versão impressa ISSN 0101-2800
J. Bras. Nefrol. vol.36 no.1 São Paulo jan./mar. 2014
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20140004
O fluxo retrógrado de urina, da bexiga para o trato urinário superior, é um evento anormal no ser humano, conhecido como refluxo vesicoureteral (RVU). É resultante de uma deficiência anatômica intrínseca da junção ureterovesical, ou da elevação anormal da pressão vesical, devido à obstrução vesico uretral mecânica ou disfuncional.1 Esta afecção é um distúrbio autossômico dominante. A prevalência de RVU em pacientes portadores de infecções do trato urinário varia de 20% a 60% nos diversos estudos.2 Entre 1950 e 1970, foram realizados vários trabalhos, em crianças aparentemente normais, para estabelecer a prevalência de RVU, sendo encontrados valores entre 0,4% a 1,8%.3 Em 2000, Sargent publicou os resultados da revisão de mais de 250 artigos que mencionavam os achados de cistouretrografia miccional (UCM) realizadas com diferentes indicações.4 Em crianças normais, diagnosticou-se RVU em 9% e em crianças com ITU, em 31%. A doença do refluxo vesicoureteral é dividida em graus, de acordo com o International Reflux Study Committe:5
Grau I: refluxo alcança somente o ureter;
Grau II: alcança ureter e pelve, mas não causa dilatação;
Grau III: causa dilatação leve;
Grau IV: causa dilatação moderada, fórnices arredondados;
Grau V: dilatação grave, ureter tortuoso, papilas obliteradas.
O RVU primário é uma das malformações mais comuns do trato urinário, sendo em geral congênito e, por definição, sem associações com fenômenos obstrutivos, neurológicos ou vasculares.2,6 Durante a micção, em condições normais, há oclusão da porção intramural do ureter em função da contratura do músculo detrusor. Nessa afecção, há falha nessa oclusão e o mecanismo de válvula antirrefluxo não se estabelece.7 Percebem-se, também, outros dois aspectos: conforme o grau de RVU aumenta, a possibilidade de resolução diminui e quanto mais jovem o paciente, menor a tendência a persistência do RVU primário devido à maturação e alongamento da junção ureterovesical durante o seu crescimento.3,8 A associação de RVU com ITU em crianças pode acarretar dano renal permanente, denominado nefropatia do refluxo (NR), decorrente da ascensão de bactérias ao trato urinário superior, com perda focal ou difusa, irreversível, do parênquima renal.9 Alguns fatores, além do RVU, são de risco para o desenvolvimento de cicatrizes renais em crianças com ITU febril como: demora em iniciar a antibioticoterapia, primeiro episódio de ITU febril com tenra idade, ITU febris recorrentes, obstruções urinárias e síndrome de disfunção das eliminações (micção e evacuação).10,11
A prevenção do dano renal pode ser realizada com utilização de antimicrobianos ou com tratamento cirúrgico. A profilaxia com o uso de antibióticos tem o objetivo de manter doses dos mesmos na bexiga suficientes para impedir a multiplicação bacteriana no trato urinário. Alguns inconvenientes do uso prolongado de antibióticos são baixa adesão e presença de efeitos colaterais. O risco de efeitos colaterais é de 8%-10%, sendo a maioria de baixa gravidade, como náuseas, vômitos e reações cutâneas; contudo, aumenta a possibilidade de resistência antimicrobiana da flora intestinal e orofaríngea.12 As indicações de profilaxia medicamentosa, pela Sociedade Brasileira de Pediatria, são para todas as crianças com RVU até seu desaparecimento - espontâneo ou por realização da correção cirúrgica - ou até completar 5 anos de idade. O tratamento cirúrgico pode ser realizado com diversas técnicas, e, atualmente, o índice de sucesso atinge 98%, independentemente da técnica utilizada. A ITU, após o tratamento cirúrgico, pode ocorrer mesmo com a cura do RVU, porém, deve ser avaliada para excluir a possibilidade de refluxo contralateral, que pode ocorrer em até 18% dos casos.13,14 A indicação de cirurgia restringe-se a alguns casos e depende do grau do RVU, pielonefrite de repetição decorrente de baixa adesão à quimioprofilaxia; anomalias associadas ureterovesicais - duplicidades pieloureterais, ectopias ureterais ou sáculas paraureterais; e refluxo persistente em meninas após a puberdade (maior risco de pielonefrite na gestação).15
Muitos estudos têm demonstrado que em boa parte dos casos de RVU não há real necessidade de tratamento cirúrgico. Em estudo com 214 crianças até 15 anos, ocorre desaparecimento de refluxos grau I a III de 13% ao ano e de graus IV e V, em média 5% ao ano.16 Outro estudo evidenciou desaparecimento progressivo do refluxo de graus III e IV, submetidos ao tratamento clínico e importante diminuição da intensidade do RVU.17 A cura espontânea e a longo prazo do refluxo é de aproximadamente 40%. O tratamento clínico ou cirúrgico não altera a evolução natural da lesão renal no local previamente acometido, mas pode prevenir lesões futuras.18 Desse modo, a abordagem cirúrgica é recomendada somente para crianças com ITU de repetição apesar de tratamento clínico e para aquelas que não possuem condições mínimas de seguimento ambulatorial.
O objetivo deste trabalho foi estudar a evolução de refluxos vesicoureterais primários associados a quadros de infecções no trato urinário, em pacientes do serviço de Nefrologia Pediátrica da Unifesp/EPM, fazendo uma análise a fim de avaliar os casos nos quais houve cura espontânea e aqueles nos quais foi necessária a intervenção cirúrgica ou clínica, e discutir potenciais fenômenos relacionados a isso.
Realizou-se um levantamento de dados, nos arquivos do Ambulatório da Disciplina de Nefrologia Pediátrica do Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina-UNIFESP, São Paulo, SP, Brasil, de pacientes atendidos de 1998 a 2009 e que apresentaram ou apresentavam infecção do trato urinário associada ao diagnóstico de refluxo vesicoureteral primário. Após verificação das informações e triagem dos que se adequam aos pré-requisitos, foi feito o estudo dos casos desses pacientes, a fim de avaliarem-se as evoluções distintas que eles apresentaram (os que se curaram espontaneamente durante o uso de antibioticoprofilaxia e os que precisaram ser submetidos à intervenção cirúrgica) e os potenciais fatores implicados na tomada de tais condutas.
Pacientes com refluxo vesicoureteral primário diagnosticado por meio de UCM, acompanhados de infecção do trato urinário de repetição.
Pacientes com sintomas de infecção urinária não confirmados por urocultura, sem seguimento adequado da antibioticoprofilaxia proposta pelo médico, com causas especifícas que tornariam o refluxo secundário, com disfunção miccional relacionada à síndrome de eliminações.
Em um grupo de 35 pacientes analisamos:
Padrão de incidência de RVU nos diferentes sexos;
Médias de idade do primeiro episódio de ITU;
Média de idade de diagnóstico de RVU;
Relação entre o grau de RVU e o número de ITU confirmada por urocultura positiva;
Relação entre o grau de RVU e as diferentes condutas tomadas;
Fatores relacionados ao aparecimento de cicatrizes renais e a implicação desse fenômeno nas diferentes condutas;
Relação entre o número de infecções nas crianças e o tempo de antibioticoprofilaxia ao qual foram submetidas e as diferentes evoluções;
Relação entre a presença de outras malformações do trato urinário e a evolução dos pacientes;
Causas relacionadas às diferentes condutas apresentadas.
Todos os pacientes listados com infecção do trato urinário neste estudo tinham urocultura de urina de jato médio comprobatória.
Os dados dos prontuários que entraram para estudo foram implementados em um banco de dados usando os recursos do MS-Excel. A Análise estatística foi de natureza descritiva e realizada com o programa SPSS. As variáveis qualitativas foram tabuladas calculando-se as frequências observadas e relativas de interesse. A representação das distribuições de frequências, em alguns casos, foi realizada por meio de gráficos de barras. No caso das variáveis quantitativas, procedeu-se com cálculos de estatística descritiva, como média, mediana, medida de dispersão e erro padrão das respostas.
Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética da nossa instituição.
Foram analisados prontuários de crianças, com Refluxo Vesico Ureteral, cuja manifestação sentinela era a recorrência de infecções do trato urinário (ITU), encaminhadas ao ambulatório de Nefrologia Pediátrica da UNIFESP. Foram avaliados 39 pacientes, sendo que quatro foram excluídos, dois por má adesão a profilaxia antimicrobiana e dois por não terem registros de urocultura confirmando algumas das infecções urinárias levantadas. Não tivemos nenhum paciente com RVU grau I.
Evidenciou-se que em 65,7% dos casos (23/35) o acometimento era do sexo feminino, contra 34,3% do sexo masculino (12/35). Evidenciou-se que tanto o diagnóstico de RVU quanto a manifestação do primeiro episódio de ITU são mais precoces no sexo masculino, ainda que não tenha havido significância estatística (qui quadrado = 0,26), como mostra a Tabela 1. A média das idades de diagnóstico do 1º episódio de ITU nos meninos foi de 23,3 meses e nas meninas de 42,4 meses; enquanto as idades médias de diagnóstico do RVU foram de 64,7 meses para aqueles e 101,9 para estas.
Tabela 1 Médias de idade do diagnóstico de RVU e do 1º episódio de ITU
Diagnóstico de RVU | 1° episódio de ITU | ||||
---|---|---|---|---|---|
n | Média (meses) | DP | Média (meses) | DP | |
Feminino | 23 | 101,9 | 78,1 | 42,4 | 52,4 |
Masculino | 12 | 64,7 | 113,6 | 23,3 | 46,8 |
Total | 35 | 89,2 | 91,9 | 35,8 | 50,7 |
DP: Desvio Padrão.
Observamos no sexo masculino a evolução para tratamento cirúrgico ocorreu na maioria dos casos, ao contrário do observado dentre o sexo feminino, sem significância estatística (qui quadrado = 0,47).
Foi observado em 28,6% (10/35) dos casos RVU no lado direito e em 40% (14/35), no lado esquerdo. O número de crianças com RVU bilateral foi de 11 (31,4%). Para a avaliação do grau de RVU, foi totalizado um n = 46 (24 unilaterais e 22 bilaterais). Para fins de avaliação clínica, nesses casos de RVU bilateral, foi considerado o lado de maior grau.
Notou-se uma relação direta entre o maior grau de RVU e a tendência de evolução para tratamento cirúrgico, como mostrado no Gráfico 1, embora isso não tenha atingido significância estatística (qui quadrado = 0,18). Dentre os 19 pacientes submetidos a tratamento cirúrgico, três fizeram nefrectomia e 16, reimplante ureteral. A frequência de aparecimento dos diferentes graus de RVU neste estudo é apresentada na Tabela 2. Não tivemos dentre nossos pacientes nenhum com RVU grau I.
Tabela 2 Frequências dos diferentes graus de RVU no estudo
Frequência | Porcentagem | |
---|---|---|
Grau 2 | 8 | 17,4 |
Grau 3 | 9 | 19,6 |
Grau 4 | 12 | 26,1 |
Grau 5 | 16 | 34,8 |
Total | 46 | 100 |
Observou-se uma incidência maior de infecções por E. coli (em 77% dos casos). Também foram isolados nos pacientes os micro-organismos dos gêneros Proteus, Klebsiella, Enterobacter, Pseudomonas, Acinetobacter e Morganella. Além disso, a incidência de urocultura positiva mostrou-se aumentada nos casos de RVU de maior grau, como mostra a Tabela 3, embora não tenha atingido grau de significância (qui quadrado = 0,62). Esse dado era obtido das uroculturas do último episódio do ITU da criança antes do diagnóstico de RVU, e, portanto, ainda sem uso de antibióticos.
Tabela 3 Relação entre grau de rvu e urocu ltura positiva
Grau | URC Positiva | URC Negativa | Total |
---|---|---|---|
2 | 4 | 2 | 6 |
3 | 3 | 4 | 7 |
4 | 6 | 2 | 8 |
5 | 9 | 5 | 14 |
Total | 22 | 12 | 35 |
Dentre os pacientes com RVU graus IV-V, o tempo de antibioticoprofilaxia foi em média de 13 meses (390,18 dias) e entre aqueles com graus I-II-III, o tempo médio foi de 17,38 meses (521,53 dias). Não houve significância estatística (qui quadrado = 0,17) na relação entre tempo de antibioticoprofilaxia e a conduta. O primeiro subgrupo (graus IV e V) apresentou 67,9% dos casos evoluindo para intervenção cirúrgica e 32,1% evoluindo para resolução mediante tratamento conservador apenas. Já no segundo subgrupo (graus I, II, III), notou-se que 41,2% evoluíram para tratamento cirúrgico, contra 58,8% evoluindo para resolução por meio de conduta conservadora. A relação entre o grau de RVU e a conduta é mostrada no Gráfico 1.
As drogas profiláticas mais utilizadas foram cefalexina e sulfametoxazol-trimetoprim, seguidas por nitrofurantoína e ácido nalidíxico. Além disso, 51,42% dos pacientes fizeram uso de mais de uma droga, não simultaneamente.
Quanto à lateralidade, percebeu-se que em 28,6% dos pacientes o RVU era à direita, em 40%, à esquerda e 31,4% tinham RVU bilateralmente. Notou-se, também, prevalência maior de acometimento bilateral quanto maior o grau de refluxo, como se nota no Gráfico 2. Dentre os pacientes com presença de RVU bilateralmente (11/39), 72,7% (8/11) tiveram evolução cirúrgica e 27,3% (3/11) tiveram resolução do RVU por tratamento conservador.
Percebeu-se, sem significância estatística, que 68,86% dos pacientes com RVU apresentavam outras malformações do trato genitourinário associadas, sendo as mais comuns ureterocele e duplicação pielocalicial. Percebeu-se que uma relação direta entre maiores graus de RVU e maior incidência de infecções do trato urinário, embora sem significância estatística (qui quadrado = 0,17).
Não se observou relação comparando-se puramente o grau de RVU e a presença ou ausência de cicatrizes renais, nem se comparando o número de infecções e a formação de cicatrizes renais. No entanto, evidenciou-se que pacientes com cicatrizes renais tiveram predominantemente evolução cirúrgica, como mostra o Gráfico 3, embora não se tenha obtido significância estatística (qui quadrado = 0,3). Além disso, entre as meninas 43,5% desenvolveram cicatrizes renais e entre os meninos apenas 27,3% tiveram esse acometimento.
O presente estudo descreve o acompanhamento de pacientes encaminhados para o serviço de Nefrologia Pediátrica da UNIFESP/EPM, para investigação de quadros de ITU, e nos quais posteriormente diagnosticou-se RVU. Por se tratar de estudo retrospectivo, e com informações recuperadas de prontuários médicos, algumas limitações são observadas, como a perda de continuidade no acompanhamento em alguns casos e/ou dados incompletos, entre outros; diminuindo, assim, significativamente o número de pacientes com possibilidade de análise. Desse modo, em função de um n pequeno, não obtivemos significância nos testes estatísticos aplicados. No entanto, dentro da nossa amostragem, pudemos corroborar alguns perfis evidenciados na literatura que discorre sobre o tema.
A proporção de acometimento maior no sexo feminino encontrada no nosso estudo está de acordo com os dados da literatura, do mesmo modo que a detecção mais precoce do RVU no sexo masculino. Aproximadamente 80% dos recém-nascidos com RVU são do sexo masculino. No entanto, a literatura mostra que, após os primeiros meses de vida, o sexo feminino passa a apresentar incidência aumentada e supera a do masculino em uma proporção de 4:12.19,20 Esta variação sugere, portanto, uma gênese multifatorial do RVU, pois, ainda que seja considerado congênito em recém nascidos, ele também pode ser adquirido, principalmente nas meninas, provavelmente por disfunção vesical.21-23
A abordagem do RVU por estudos clínicos e experimentais tem ganhado representatividade nas últimas três décadas. Em função disso, alguns avanços têm sido obtidos no reconhecimento da história natural da doença e na bem estabelecida tendência à resolução espontânea do refluxo, demonstrada em 45,7% de nossa série.24 Em pacientes com RVU diagnosticado no pré-natal, essa tendência à resolução espontânea é ainda maior, desde que também considerada a gravidade do acometimento.25
As porcentagens que se referem à evolução cirúrgica e conservadora são próximas, com uma pequena preponderância para a conduta cirúrgica. Isso pode ser explicado pelo fato de esse estudo incluir apenas pacientes de um serviço de referência terciário, que em geral apresentam outros agravantes em seu quadro clínico que possam justificar a escolha de tal intervenção. A realização de cirurgia depende de outros fatores, além do grau de RVU, como idade, adesão ao tratamento clínico e presença de outras anormalidades anatômicas que dificultem a cura espontânea, tais como duplicidade ureteral e divertículo para ureteral,26,27 as quais foram frequentes em nossos estudos. No nosso serviço, iniciamos antibioticoprofilaxia em todos aqueles pacientes diagnosticados com RVU e acompanhamos sua evolução. Para aqueles que evoluem mantendo ITU de repetição, passam a apresentar evidências de cicatrizes renais ou pioram função renal, é feita então a indicação de intervenção cirúrgica, a fim de minimizar uma possível evolução para doença renal crônica.28
Segundo Edwards et al.,29 há proporcionalidade inversa entre a resolução espontânea do RVU e a gravidade do refluxo, como evidenciamos no nosso estudo. Em outro estudo,30 realizado na Universidade do Texas, observou-se que pacientes com RVU grau I ou II (baixo grau) apresentavam 80% de resolução espontânea em 5 anos. Revisão de 26 estudos, somando 1.987 pacientes, relacionou o grau do RVU com as taxas de resolução espontânea, também corroborando a ideia de que os de mais alto grau geralmente serão os que evoluirão com necessidade de intervenção cirúrgica.31 Assim, os pacientes com baixo grau de refluxo são acompanhados clinicamente, esperando essa evolução, e os de alto grau são tratados cirurgicamente, em concordância com a conduta adotada em nossos casos.
Nosso estudo não evidenciou a já estabelecida relação32 entre maior grau de RVU e associação a cicatrizes renais. Isso pode ter ocorrido em função da pequena amostragem de casos que possuímos ou em função de um diagnóstico e intervenção cirúrgica precoce nos altos graus de RVU, antes do desenvolvimento dessas cicatrizes.
Do grupo de crianças com RVU, 37,2% apresentaram lesão renal reforçando a necessidade de investigação e acompanhamento dos pacientes com ITU. Essas crianças com cicatrizes renais foram mais submetidas à intervenção cirúrgica do que aquelas sem cicatriz. Insuficiência renal crônica e hipertensão arterial sistêmica - que não foram alvo de investigação neste trabalho - podem ser decorrentes de lesões renais graves, e podem ser evitadas com diagnóstico e tratamento precoces.33
Nosso estudo mostrou relação entre o maior grau de RVU e maior incidência de ITUs. Contudo, não foi evidenciada relação entre o número de ITUs e a formação de cicatrizes renais. A literatura apresenta opiniões bastante contraditórias em relação à ITU na gênese das lesões renais. Alguns autores defendem o refluxo como ator exclusivo na formação das lesões corticocapilares, enquanto que, para outros, só o refluxo de urina infectada é nocivo.34 Enquanto essa divergência se mantém, realizamos quimioprofilaxia para todos os pacientes com RVU ou em investigação.
É suposto que pacientes que evoluíram para intervenção cirúrgica apresentaram menor tempo de antibioticoprofilaxia, provavelmente em função da indicação cirúrgica precoce, devido a outros fatores, como idade ao diagnóstico, presença de cicatrizes e/ou má evolução clínica.
Muito tem se discutido sobre a este tema. A American Academy of Pediatrics apresentou recentemente um novo guideline para diagnóstico e manejo das crianças de 2 meses a 2 anos de idade com ITUs de repetição e RVU, baseado em meta-análise que não detectou benefício estatisticamente significante na antibioticoprofilaxia para prevenir ITUs febris de repetição em crianças com RVU graus I a IV e não teve dados suficientes para avaliar essa profilaxia em RVU grau V.35 Há pouco tempo, também, o NICE (National Institute for Health and Care Excellence) reforçou em seu guideline para infecções do trato urinário em crianças, a necessidade de estudos melhor desenhados, duplo-cego randomizados e placebo controlados, afim de se determinar a efetividade tanto da antibioticoprofilaxia, quanto das diferentes formas de abordagem cirúrgica nos pacientes com RVU, para prevenir as ITUs recorrentes e as cicatrizes renais.36
Ainda que não seja o foco deste trabalho e tenhamos excluído os pacientes com esse tipo de disfunção micccional, cabe lembrar os casos de refluxo vesico-ureteral e infecções urinárias de repetição secundários à síndrome de disfunção de eliminações, na qual os pacientes apresentam o quadro urinário associado à dificuldade evacuatória (escape fecal, incontinência fecal). Para esses pacientes, o tratamento segue uma linha que, além da profilaxia, baseia-se também em medidas dietéticas (maior consumo de fibras e líquidos) e comportamentais para constipação, apoio psicossocial e técnicas de biofeedback e eletroestimulação.37
O estudo mostrou que os pacientes com RVU de baixo grau e ITU de repetição tendem à resolução espontânea do refluxo, com boa evolução renal a longo prazo, de forma que a indicação cirúrgica fica reservada aos RVUs de alto grau ou com outras complicações clínicas.
O diagnóstico de RVU e a manifestação do primeiro episódio de ITU foram mais precoces no sexo masculino (x2 = 0,26).
Não tivemos neste estudo pacientes com RVU grau I. No grupo estudo, tivemos uma porcentagem maior de pacientes com maiores graus de RVU.
Nota-se uma maior prevalência de uroculturas positivas nos casos de RVU de maior grau, como mostra a Tabela 3 (x2 = 0,62).