Isso significa, então, falar de valores.(18)
Lévinas(16) inverte a história de “agir frente ao outro como gostaria de ser tratado”. É a descoberta do outro que impõe a conduta adequada. Deixa de ter sentido a história de que “a liberdade de um termina quando começa a do outro”. Passa a valer a proposta de que “minha liberdade é garantida pela liberdade dos outros”.(17)
Neste contexto de valores individuais de cada paciente, muitas vezes distintos dos nossos próprios valores, deve-se sempre respeitar as opiniões das gestantes que, por conta de suas crenças, são contrárias à interrupção da gestação, tanto quanto respeitar as opiniões daquelas grávidas que têm visões distintas.
Como embasamento para a tomada de decisões bioéticas recomenda-se ampla avaliação e conhecimento do ordenamento que dá suporte ético e legal à conduta do médico, destacando-se: o código de Ética Médica, que norteia os princípios fundamentais da medicina, incluindo os direitos dos médicos, a responsabilidade profissional, a relação com pacientes e familiares, entre outros temas; o Código Civil Brasileiro, que norteia os princípios que regulam as relações jurídicas entre as pessoas em todas suas nuances; e o Código Penal, que define o que é considerado crime e quais as responsabilidades dos cidadãos.
Nunca é demais lembrar que as consequências de uma microcefalia são mais devastadoras nas parcelas mais carentes da população. Não apenas pela falta de acesso dessas crianças às terapias necessárias no futuro (fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional), mas também porque a interrupção de uma gravidez indesejada em condições socioeconômicas desfavoráveis costuma cursar com alto índice de morbimortalidade materna.
E o que falar das legiões de meninas jovens pobres e solteiras, vivendo em áreas de risco, que não sabem e/ou não conseguem prevenir as gestações indesejadas, muito menos planejar as gestações desejadas, e tornam-se vítimas das próprias gestações, do Aedes aegypti, do Zika vírus e da microcefalia de seus bebês?
Nas palavras do professor Segre(19) “o conflito interno de um profissional de saúde diante de um doente terminal, face à perspectiva de um aborto desejado pela mãe, ou então quanto à preservação de uma confidencialidade profissional de saúde em situações de risco para terceiros, é próprio dele, profissional, ainda antes de qualquer lei.”