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Reforma dos Cuidados Primários em Saúde na cidade de Lisboa e Rio de Janeiro: contexto, estratégias, resultados, aprendizagem, desafios

Reforma dos Cuidados Primários em Saúde na cidade de Lisboa e Rio de Janeiro: contexto, estratégias, resultados, aprendizagem, desafios

Autores:

Daniel Soranz,
Luís Augusto Coelho Pisco

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.3 Rio de Janeiro mar. 2017

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017223.33722016

Introdução

Todo o caminho é belo se cumprido

/ ficar no meio é que é perder o sonho...

Alda Lara - poetisa angolana

Portugal e Brasil têm uma história, uma cultura e uma língua que os aproxima e os convida a trabalhar e refletir em conjunto. Foi o que aconteceu na área da atenção primária com o Rio de Janeiro e Lisboa desenvolvendo nos últimos anos uma reforma profunda e fazendo-o partilhando de muitas das soluções que afinal são algumas das melhores práticas organizacionais conhecidas a nível internacional.

No aniversário de 30 anos de Alma-Ata, a Organização Mundial de Saúde1 publicou o Relatório Primary Health Care Now More Than Ever convocando todos os governos a refletirem sobre a necessidade de pensar em quatro conjuntos de reformas que refletiriam a integração entre os valores dos cuidados de saúde primários e as expectativas dos cidadãos. Estes incluíam as reformas: (i) da cobertura universal; (ii) na prestação de serviços que pudesse reorganizá-los em torno das necessidades e expectativas das pessoas; (iii) de políticas públicas que garantissem comunidades mais saudáveis; (iv) de liderança em direção a uma do tipo inclusiva, baseada em negociação e participação, mais adequada à complexidade dos sistemas de saúde contemporâneos.

Estas reformas preconizadas pela OMS foram implementadas a partir de 2005 em Lisboa, Portugal e, entre 2009 e 2016, no Rio de Janeiro, Brasil, que o fizeram compartilhando entre ambas as cidades muitas das soluções baseadas nas melhores práticas organizacionais conhecidas internacionalmente.

Descrição do contexto: caracterização das cidades de Lisboa e Rio de Janeiro

A Grande Lisboa é uma sub-região estatística portuguesa, parte da Região de Lisboa (ex-Região de Lisboa e Vale do Tejo) e do Distrito de Lisboa. Limita a norte com o Oeste, a leste com a Lezíria do Tejo, a sul com o Estuário do Tejo (e, através dele, com a Península de Setúbal), e a sul e a oeste com o Oceano Atlântico. A Grande Lisboa compreende nove concelhos - Amadora, Cascais, Lisboa, Loures, Mafra, Odivelas, Oeiras, Sintra, Vila Franca de Xira2.

A área gerida pela Administração Regional de Saúde e Vale do Tejo (ARSLVT)3, IP é constituída por cinco NUTS III: Oeste, Grande Lisboa, Península de Setúbal, Médio Tejo e Lezíria do Tejo, sendo composta por 52 concelhos.

Esta região abrange uma área geográfica com cerca de 13 mil km2 correspondente a 13,6% de todo o território nacional e concentra 34,7% da população total. A população abrangida, em 2001, era de 3.475.925 residentes, tendo aumentado cerca de 5,3% nos últimos 10 anos (2001-2011), passando para 3.659.868 residentes, percentagem muito superior à nacional, onde a população aumentou apenas 1,99%.

Trata-se de um território com uma elevada densidade populacional, cerca de 3 vezes superior à média nacional (114,5 hab/ km2 em Portugal e 309,4 hab/ km2).

A cidade de Lisboa encontrava-se subdividida em 53 freguesias. Contudo, com a publicação da Lei nº 56/2012 de 8 de novembro, estas foram alvo de uma reorganização administrativa e deram origem a um novo mapa da cidade, agora com apenas 24 freguesias.

A cidade do Rio de Janeiro está situada no Sudeste do Brasil. Foi capital do Estado do Brasil, uma colônia do Império Português, depois capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves de 1815 a 1822, capital do Império do Brasil até 1889 e, capital da República dos Estados Unidos do Brasil até 1960, quando a sede do governo foi transferida para Brasília.

Atualmente é a capital do Estado do Rio de Janeiro e o principal destino turístico internacional da América Latina, sendo a segunda maior metrópole do Brasil (depois de São Paulo), a sexta maior da América, e a trigésima quinta do mundo.

A cidade do Rio de Janeiro é dividida em 160 bairros, agrupados em 33 regiões administrativas; para fins da gestão em saúde está dividida em 10 áreas de planejamento.

Em 2010, a população do Rio de Janeiro, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), era de 6.320.446 habitantes4. A densidade populacional era 5.265,81 hab/km2. A cidade é conhecida pelos seus fortes contrastes econômicos e sociais, apresentando uma marcada diferença nas condições de vida entre pobres e ricos – um mosaico de desigualdades. Enquanto muitos bairros ostentam um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) correspondente ao de países nórdicos (Gávea: 0,970; Leblon: 0,967; Jardim Guanabara: 0,963; Ipanema: 0,962; Barra da Tijuca: 0,959), em outros, há situações extremas próximas a países de muito baixo desenvolvimento, como é o caso do Complexo do Alemão (0,711) ou da Rocinha (0,732)5.

Princípios da reforma e estratégias para a mudança

De maneira geral, os legisladores de saúde na Europa concordam quanto aos objetivos centrais que seus sistemas de saúde devem perseguir: o acesso universal a todos os cidadãos, cuidados efetivos para melhores resultados de saúde, o uso eficiente dos recursos, serviços de alta qualidade e capacidade de resposta às preocupações do paciente6.

A necessidade de uma reforma da atenção primária está associada à necessidade de resolução de alguns dos principais problemas encontrados: falta de enfoque no usuário, gestão afastada dos problemas do território, organização focada essencialmente nos seus problemas internos, falta de enfoque no usuário interno com muito desperdício de talento humano e déficit acentuado dos sistemas de informação. Desde o princípio, os grandes objetivos da reforma da atenção primária foram7: (i) aumento da acessibilidade e satisfação dos utilizadores de cuidados de saúde; (ii) aumento da satisfação dos profissionais envolvidos na prestação de cuidados; (iii) melhoria da qualidade e continuidade dos cuidados prestados; (v) incremento da eficiência nos serviços.

Em outubro de 2005, Portugal iniciou uma ambiciosa reforma da APS, a partir da Missão para os Cuidados de Saúde Primários (MCSP), conduzindo a uma profunda reconfiguração da Atenção Primária Portuguesa. Em janeiro de 2006, a MCSP publica as “Linhas de Acção Prioritária para o Desenvolvimento dos Cuidados de Saúde Primários”, em que divulga as suas propostas de medidas em oito áreas de atuação e define um caminho para a evolução da reforma8.

Na reforma portuguesa foi elaborado um conjunto de linhas estratégicas e as mesmas foram agrupadas no plano estratégico para 2007 a 20099. O Eixo I – qualidade e mudança organizacional relacionadas com questões de liderança e autonomia de gestão, melhoria da acessibilidade, com a avaliação e a monitorização e com a gestão das tecnologias de informação e comunicação. O Eixo II – governação clínica e gestão do conhecimento abordavam as questões ligadas à governação clínica, qualificação dos profissionais e inovação e simplificação na prestação dos cuidados. O Eixo III – sustentabilidade e desenvolvimento associados às questões ligadas à acreditação de serviços, viabilidade financeira da atenção primária e com a comunicação com os cidadãos e os profissionais.

As soluções apontadas por estes Eixos passavam por gestão profissional, autonomia, trabalho em equipe, cultura de exigência e satisfação e motivação profissional. Os desafios que foram apresentados aos gestores das unidades de saúde passavam por tentar balancear os ganhos de eficiência com os de efetividade, por gerir recursos de forma racional e ter custos adequados aos objetivos, por tentar obter ganhos em saúde para a comunidade, ou seja, pela realização de um trabalho de melhoria contínua da qualidade do serviço. As Unidades de Saúde Familiar “modelo B” foram especialmente criadas para o desenvolvimento das inovações das soluções propostas por estes Eixos.

Já a cidade do Rio de Janeiro iniciou sua reforma em abril de 2009, inspirada na Reforma dos Cuidados Primários de Portugal. Foram lançados oito eixos estratégicos10, com prioridades especificas para cada ano, e os processos que se perpetuam ao longo da reforma. As unidades de saúde chamadas “Clínicas da Família” e os Centros Municipais de Saúde “modelo A” foram as unidades criadas no primeiro caso e, transformadas/reformadas fisicamente no segundo, para o desenvolvimento das inovações das soluções propostas por estes Eixos.

Como em Portugal, não bastava ampliar o acesso sem aumentar a resolutividade da atenção primária a saúde. No município, estes eixos estavam associados aos atributos essenciais (acesso de primeiro contato, longitudinalidade, coordenação do cuidado e integralidade) e derivados (orientação familiar, comunitária e competência cultural) propostos por Starfield11.

As reformas em Lisboa e Rio de Janeiro tiveram como finalidade a melhoria da qualidade dos cuidados de saúde, tornando-os centrados no cidadão, acessíveis e eficientes tendo sempre presente a necessidade de melhorar a satisfação dos profissionais e dos usuários/utilizadores12.

A modernização e a reconfiguração dos Centros de Saúde, tanto em Lisboa como no Rio de Janeiro e a criação das Clínicas na Família nesta última cidade, assentaram-se num conjunto de princípios: (i) orientação para a comunidade com estratégias ajustadas às necessidades locais; (ii) flexibilidade organizativa com auto-organização e diminuição da rigidez orgânica; (iii) liderança e trabalho em equipe com estabelecimento de novas competências e gestão do conhecimento; (iv) simplificação do cuidado, melhorando a regulamentação com mais confiança no cidadão; (v) gestão orientada para resultados com avaliação do impacto na comunidade; (vi) contratualização e avaliação com definição de metas perante a administração pública13; (vii) autonomia e responsabilização; (viii) melhoria contínua da qualidade, como modo de agir.

Resultados da mudança

No primeiro semestre de 2015, 76,84% dos usuários inscritos na região de Lisboa e Vale do Tejo e 72,49% na região do Algarve tinham médico de família atribuído. Na cidade do Rio de Janeiro, em novembro de 2016, estima-se que 65% dos cariocas já tinham médicos atuando nas Equipes de Saúde de Família, com a diferença de que a maior parte destes encontra-se em processo de formação para obter o título de especialista. Na Região de Lisboa entre 2009 e final de 2015 aposentaram-se 931 médicos de família e entraram no sistema 421 o que traduz um saldo negativo de 510 médicos.

Em Portugal ainda existem pacientes sem médico de família nas unidades de saúde da família, contrariando o princípio subjacente à criação deste tipo de unidade funcional. Esta situação ocorre predominantemente em locais que apresentam uma tendência de crescimento, verificando-se particularmente nas Unidades de Saúde Familiar (USF), resultado da aposentadoria ou da sua transferência para outras unidades funcionais, sem a devida substituição14.

As medidas introduzidas pelo Ministério da Saúde de Portugal do XIX Governo Constitucional para dar resposta à carência de profissionais médicos da carreira de Medicina Geral e Familiar, nomeadamente (i) a abertura de procedimentos para a admissão de profissionais, (ii) a contratação de profissionais médicos aposentados, (iii) a aumento do horário de trabalho normal da carreira especial médica, de 35 para as 40 horas semanais, com o resultante (iv) aumento da dimensão da lista de utentes inscritos, por médico, de 1.550 para 1.900, e (v) os incentivos à mobilidade geográfica não foram suficientes para atingir uma cobertura mais abrangente da prestação de cuidados de saúde primários médicos15.

Em 2016, no Rio de Janeiro, a carência de médicos de família no mercado de trabalho ou em locais de extrema violência ocorria entre 5 e 10% das equipes. Para responder a este problema, foi feito um planejamento na formação médica para que, em 10 anos, todos os médicos de família das equipes pudessem ter residência médica em medicina de família e comunidade, estipulando: (i) abertura de 220 vagas de residência por ano, (ii) solicitação de envio pelo Ministério da Saúde de 101 médicos de família cubanos para as áreas de mais difícil provimento, (iii) flexibilização da carga horaria para 20 ou 40h, de acordo com a decisão do profissional, (iv) manutenção da média de 3.200 pacientes por equipe, (v) criação de plano de carreira com incentivo à formação, (vi) incentivo à mobilidade geográfica, (vii) alto investimento em melhoria das estruturas físicas das unidades e consultórios.

Internamentos sensíveis aos cuidados primários

Realizou-se uma análise aos internamentos por ambulatory care sensitive conditions (ACSC), os quais se interpretam como internamentos evitáveis por atenção primária eficiente. Em Portugal, estes internamentos representaram 8% do total dos internamentos nos hospitais do SNS em 201415. O resultado da análise econométrica realizada é interpretado como revelando uma associação no sentido de uma maior cobertura por USF de modelo B levar a uma menor taxa de ACSC, mas esta estimativa não tem significância estatística, pelo que no contexto deste estudo16 não há evidência para suportar tal conclusão. A percentagem de utentes com médico de família atribuído surgiu como fortemente associada à redução da taxa de internamentos por ACSC.

As hospitalizações por condições sensíveis à atenção primária são uma medida indireta da eficácia clínica de cuidados primários para certos problemas de saúde. Comparativamente com as demais capitais do Sudeste e Sul do Brasil, percebe-se uma redução expressiva do percentual de condições sensíveis, colocando o Rio de Janeiro com a segunda menor proporção de internações (10,5%) por condições sensíveis em 2014 ficando atrás somente, de Curitiba com 8,8%.

Relatório Entidade Reguladora da Saúde em Portugal

Nos indicadores relativos a cuidados de saúde de prevenção (indicadores de vigilância oncológica, de rastreio, e de plano de vacinação), e de prevalência de doenças, as USF de modelo B exibiram um melhor desempenho, seguidas pelas de modelo A. Na análise do desempenho econômico das unidades de atenção primária, estudou-se a despesa média tanto com medicamentos como de meios complementares de diagnóstico e terapêutica (MCDT) prescritos, por usuário, baseada no preço convencionado. Em todos estes indicadores constatou-se que as USF de modelo B exibiram um melhor desempenho (despesa mais baixa), seguidas pelas de modelo A. Quanto ao indicador relativo à proporção de embalagens de medicamentos faturados que são genéricos, entre 2012 e 2014, verificou-se que as USF de modelo B os utilizaram em maior percentagem do que as UCSP, não obstante a tendência de aumento desta ter sido observada nas três tipologias de UF analisadas. As principais conclusões do estudo, que indiciam um melhor desempenho das USF de modelo B na maioria dos indicadores considerados, possivelmente associado ao regime de incentivos financeiros aos seus profissionais, os quais não se encontram previstos nas modelo A e nas UCSP17.

Atividades físicas nas Academias Cariocas

A partir de 2009, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro implementou uma nova política pública, institucionalizando a atividade física no contexto da Reforma da Atenção Primária à Saúde18. Em 2014, o programa passa a integrar o rol de atividades previstas na carteira de serviços da atenção primária.

O Programa Academia Carioca atende às diretrizes e metas preconizadas no Plano Municipal de Saúde, tanto na primeira elaboração, em 2009, quanto em seu último ciclo iniciado em 2014, que compreende a promoção da atividade física como ferramenta essencial de promoção da saúde19.

A atividade física, apesar de conhecida pela população como uma forma de melhorar a saúde, ainda é pouco praticada. A desinformação e a dificuldade de acesso são as principais barreiras encontradas.

O Programa Academia Carioca é um conceito ampliado de promoção da atividade física no território e visa a desenvolver uma cultura de movimento e um estilo de vida ativo, e não se limita apenas ao exercício físico nos aparelhos. O Programa compreende toda e qualquer prática de atividade física que vá desenvolver e promover a saúde, prevenir doenças e as complicações associadas a elas. É uma estratégia para ajudar o desenvolvimento humano através das ações de boas práticas e que vai resultar na construção de hábitos de vida mais saudáveis para a população.

Com a entrada média de 2.325 indivíduos por mês, o Programa tem hoje uma rede de 106.722 participantes. Em 2010, a maioria representava o gênero feminino, com 86% do público. Foi estabelecido como meta o crescimento da participação masculina com a finalidade de aumentar o cuidado direcionado à saúde do homem. Como resultado, houve uma mudança positiva de 14% (2010) para 27% em setembro/2016 neste grupo de indivíduos.

Lisboa, face ao exemplo e ao sucesso do Rio de Janeiro, no dia 1º de outubro de 2014 inaugurou a sua primeira “Academia do Movimento” no Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) de Lisboa Ocidental e Oeiras. É a primeira de uma rede de Academias de Movimento que se espera colocar no território de forma a facilitar a mobilidade dos idosos, mas também de reabilitação das patologias osteo-musculares que representam a primeira causa de incapacidade entre os portugueses.

Lições aprendidas

No caminho percorrido pelas reformas lisboeta e carioca, diversos fatores foram fundamentais:

(i) trabalho em equipe com motivação dos profissionais: trabalhadores motivados são os verdadeiros motores da reforma e da mudança. Uma boa liderança de uma unidade de atenção primária passa por perceber a sua cultura e singularidade, criar um clima participativo com autonomia e responsabilização, delegação, identificação objetiva das áreas de atuação, acompanhamento, bom ambiente de trabalho, promovendo uma boa relação entre as pessoas.

(ii) comunicação interna e externa – publicações, revista, jornal, página na internet, livros, centenas de artigos e reportagens locais, regionais e nacionais a maior parte, muito positivas em relação às alterações introduzidas.

(iii) formação – Em Portugal, o Instituto Nacional de Administração (INA), Associações e Universidades promoveram a formação específica dos diretores executivos, dos coordenadores da unidade de apoio e gestão (UAG) e do Conselho Técnico procurando promover a desejada mudança cultural nas organizações20. No Rio de Janeiro, a SMS realizou em parceria com a Fiocruz Cursos Técnicos para os Agentes Comunitários em Saúde, para os Agentes de Endemias (Vigilância em Saúde), para os sanitaristas (Cursos de Especialização), para os residentes multiprofissionais e para os mestres em atenção primária à saúde. Além disso, desenvolveu Oficinas para os técnicos de farmácia. Houve também a criação do Programa de Residência em Medicina de Família e Comunidade e de Enfermagem na área, pela própria SMS.

(iv) aposta nas instalações e equipamentos – na Região da ARSLVT foram criadas entre 2006 e 2016 um total de 150 novas Unidades de Saúde Familiar (87 em modelo A e 63 em modelo B) muitas delas em edifícios novos ou remodelados e, no município do Rio de Janeiro, novas 110 Clínicas da Família (até novembro de 2016), equipadas e com as chamadas “carteiras de serviços” da atenção primária, que compreendem o conjunto de itens – ações, serviços e procedimentos a serem desenvolvidos uniformemente por todas as unidades de saúde

(v) aposta no sistema de informação e na informatização – o desenvolvimento de interoperabilidade e registros eletrônicos individuais dos pacientes permitiram acompanhar mensalmente as equipes e seus indicadores.

(vi) pagamento ligado ao desempenho21,22 – a forma de pagamento do trabalho das equipes e, sobretudo dos médicos de família, é crucial, pois tem influência relevante na prática clínica. Com este pagamento, combina-se qualidade e quantidade. Trata-se de premiar as boas práticas e a carga de trabalho associada. Do ponto de vista politico, parecem recomendáveis os modelos de pagamento mistos, com objetivos quantitativos e qualitativos bem explicitados e acresce a desejabilidade dos incentivos de grupo, contanto que esses indicadores sejam atualizados e revisados a cada um ou dois anos23. O pagamento por desempenho é uma forma de pagamento e não uma garantia absoluta de ganhos em saúde.

(vii) contratualização24 – é um processo de relacionamento entre financiadores e prestadores, e se assenta numa filosofia contratual envolvendo uma ligação entre o financiamento atribuído e os resultados esperados. Baseia-se na autonomia e na responsabilidade das partes, sustentado num sistema de informação que permita um planejamento e uma avaliação eficazes, considerando como objeto de contrato, metas de produção, acessibilidade e qualidade. Uma correta e exigente contratualização é uma forma de incentivar o desempenho, monitorizar e demonstrar ganhos.

(viii) liderança técnica – passa por uma política de governação clínica encarada como um conjunto de políticas, estratégias e processos baseados na qualidade, capazes de assegurar melhoria contínua na forma como a unidade de saúde cuida e trata os seus doentes, no modo como presta contas à comunidade e à tutela e na eficiência como administra os recursos que lhe são confiados. Ao exercício efetivo da governação clínica não se chega por decreto. Não se trata de alcançar uma meta, mas de trilhar um longo percurso, que exige à partida genuína vontade de mudança e abertura para novos modelos de pensar, gerir e prestar cuidados de saúde.

(ix) liderança política – apoio claro e inequívoco dos mais altos responsáveis políticos nomeadamente do Ministro da Saúde de Portugal e do Perfeito da cidade do Rio de Janeiro.

O então ministro da Saúde, Professor Doutor António Correia de Campos, seguia a reforma a par e passo. E intervinha quando era necessário fazê-lo, desbloqueando as situações necessárias. Desta forma, é possível afirmar que o processo de implementação no terreno das USF foi um exercício permanente de cedências, imaginação, ajustamentos, engenho e boa vontade. Depois de um período de estagnação da reforma que ocorreu em simultâneo com um período de grave crise econômica, o atual governo nomeou um grupo coordenador para o seu relançamento25.

A força das USF como “geradoras de poupanças” num período de crise econômica é, aliás, patente no acordo de apoio externo negociado pelo governo português com a troika – composta por elementos do Fundo Monetário Internacional (FMI), Comissão Europeia (CE) e Banco Central Europeu (BCE), que recomenda claramente a ampliação de USF em Modelo B (modelo em que se diferenciam os incentivos de pagamento aos profissionais). Com efeito, no capítulo do memorando de entendimento dedicado ao sistema de saúde, existem orientações específicas relativamente ao reforço dos cuidados de saúde primários.

Na cidade do Rio de Janeiro, a Reforma só foi possível pelo apoio direto do então Prefeito Eduardo Paes e do Ministro da Saúde José Gomes Temporão, que definiu como prioridade absoluta a área da Saúde e, em especial, a expansão da atenção primária à saúde, pelas Clínicas da Família.

(x) qualidade e acreditação – em 2009 foi aprovado pelo Despacho nº 69/2009 do Ministério da Saúde de Portugal, o modelo oficial e nacional de acreditação das unidades do Serviço Nacional de Saúde. Conta já com quase dez anos de aplicação na província autônoma da Andaluzia (Espanha), onde foi desenvolvido e validado pela Agencia de Calidad Sanitária de Andalucia (ACSA)26. A sua adopção para Portugal representa um importante ganho em tempo, esforço e recursos, uma vez que o processo já está validado. O modelo andaluz assenta em três pilares básicos: a gestão por processos, a gestão clínica e a gestão de competências. Avalia a interação destes processos, bem como o grau de cumprimento dos acordos de gestão contratualizados, através de um painel de resultados trianual e da sua tendência de evolução. Exige a integração dos vários níveis da prestação de cuidados de saúde e a avaliação da efetividade e da qualidade das medidas tomadas através de um conjunto de indicadores.

No Rio de Janeiro faz-se necessário a criação de uma agência pública para acreditação dos serviços de saúde que estimule o avanço na qualidade e possa, de forma independente, dar maior transparência aos processos de gestão da clínica, dos processos e dos resultados27.

Perspectivas

Decorridos 10 anos desde a implementação da reforma da Atenção Primária, com a criação das primeiras Unidades de Saúde Familiar (USF), ainda não foi realizada pelo Ministério da Saúde de Portugal nenhuma avaliação ex post cujos resultados revelassem os ganhos de economia, eficiência e eficácia associados a cada tipo de unidade funcional, nem os ganhos em saúde das populações. Essa falha foi recentemente sanada com a encomenda de dois estudos de avaliação a duas instituições acadêmicas e a nomeação de um grupo de acompanhamento.

Na sua avaliação sobre o sistema de saúde português, a OCDE28 considera que respondeu bem à pressão financeira dos últimos anos, conseguindo equilibrar a necessidade de consolidação das contas públicas com melhorias na qualidade. Ainda assim, a organização recomenda uma “reflexão estratégica” na área da atenção primária, sobretudo no que respeita ao equilíbrio entre os tradicionais centros de saúde e as USF, de forma a garantir que “os cuidados de elevada qualidade são acessíveis a toda a população portuguesa”.

No Rio de Janeiro, entre 2012 e 2014, as avaliações externas realizadas com o instrumento Primary Care Assessment Tool (PCAT) nas versões profissionais de saúde e usuários pela equipe coordenada pelo Prof. Dr. Erno Harzheim29,30 destacaram que, em que pese a necessidade de se melhorar o atributo de “acesso – primeiro contato”, já é possível observar pela perspectiva dos usuários, uma reforma marcada pela longitudinalidade e coordenação dos cuidados, ambas reconhecidas como sendo de responsabilidade das Equipes de Saúde da Família. Os desafios se referem principalmente à questão da oferta de maior número de vagas de outras especialidades ambulatoriais por prestadores de serviços públicos estaduais e federais, incluindo aqui as unidades de saúde universitárias, para a redução do tempo de espera de consultas e procedimentos em algumas áreas.

As reformas da APS do Rio e de Lisboa destacam os valores em que se deve basear a gestão pública: a solidariedade, no sentido de contribuir para a diminuição das desigualdades que afetam os mais vulneráveis, a equidade, para que o sistema de saúde tenha uma oferta de qualidade para todos; a integração de cuidados, para assegurar a coordenação com os outros recursos que intervêm na prestação de cuidados de saúde e a ética de serviço público, que promova a eficiência, a participação dos cidadãos e o comprometimento ativo dos profissionais.

O futuro da Medicina Familiar e da Estratégia de Saúde da Família está ligado ao sucesso ou insucesso em lidar com a formação e a investigação. Vai depender de se ganhar ou perder a batalha dos sistemas de informação e comunicação, de se perder ou ganhar a batalha pela eficiência, pela gestão, pela governação clínica, pela qualidade, pelas boas práticas, pelo trabalho em equipes, pelas condições e espaços de trabalho, com profissionais motivados, que gostem do seu trabalho e gostem de lidar com os outros.

Questões como a segurança do doente, os direitos dos cidadãos, as boas práticas de atendimento, a atitude certa no momento certo, os comportamentos éticos, o tratamento das reclamações, a avaliação da satisfação dos usuários, devem ser intuitivos e um objetivo partilhado por toda a equipe de saúde.

Há que se estar preparado para se aproveitar as janelas de oportunidade políticas, como aquelas que foram observadas tanto na cidade de Lisboa como no Rio de Janeiro.

REFERÊNCIAS

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