versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.6 Rio de Janeiro jun. 2019 Epub 27-Jun-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018246.08612019
A saúde pública brasileira se inspirou no modelo de saúde inglês National Health Service (NHS), originado em 1948 na Grã-Bretanha, baseado nos princípios da universalidade, integralidade, equidade e gratuidade. O NHS estruturou seu modelo em atenção primária, secundária e hospitalar no intuito de ser mais célere e eficaz ao usuário. Contudo, sempre usou como foco o médico como o responsável pelos pacientes oriundos da sua região. O foco nos médicos se deu com o intuito de criar uma ligação entre estes e pacientes para absorver a demanda, podendo assim rastrear e qualificar aqueles a serem encaminhados à atenção secundária e hospitalar, garantindo o acesso equânime a toda a população1.
Em Brasília, na década de 1960, houve a construção de um Sistema de Saúde que possuía uma abordagem transversal centrada no cuidado como o modelo inglês. Contudo, há de se considerar que a evolução histórica do SUS e o respectivo contexto econômico e demográfico em que esteve inserido, acompanhados dos fluxos migratórios trouxeram uma mudança do perfil do uso no sistema de saúde. Esta utilização passou de uma cobertura vinculada ao financiamento estatal e patronal para o sistema universal de saúde2.
Nessa égide, a evolução do sistema de saúde no Distrito Federal conduziu à criação da Fundação Hospitalar do Distrito Federal, desencadeando a fragmentação das unidades básicas de saúde e o fortalecimento de um sistema de saúde hospitalar2.
O modelo de saúde centrado portanto na prestação de serviço de saúde através de um ponto de atendimento focal, com pouca ou nenhuma integração à rede de serviços de saúde, e tampouco com a atenção primária a saúde, ganhou robustez na execução e solidez na contratação no que corresponde ao modelo público de pagamento por evento de atenção, ou também chamado fee-for-service.
Tal modelo não visa enxergar o paciente de forma integral, mas é centrado no sinistro da doença, o que traz consigo o risco adicional da realização de procedimentos desnecessários e um custo mais elevado ao sistema, uma vez que o pagamento do prestador de serviço é contabilizado por número de procedimentos realizados3,4.
Em contrapartida, modelos alternativos, como o bundled service ou “pacotes de serviço”, surgem em outras localidades como opção ao fee-for-service no final do século XX. Esses modelos permitem a padronização do serviço a partir de protocolos clínicos, apoiados em medicina baseada em evidência e com uma visão integral do paciente e de seu processo de saúde e doença, tornando possível racionalizar custos, bem como conduzir uma abordagem do cuidado sob um prisma de coordenação de cuidado4.
Somadas a essa discussão de modelos de entrega de valor no sistema de saúde, aconteceu um acelerado avanço tecnológico na área médica ao longo do século 20, bem como o surgimento do modelo biopsicossocial de saúde que, segundo Engel, parte do princípio de que a forma com que é feita a abordagem ao paciente, bem como seus aspectos culturais, são fatores que interferem na maneira com que o profissional de saúde avalia o paciente e consequentemente realiza o diagnóstico de forma mais humanizada5,6.
As discussões acerca da humanização da medicina culminaram na proposta de atenção à saúde centrada no paciente, no cuidado à saúde baseado em valor, no que foi chamado de novo método clínico. A prestação do cuidado tem por objetivo, agora, entender as necessidades e desejos do paciente, sem se restringir somente à doença7,8.
O cuidado à saúde passa agora a exigir uma relação horizontal na busca por informações coerentes e preexistentes dentro da rede, como conhecimentos e tecnologias advindos de um modo de produzir saúde que visa a alcançar soluções coesas dentro do contexto proposto9. Tal produção ocorre na medida em que se desenvolve um processo de trabalho integrado pelos saberes das diversas especialidades e profissionais, no que é considerado matriciamento10.
O planejamento dos serviços de saúde, a partir daqui, deve ter então um outro olhar; uma vez que a intervenção é realizada agora sob a perspectiva da compreensão do cotidiano do paciente e não apenas como fruto de livre demanda por procura do serviço de saúde em um ponto de atenção isolado da rede de saúde11. A partir da execução desse planejamento é possível aumentar a adesão do paciente ao tratamento, bem como a satisfação da relação médico-paciente, tornando o usuário corresponsável pelo seu tratamento, melhorando a resposta terapêutica, além de diminuir os encaminhamentos a subespecialistas12,13.
Portanto nesse novo modelo de assistência, o racional hospitalocêntrico diminui muito seu papel; uma vez que o modelo poliárquico de organização em redes rompe as relações verticais hierárquicas e rígidas para serem construídas relações horizontais que possibilitem uma visão sistêmica da rede de saúde14,15.
Tendo visto esses pressupostos, o objetivo deste trabalho foi descrever a experiência de reforma do modelo assistencial da Rede de Hospitais Públicos do Distrito Federal, sob os moldes da atenção à saúde centrada na pessoa, com a saúde baseada em valor.
A reforma no sistema Hospitalar do Distrito Federal foi realizada por meio de um conjunto normativo encaminhado a partir da autoria e/ou colaboração das áreas ligadas à Coordenação de Atenção Especializada à Saúde através das instâncias competentes na Secretária de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF).
Para a restruturação dos processos de trabalho das Unidades Hospitalares da SES-DF foi publicado um conjunto de 5 portarias no âmbito da SESDF, enquanto que para as alterações de estrutura que garantiram a adequada governança no novo modelo foram publicados 3 Decretos Governamentais, contendo as alterações de estrutura e atribuições na Administração Central da Secretária de Saúde, pertinentes às mudanças de atribuições e nova modelagem dos processos de trabalho.
As alterações normativas tiveram abrangência nos 15 hospitais da Rede de Serviços locais e respeitaram um fluxo de construção, que teve início com a redação da primeira versão de minuta pela área técnica, seguindo as demais instâncias colegiadas para ser publicada, passando pelo Colegiado de Atenção à Saúde, sendo que antes da deliberação do Secretário de Saúde passaram pelo Colegiado de Gestão da SESDF, instância com poderes de colegiado bipartite no Distrito Federal.
A redação das primeiras versões das minutas e decretos foram feitas pelos setores responsáveis por cada assunto específico por meio de extensa revisão de literatura e da legislação, a fim de garantir que a normatização respeitasse o princípio da Gestão Baseada em Evidência.
Uma vez publicadas, a implementação das normas foi fomentada através da realização de oficinas e debates em reuniões colegiadas nos mais diferentes níveis de atenção da SESDF, de maneira a garantir a efetiva implementação nos meses subsequentes com a sua publicação.
O hospital é um ponto focal de atenção fundamental para a Rede de Atenção à Saúde, pois apoia processos assistenciais desde o nascimento até a morte16. Segundo a Política Nacional de Atenção Hospitalar (PNHOSP), no âmbito do Sistema Único de Saúde17, o conceito de atenção hospitalar perpassa pela visão que se tem dos hospitais, como unidades com densidade tecnológica específica, que exigem assistência contínua em regime de internação, com forte caráter multiprofissional e interdisciplinar.
O foco operacional do hospital tem maior relevância quando mantido em 3 cenários, a emergência com pertinência, o centro cirúrgico e a internação, em regime de terapia intensiva ou leito geral, desde que sob o panorama da transição de cuidado.
As ações que trouxeram esse novo paradigma encontram-se representadas no Quadro 1.
Quadro 1 Conjunto normativo de alteração dos processo de trabalho na Atenção Hospitalar do Distrito Federal.
Norma | Assunto |
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Portaria Nº 386, de 27 de julho de 2017 | Organiza o Componente Hospitalar da Rede de Atenção às Urgências no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) do Distrito Federal. |
Portaria Nº 408, de 03 de agosto de 2017 | Disciplina o funcionamento e estrutura de serviços das Gerências de Emergência dos hospitais da Rede de Atenção à Saúde do Distrito Federal. |
Portaria Nº 773, de 19 de julho de 2018 | Estabelece diretrizes e normas para a organização da Atenção Ambulatorial Secundária. |
Portaria Nº 1357, de 06 de dezembro de 2018 | Estabelece diretrizes e normas para a organização da Atenção Hospitalar no Âmbito da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). |
Portaria Nº 1388, de 12 de dezembro de 2018 | Estabelece a Política Distrital de Regulação do acesso aos serviços públicos de saúde no Distrito Federal. |
A reforma do sistema de saúde do Distrito federal teve no componente hospitalar seu início marcado pela mudança do modelo de atenção na urgência e emergência.
As emergências do Brasil têm em sua história a construção de um processo de trabalho que guarda vinculação direta com o modelo epidemiológico que antecedeu o presente momento. Em uma sociedade onde a busca de serviços de saúde era marcada por eventos pontuais como as doenças infecciosas e fortemente calcados na atividade ambulatorial, construiu ao longo de anos processos de trabalho que atendiam a população em pontos focais com associação de valor agregado vinculado a superespecialização do demandado.
Ou seja, as emergências no antigo modelo clínico se assemelham a imensos ambulatórios com agendas abertas, que atendem a livre demanda na tentativa de resolver muitos problemas que poderiam ser resolvidos em estruturas com densidade tecnológica menor, de maneira programada, sem o custo de manutenção de uma escala de serviço ininterrupto.
As portarias 386 e 408 (Quadro 1) transformam os antigos Pronto Socorros no que deveriam ser os Serviços Hospitalares de Emergência (SHE) como determina o Conselho Federal de Medicina em sua resolução18.
Passamos aqui de um serviço ambulatorial de conveniência e organizado por especialidades focais de maneira fragmentada, no qual cada necessidade do paciente associada ao seu agravo agudo provocava a mudança de atendimento para uma outra especialidade, para um modelo focado em 4 grandes áreas de atendimento, Medicina de Emergência, Emergência Pediátrica, Ginecologia e Obstetrícia e Cirurgia do Trauma.
As áreas de especialidade focal passam a ter um papel de interconsulta de maneira que os casos são conduzidos por um dos médicos das quatro áreas respectivamente; sem fragmentação e com enfoque no manejo do paciente durante o período exclusivo até a tomada de decisão clinica.
A separação entre o serviço de Clínica Médica e Medicina de Emergência permitiu aqui que os pacientes internados, ainda que permanecendo fisicamente dentro dos SHE, passassem a ter o atendimento por outra equipe, mantendo os emergencistas dedicados à recepção de novos pacientes admitidos na unidade de emergência dentro das primeiras 24 horas apenas.
Mudança semelhante ocorreu também com a proposta entre as áreas de Emergência Pediátrica e Pediatria, Ginecologia e Obstetrícia e Emergência Obstétrica, e Cirurgia do Trauma e Cirurgia Geral.
Foram mantidas as especialidades de Ortopedia e Traumatologia além da Oftalmologia com a perspectiva de atendimento por livre demanda, respeitado um viés de transição do modelo, sendo que para todas as demais especialidades o fluxo obrigatoriamente deve ocorrer apenas por meio de solicitação de interconsulta a partir de uma das quatro áreas de atendimento na emergência.
De forma consoante à transformação nos SHE ocorreu a mudança na atenção ambulatorial especializada.
Com a efetiva mudança da atenção primária no DF, surgiu a exigência da organização do nível de atenção secundário de forma a garantir o suporte de matriciamento necessário ao novo modelo de saúde com foco na coordenação do cuidado, na transversalidade e na resolutividade.
A Atenção Ambulatorial Especializada, que na grande maioria das regiões de saúde era realizada em hospitais e sob um regime de governança clinica vinculada diretamente ao hospital, passou a ter a autonomia necessária para construir uma trajetória própria dentro do sistema de saúde em rede. Cabe ressaltar que o projeto recebeu grande apoio do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) dentro da estratégia do modelo de planificação da saúde.
O conjunto de realizações da Atenção Secundária no Distrito Federal tem como dois grandes marcos normativos as portarias 773/2018 (Quadro 1) e os Decretos 38.982 e 39.546, ambos também de 2018 (Quadro 2).
Quadro 2 Conjunto normativo de alteração de estrutura da Administração Central da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal para mudança de governança nos processos de trabalho da Atenção Hospitalar do Distrito Federal.
Norma | Assunto |
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Decreto nº 38.488, de 13 de setembro de 2017 | Cria a estrutura do Complexo Regulador em Saúde do Distrito Federal, como autoridade sanitária para a regulação de todos os serviços de saúde no âmbito do SUS do Distrito Federal; |
Decreto Nº 38.982, de 10 de abril de 2018 | Altera a estrutura administrativa da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal e cria o nível de atenção secundária à saúde; |
Decreto Nº 39.546, de 19 de dezembro de 2018 | Aprova o Regimento Interno da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal. |
Tendo estruturados os fluxos para duas das principais demandas dos serviços hospitalares, de maneira a tornar coordenada a ação dos especialistas focais, com a atenção primária e os serviços de emergência, em estruturas direcionadas à integralidade do cuidado dos agravos urgentes com pertinência hospitalar, foi modificada a estrutura de governança desse sistema para um sistema de Rede de Atenção à Saúde.
Cria-se então Complexo Regulador de Saúde do Distrito Federal (CSDF) através do Decreto nº 38.488, de 13 de setembro de 2017 (Quadro 2), com definitivo estabelecimento do processo regulatório a partir da portaria nº 1388/2018 (Quadro 1).
O marco normativo garantiu a modelagem necessária ao Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) com seu posicionamento dentro da estrutura de regulação com a Central de Regulação de Urgências (CERU) responsável pelos fluxos de toda a Rede de Urgência e Emergência, bem como fez com que a regulação dos acessos ambulatoriais à atenção secundária passasse a ser ordenada a partir da Atenção Primária pelas Gerencias de Regulação da Atenção Primária.
Contudo, a despeito dos diversos avanços trazidos pela PNHOSP, a atenção hospitalar ainda caminha em todo país dentro de outro modelo clinico, que não possui correspondência com a rede de serviços em seu planejamento e execução. Assim fez-se necessária a clara definição dos processos a serem executados dentro dos hospitais do DF bem como os eixos envolvendo um novo paradigma de cuidado transversal, longe do modelo de atenção pontual ligada ao fee-for-service, mas direcionado à entrega de valor em saúde ao usuário nos serviços dessas unidades.
Como pontos relevantes dentro de dessa nova abordagem do processo de trabalho, conforme estabelecido pela Portaria nº 1.357, de 06 de dezembro de 2018 (Quadro 1), podemos citar a definição objetiva e para todas unidades da estrutura dos núcleos de qualidade, a transição de cuidados através do ambulatório de egressos e a inserção de maneira integrada às politicas de saúde mental, os ambulatórios dessa área dentro de um papel que atende a rede do hospitalar no sistema de saúde.
A gestão dos componentes de alta complexidade do sistema de saúde precisa ser feita de forma integrada em rede e respeitando a coordenação do cuidado como premissa fundamental para a entrega de valor na saúde à sociedade. Para tanto, o modelo de rede poliárquico precisa superar o modelo hospitalocêntrico.
No entanto o fim do modelo hospitalocêntrico enfrenta diversas barreiras, de ordem cognitiva, tecnológica e até mesmo econômica.
A mudança do paradigma cognitivo se depara com o da formação médica, que ainda persiste em um desfio da compreensão da abordagem em saúde feita por coordenação do cuidado.
Apesar dos avanços provocados pela mudança nos modelos de ensino de graduação no Brasil, com a matriz curricular voltada ao aprendizado com metodologia ativa e distribuição de cenários em rede, a pós-graduação nas áreas de saúde, em especial a médica, enfrenta muitas barreiras19.
A maioria dos profissionais ainda hoje é formada sem o claro entendimento do modelo, uma vez que as escolas médicas têm em sua composição profissionais formados sobre o alicerce pedagógico da pratica clínica de especialidades focais, na qual a fragmentação da atenção e superespecialização são os ativos educacionais a serem adquiridos pelos futuros profissionais em formação. Tal situação, portanto, é insuficiente para garantir ao médico em sua formação inicial as competências, as habilidades, as atitudes, os valores e as emoções necessários à condução do cuidado transversal20.
Outro importante fator que se impõe como desafio à transformação do modelo é o da implantação da tecnologia necessária para a execução das ações em saúde na era da informação.
Nos dias atuais, o fluxo de informações em saúde no sistema de atendimento passou por profundas mudanças, o que antes era restrito, hoje está ao alcance de todos; trabalhadores e usuários do SUS. Dessa maneira, não é mais possível entender o matriciamento da mesma forma que era há 30 anos.
O acesso à informação é mais amplo e permitiu uma alteração da construção lógica do ganho de capital estrutural do sistema de saúde, tendo contribuído para essa mudança as redes sociais e os sítios de busca na rede mundial de computadores21.
Contudo, o acesso à informação em saúde hoje pode ajudar pacientes e profissionais da saúde como também pode trazer confundidores, o que torna a curadoria do conhecimento essencial na construção do conjunto de saberes necessários ao cuidado do paciente22. E essa nova realidade resulta na necessidade de formação de profissionais de saúde que tenham domínio dos conteúdos necessários à população que assistem, bem como o de ferramentas confiáveis para auxiliar de forma correta os pacientes, para que o atendimento em saúde seja efetivo23.
O conceito cristalizado de matriciamento sob a simples ótica de referência e contrarreferência, parte do princípio da existência de um sujeito com conhecimento generalista, com uma imensidão de informações com profundidade muito rasa24.
Contudo à luz dos dias atuais, essa representação é anacrônica; uma vez que a complexidade dos problemas e a incidência de pacientes com demandas múltiplas que precisam ser articuladas por profissionais e pacientes, os quais possuem um acesso ao conteúdo de informação em saúde cada vez mais maior24.
O entendimento moderno de matriciamento deve consistir no suporte realizado por profissionais de diversas áreas especializadas, possibilitando o emprego de maneira dinâmica desse capital estrutural pela equipe interdisciplinar com o intuito de ampliar o campo de atuação e qualificar suas ações13,25.
Deixa de existir, portanto, uma concepção de fluxo unidirecional de informações para a tomada de decisão clínica na condução dos agravos de uma população, e surge a coordenação do cuidado de maneira colaborativa em que cada um dos pontos de atenção do sistema de saúde tem sua contribuição no processo.
Para tal disruptura são necessários: uma base única de registro em saúde com compartilhamento pelos profissionais, como normatizado na portaria nº 1.357, de 06 de dezembro de 2018 (Quadro 1), sob a dinâmica de gestão do conhecimento e na mudança do conceito ideológico da figura do médico especialista.
Nos dias atuais não é possível mais conceber a definição clássica de especialista e generalista, no qual um domina profundamente determinado assunto e o outro tem apenas um conteúdo limitado de informações a respeito de alguns poucos assuntos.
É importante percebermos no contexto atual a figura do que chamamos aqui de especialista multifocal.
O especialista multifocal é o profissional que domina conteúdos mais comuns, com a profundidade necessária ao tratamento, o que é possível graças às ferramentas de acesso à informação que são iguais ou superiores ao de especialistas focais para determinados assuntos. Tal profundidade existe na medida da necessidade em garantir a coordenação do cuidado imprescindível a aquele grupo populacional, podendo contar, se necessário, com o matriciamento feito pelo especialista focal nos casos de apresentação menos usual, sendo resolutivo à medida que gerencia o caso.
Podem ser consideradas especialidades médicas multifocais aquelas cujo objetivo principal se encontra na integralidade e transversalidade do cuidado ao usuário durante o período da sua jornada pelo sistema no qual o usuário permanece aos seus cuidados.
São exemplos de especialidades multifocais: Acupuntura; Clínica médica; Ginecologia e Obstetrícia; Medicina de emergência; Medicina do trabalho; Medicina de tráfego; Medicina esportiva; Medicina física e reabilitação; Medicina intensiva; Medicina legal e perícia médica; Medicina preventiva e social; Pediatria; Administração em saúde; Atendimento ao Queimado; Medicina do adolescente; Medicina do sono; Medicina fetal; Medicina paliativa além da Medicina de Família & Comunidade.
São comuns situações como o atendimento de emergência, a internação em uma unidade de terapia intensiva ou o ato cirúrgico, em que os especialistas multifocais necessitam ter ao seu alcance uma gama imensa de informações para a tomada de decisão, e que muitas vezes fazem interface com diversas outras áreas da denominadas especialidades focais; a semelhança do que pode ocorrer com um Médico de Família & Comunidade em uma consulta ou visita domiciliar por exemplo.
O conflito gerado por essa barreira tecnológica em que o conhecimento ou a informação deixa de ser um ativo escasso na área da saúde e passa à abundância, leva a mais um dilema entre os modelos de assistência, que é o econômico.
O atendimento focal em um ponto de atenção isolado do sistema manteve historicamente a demanda alta com a oferta reduzida para a maioria das especialidades focais, uma vez que diante de uma situação de maior complexidade não se dispunha de ferramentas de acesso à informação o que fazia com que o fluxo de informações no sistema fosse lento e inefetivo na maioria dos casos.
Tal modelo econômico fortalece o pagamento por procedimento (fee-for-service), a medida que o acesso à informação em saúde para tomada de decisão clínica só pode ser obtida mediante consulta, parecer ou laudo emitido por um especialista focal. Isso mantém o custo de tal mão de obra com altíssimo valor agregado, ao passo que estrangula a demanda, pois fragmenta o cuidado e exige do sistema de saúde um número cada vez maior de profissionais.
À medida que prioriza a entrega de serviços em saúde por profissionais multifocais sob o novo paradigma de gestão do conhecimento, torna-se possível a entrega de valor em saúde por um mesmo profissional evitando assim a fragmentação do cuidado, preservando a integralidade do cuidado, em um cenário onde um mesmo especialista focal pode atender a vários profissionais multifocais de maneira integrada.
A presença de um sistema de saúde hierarquizado com hospital como centro e que respondia às necessidades da população foi a base para construção de um sistema de saúde nos últimos 30 anos. Contudo, o país trilhou um caminho de transformação epidemiológica e na estrutura de financiamento que passou a exigir um modelo mais eficiente e sustentável.
A era do conhecimento permitiu através da ampliação do acesso e o aumento da interatividade o despertar de novos horizontes com possibilidades de alcançar outros modelos de gestão em saúde que atendem a essa nova proposta.
A coordenação do cuidado surge como proposta assistencial a atenção hospitalar a medida que permite integrar as diversas especialidades sobre uma óptica de gestão de conhecimento26 e transversalidade da assistência podendo garantir resultados melhores aos desafios de nossos tempos.
Contudo tais desafios requerem uma articulação ativa e dinâmica entre os diferentes pontos de atenção da rede de serviços que compõe um sistema de saúde para que ocorra a transformação do capital estrutural, respeitando o conhecimento técnico como ponto central, possibilitando a entrega de valor em saúde a população de forma efetiva e eficaz para garantir27.