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Região de saúde e suas redes de atenção: modelo organizativo-sistêmico do SUS

Região de saúde e suas redes de atenção: modelo organizativo-sistêmico do SUS

Autores:

Lenir Santos

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.4 Rio de Janeiro abr. 2017

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017224.26392016

Introdução

O Sistema Único de Saúde (SUS) é definido constitucionalmente como o resultado da integração das ações e serviços públicos de saúde, em rede regionalizada e hierarquizada. É dessa integração que nasce o sistema único, sendo competência comum de todos os entes federativos o cuidado com a saúde.

Além do mais, ante o conceito global, integral da saúde das pessoas, que exige um conjunto interligado e complexo de atos sanitários de promoção, prevenção e recuperação, não há como um único ente realizar sozinho da vacina ao transplante1. Essa inviabilidade se dá pelas abissais diferenças demográficas, geográficas e socioeconômicas dos municípios e pelo fato de o país ser uma federação, o que requer a um só tempo a descentralização das ações e serviços de saúde em razão da competência tripartida da saúde e a aglutinação das autonomias federativas em região de saúde em razão da integralidade da assistência. Descentralização político-administrativa e integralidade da assistência são dois nortes essenciais para se entender a organização sistêmica da saúde pública.

Como a Constituição não dividiu entre os entes federativos o que caberia a cada um na saúde, com a Lei nº 8.080, de 1990, repartindo essas atribuições de modo a não facilitar a definição das responsabilidades, restou para os entes federativos definir entre si, de modo nacional, estadual e regional as minúcias executivas na saúde, nas instâncias intergestores, cabendo ao contrato organizativo de ação pública da saúde a fixação desses acordos interfederativos, restrito a cada região de saúde, conforme disposto no Decreto nº 7.508, de 2011, para garantir, com segurança jurídica, as responsabilidades conjugadas e autônomas ao mesmo tempo pela organização, execução, financiamento, controle e avaliação das ações e serviços de saúde.

Essa integração de serviços na região é necessária para garantir a integralidade da saúde mediante o processo de referência de serviços, cabendo ao ente federativo de maior porte responder, na região, por serviços de maior complexidade que exigem escala e outras complexidades administrativas e tecnológicas, os quais poderão ser acessados por munícipes de outros municípios. Assim, um cidadão de um município pequeno, ao precisar de um serviço de maior complexidade, recorrerá aos serviços de outro, de maior porte, dentro da região de saúde; outro aspecto relevante é o fato de os municípios não serem obrigados a financiar serviços para munícipes que não são seus, em nome do interesse local constitucional; isso obriga os estados e a União a cofinanciarem as ações e os serviços de saúde.

Unir os entes federativos em uma determinada região para delimitar o seu campo de atuação, organizar as referências de serviços dadas suas complexidades sanitárias, tecnológicas e financeiras, é imperativo ao SUS. Sem esse formato organizacional o SUS não consegue se viabilizar como sistema integral, universal e igualitário.

O art. 198 da Constituição impõe a integração dos serviços entre os entes federativos ao determinar:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único de acordo com as seguintes diretrizes [...].

Essa integração é obrigatória por ser a que conforma o sistema. O SUS é o resultado dessa integração, que não é facultativa, mas sim obrigatória por ser constitucional.

Essa integração é regional, cabendo ao estado, em acordo com os municípios, e sob sua coordenação, conforme analogia do disposto no art. 25, § 3º, da CF, demarcá-las, observando o disposto no Decreto nº 7.508, de 2011, que dispõe sobre a região de saúde, suas características e os serviços mínimos que deve conter. Sendo do estado tudo aquilo que é regional, que visa agregar municípios limítrofes para o desenvolvimento de atividades comuns, a região de saúde, mesmo não citada formalmente no referido parágrafo do art. 25, se insere nessa competência do estado, ainda que esta trate de modo restritivo das questões urbanas de caráter metropolitano, conforme Lei 13.089, de 2015, restando a discussão até hoje não realizada, se a região de saúde, por ser uma decisão do estado em conjunto com os municípios, deverá ser feita por decreto ou outra forma de regramento infralegal. Esse é um aspecto relevante para a região de saúde que não tem sido considerado.

Além do formato territorial que determina a região de saúde, outros elementos são essenciais, dentre eles as redes de atenção à saúde que devem ser organizadas de modo hierarquizado quanto à complexidade tecnológica exigida pelo diagnóstico e tratamento. A atenção primária em saúde deve ser a ordenadora de todo esse encadeamento sanitário-sistêmico, o elo entre a pessoa e suas necessidades em saúde em todos os níveis de complexidade tecnológica. A atenção básica, porta de entrada do sistema e ordenadora do cuidado em todas as suas dimensões, é o alicerce da atenção à saúde ordenando as redes e demais serviços. O presente trabalho visa analisar sob o ponto de vista jurídico- sanitário a organização regional das ações e serviços públicos de saúde.

Região de saúde em seus aspectos organizativos

A região de saúde, ainda que inferida em razão do disposto no art. 198 da Constituição, não foi de imediato disciplinada. A Lei nº 8.080, de 1990, não dispôs sobre região de saúde como um instituto; tratou da regionalização, sem, contudo, disciplinar a região de saúde, o que somente ocorreu com o Decreto nº 7.508, de 2011, ainda que portarias ministeriais o tivessem feito, sem o mesmo peso e segurança jurídica de um decreto disciplinador da Lei nº 8.080. A questão mais relevante para o sistema foi a descentralização das ações e serviços de um ente federativo para outro. Era necessário primeiro descentralizar o que estava em nível governamental fora de sua vocação para depois ordenar as regiões de saúde.

O Decreto nº 7.508, de 2011, regulamentou a articulação federativa, a região de saúde, o contrato organizativo de ação pública da saúde, o planejamento regional, as portas de entrada do SUS, dentre outros elementos. Deixou para os entes federativos na região de saúde definirem, de comum acordo, as responsabilidades sanitárias as quais devem estar fixadas no contrato organizativo de ação pública da saúde para a sua necessária garantia jurídica.

A repartição de competência realmente só se torna possível no SUS caso se realize, de modo flexível, por isso o contrato que possibilita realizar acordo entre os entes federativos que livremente definem na região as suas responsabilidades. Esse modelo contratual é a forma mais adaptável às realidades diversas dos entes federativos no nosso país.

A região é recorte territorial, administrativo-sanitário que permite integrar o que a descentralização supostamente teria fracionado, definindo para a população um espaço sanitário de serviços, constituído pelas redes de atenção à saúde, dotadas de inteligência sanitária que permita à pessoa o acesso ao itinerário terapêutico adequado à sua necessidade. A região de saúde é pré-requisito para a ordenação sanitária, com o fim específico de garantir o acesso às ações e serviços de saúde dentro de um território delimitado e disciplinado podendo ser inter-regional, conforme forem as necessidades de saúde. É na região que o SUS deve garantir às pessoas suas necessidades de saúde em acordo às referencias interfederativas e à gestão compartilhada, definidas em acordos e consagradas no contrato.

O contrato, de caráter interfederativo, não pode ser uma adesão de quem coordena o processo, mas sim um consenso federativo em torno de realidades concretas e metas regionais a serem alcançadas. O contrato é, como figura metafórica, o fecho do vestido: ele dá contorno final à integração das ações e serviços de saúde dos entes federativos, na região, garantindo a segurança própria dos negócios.

Esse desenho institucional de região, rede e responsabilidades sanitárias, coordenadas pelo estado, respeitadas as diretrizes e os objetivos nacionais, é o cerne da organização e funcionamento do SUS em seu caráter sistêmico.

A região, em acordo ao disposto no Decreto nº 7.508, de 2011, é definida como:

Art. 2º.

II – Região de Saúde: espaço geográfico contínuo constituído por agrupamentos de Municípios limítrofes, delimitado a partir de identidades culturais, econômicas e sociais e de redes de comunicação e infraestrutura de transportes compartilhados, com a finalidade de integrar a organização e o planejamento de ações e serviços de saúde.

Cabendo ao Estado a instituição da região de saúde, em comum acordo com os municípios e respeitadas as pactuações nas comissões Intergestores, será necessária a existência de um mínimo de ações e serviços de:

I – atenção primária;

II – urgência e emergência;

III – atenção psicossocial;

IV – atenção ambulatorial especializada e hospitalar; e

V – vigilância em saúde.

Definida a região de saúde formalmente pelo estado, em razão de sua competência constitucional de dispor sobre aglomerados de municípios, conforme mencionado acima, importa regulamentar os limites geográficos da região, a população usuária do serviço em quantidade e localização domiciliar, o rol de ações e serviços que a região irá garantir à população e as responsabilidades dos entes federativos com a sua execução e financiamento, além dos critérios de acessibilidade e a escala na conformação dos serviços.

Construída a região de saúde em seus elementos organizacional-constitutivos permanentes, como número de municípios, comissão Intergestores regional, governança regional, redes de atenção, deve-se definir os macroprocessos periódicos, como: planejamento regional, organização das reuniões Intergestores, confecção dos mapas da saúde; relatórios de gestão regional, avaliação e controle e o contrato organizativo de ação pública da saúde (art. 15 e seguintes; 33 e seguintes do Decreto nº. 7.508, de 2011).

O decreto, em seu art. 6º, dispõe ser a região de saúde a referência para as transferências de recursos entre os entes federativos, fazendo nascer o planejamento regional, até então não disciplinado no âmbito do SUS, que deve integrar as necessidades de saúde da população da região, os serviços de todos os entes e os recursos financeiros, cabendo ao estado e à União promover a equidade regional, minorando as diferenças, transferindo recursos para a região em acordo às suas necessidades e características, com vistas à diminuir as assimetrias socioeconômicas e demográficas para que os bens públicos deixem de ser exclusividade dos mais bens localizados2. A região de saúde está imbuída desse forte componente, de garantir ao cidadão o direito igual às ações e serviços de saúde próximos de onde sua vida acontece, sendo um cidadão completo, independentemente do lugar onde se encontre e não onerando nenhum ente federativo além de suas possibilidades socioeconômicas, demográficas e espaciais.

A região de saúde deve ser, em relação ao SUS nacional, o microcosmo da realização das necessidades de saúde do cidadão, o que resulta numa gestão compartilhada, cooperativa, ensejando o planejamento integrado, o financiamento regional e uma série de medidas que visem garantir governança na região, a política e a operativa, como os colegiados interfederativos regionais, do qual o decreto tratou e que deve ser interpretado em consonância com a lei 12.466, publicada meses depois. As comissões intergestores regional podem ser tidas como o espaço deliberativo de uma região de saúde, cabendo a elas nomear uma diretoria executiva para que se possa, assim, garantir governança regional na região de saúde.

Comissão Intergestores de Saúde e a governança regional

Outro aspecto relevante na organização da região de saúde são as comissões Intergestores da Lei nº 12.466, de 2011, e do Decreto nº 7.508, de 2011. A começar pela Comissão Intergestores Tripartite, incumbida de decisões cooperativas e solidárias das três esferas de gestão do SUS, a federal, a estadual e a municipal, e assim reproduzida no âmbito estadual e regional.

Foi o Decreto nº 7.508, de 2011, quem primeiro tratou das comissões Intergestores, instituindo a comissão regional, essencial para a governança operativa da região de saúde. Antes, somente portarias ministeriais trataram dessas comissões, nunca tendo sido regulada por decreto ou lei conforme ocorreu em 2011. Incumbe às comissões definir, em comum acordo, como as políticas de saúde serão executadas pelos entes federativos em suas esferas de governo. As políticas de saúde são definidas pelos entes federativos, primeiramente, e seus planos de saúde aprovados pelos conselhos de saúde, pautados pelas necessidades de saúde de sua população em consonância com as diretrizes e os objetivos definidos em planos estadual e nacional de saúde, orientador das políticas do SUS, em âmbito estadual e nacional para que a sua unicidade seja uma realidade nacional, cabendo a cada ente as suas especificidades local, regional e estadual. O planejamento do SUS deve, ao mesmo tempo em que atende as necessidades de saúde locais, respeitar e ser consoante ao planejamento nacional que garante a unicidade política e operativa do sistema público de saúde.

Com a edição da Lei nº 12.66, de 2011, que definiu as competências das comissões Intergestores, garantindo institucionalidade e legalidade ao que vinha sendo praticado há mais de 20 anos, as comissões passaram a ser uma instância relevante para a gestão compartilhada do SUS e sua governança operativa. Sem retirar poderes dos entes federativos no tocante às suas competências para definir políticas de saúde, garante que a governança da saúde, em seus aspectos operacional, financeiro e administrativo, quando implique em cooperação e compartilhamento, seja realizada nessas instâncias interfederativas.

As comissões Intergestores são essenciais para a governança regional em saúde, em razão da inexistência formal de ente regional e da necessidade real de se regionalizar a descentralização, sem o que o SUS não se realiza de forma integrada e sistêmica como deve ser. A governança regional, uma ficção jurídica inserida no SUS, exige instrumental adequado para realizar-se, e um deles, ou, o maior deles, é a comissão Intergestores regional, instância que permite serem definidos em comum acordo, relevantes aspectos regionais, como as referências, as diretrizes para o planejamento integrado, a organização das redes de atenção, o controle e a avaliação, dentre outros. Se essas instâncias não forem presentes na região de saúde, relevantes aspectos da cooperação e do compartilhamento regional não acontecerão.

Planejamento Regional

O planejamento regional da saúde é essencial para a organização das ações e serviços na região de saúde. Sem planejamento, o SUS não logrará efeito e suas atuações não terão pautas sólidas que possam orientar suas atividades. Aliás, a Constituição em seu art. 176 determina ser o planejamento obrigatório para o Poder Público e indutor para o setor privado.

A forma organizativa do SUS em sua complexidade traz para os entes federativos municipais a necessidade de não apenas planejar as suas ações e serviços de saúde, mas também olhar para a sua região de saúde, conhecer os seus serviços, a população usuária, as realidades locais e regionais de saúde; dotado desse conhecimento amplo, que extrapola a sua visão local municipal, deve-se planejar a saúde local tendo em vista a região de saúde. Assim, o município de grande porte haverá de considerar as necessidades de saúde dos entes de menor porte, as quais serão realizadas no sistema de referência de serviços na região, resultante da integração constitucional das ações e serviços federativos. Um município de menor porte haverá de considerar os recursos regionais para referenciar seus munícipes e assim garantir o atendimento integral, de forma compartilhada, cooperativa e solidária.

A Lei nº 8.080, de 1990, a Lei Complementar nº 141, de 2012 e o Decreto nº 7.508, de 2011, tratam do planejamento integrado, sendo que estes dois últimos explicitam dados sobre o planejamento regional.

Por fim, importa dizer que a região de saúde é uma obrigação e não uma faculdade3. O fundamento será sempre a Constituição, que impõe uma rede de serviços regionalizada. Por isso, a preocupação expressada por Machado4, a respeito de como introduzir padrão de conduta solidário entre os entes governamentais, faz sentido na regionalização da saúde, aliás da essência do SUS.

Sem solidariedade na condução da rede de atenção à saúde, com suas referências, não há SUS no formato constitucional, que é o da cooperação e solidariedade federativa. O planejamento regional é a origem da solidariedade e cooperação. Planeja-se para ser cooperativo e solidário; sem isso nada se realiza a contento.

Rede de Atenção à Saúde

Trata-se de organizar o sistema regional em rede de atenção à saúde, que deve manter serviços de diversos níveis de complexidade técnico-sanitária, garantindo robustez tecnológica à rede mediante o somatório de serviços dos entes federativos. Serviços que se espraiam no sentido de permitir que diversos municípios deles se utilizem e outros que devem se concentrar para ganhar escala. De acordo com Mendes5:

em geral, os serviços de menor densidade tecnológica, como os de atenção primária à saúde, devem ser dispersos; ao contrário, os serviços de maior densidade tecnológica, como hospitais, unidades de processamento de exames de patologia clínica, equipamentos de imagem etc. tendem a ser concentrados.

Essa rede deve manter serviços de diversos níveis e se formatar de tal forma que o cidadão não busque um serviço de maior aparato tecnológico para satisfazer uma necessidade que pode ser resolvida por um serviço de menor porte. Essa racionalidade tem a ver com a eficiência, a economicidade, a facilidade no pronto atendimento e a escala, e a muitos outros elementos administrados pelos agentes públicos. A organização das redes de atenção de modo eficiente deve fundar-se em: economia de escala, disponibilidade de recursos, qualidade de acesso, integração horizontal e vertical, processos de substituição, territórios sanitários e níveis de atenção5.

É relevante transcrever aqui alguns dos elementos essenciais definidos para a existência de rede integrada (e regionalizada) de saúde trazida por Kischnir e Chorny6. Os autores apontam os seguintes atributos população e território; rede de estabelecimento de saúde com serviços integrais; primeiro nível de atenção com cobertura para toda a população; porta de entrada do sistema que coordena o sistema; sistema de governança única para toda a rede.

É dentro desse fundamento que o decreto define as portas de entrada da rede de atenção à saúde (regionalizada) como sendo os serviços estruturados de: a) atenção primária; b) atenção de urgência e emergência; c) atenção psicossocial; d) especiais de acesso aberto, impondo a referência para os serviços de maior complexidade tecnológica pelos serviços ali enumerados, como os especializados e os hospitalares. As portas de entrada decorrem da regulação do acesso. São portas reguladas pelo sistema sob o ponto de vista técnico, sanitário e administrativo.

Após 21 anos, ainda que todos tenham propugnado pela atenção primária como principal porta de entrada e ordenadora das redes de atenção à saúde, isso nunca foi regulamentado. Com a regulamentação feita pelo Decreto, institucionaliza-se a atenção primária como principal acesso à rede de atenção à saúde.

A ordenação do acesso impõe aos profissionais de saúde a avaliação da gravidade do risco individual e coletivo, que deve preceder a ordem cronológica (ordem de chegada do cidadão). Em situação igual, prevalece a ordem cronológica; em situação de risco, prevalece sua gravidade3.

Outro dado relevante é a imposição de que o cidadão tenha assegurado que suas necessidades de saúde devem ser satisfeitas na rede da região ou entre regiões. Aqui surge a figura das referências entre serviços (a hierarquização de que fala a Constituição Federal no tocante à complexidade ou densidade tecnológica dos serviços).

Quando as referências saem de uma região e adentram em outra ou outras, isso precisa ser regulado de modo a haver segurança jurídica entre os entes federativos implicados no tocante à garantia do atendimento de seu munícipe. Nas referencias inter-regionais que extrapolam o território estadual, adentrando em outro, são relevantes as interações entre estados para definir as referencias. Esses aspectos são importantes para que as referências aconteçam de modo organizado e sistêmico.

Contrato Organizativo de Ação Pública da Saúde (Coaps)

O contrato é a forma de os entes federativos na região de saúde se autorregularem, definindo, eles mesmos, a repartição de competência executiva, orçamentário-financeira e de controle e avaliação.

O modelo contratual veste como uma luva o modelo do SUS: um sistema único, que ao mesmo tempo é descentralizado, regionalizado, hierarquizado, onde se somam entes federativos bastante desiguais, mas todos com o compromisso igual de cuidar da saúde das pessoas; um quebra-cabeça de partes desiguais, mas dotados da mesma importância para no final formarem um sistema único, igualitário, capaz de realizar da vacina ao transplante. Esse quebra-cabeça somente se realiza e forma uma figura completa se o sistema for organizado de modo sistêmico, cooperativo e solidário. Nada mais cooperativo e solidário do que o SUS nacional, estadual e regional.

Releva destacar a grande inovação que é o contrato de ação pública da saúde, de natureza organizativa, ordenatório de atividades públicas compartilhadas. Será por meio de contrato que as múltiplas responsabilidades sanitárias, de âmbito regional, serão definidas. Os entes federativos conjuntamente definem entre si os regramentos da gestão compartilhada. Eles se auto-ordenam quanto a essas responsabilidades, de forma consensual, mediante contrato.

As responsabilidades sanitárias deviam ser reguladas, todas elas, a priori? Se assim fosse, seria fácil tecer a rede de atenção à saúde, sabendo-se, de antemão, as obrigações de cada um conforme previstas em lei. Mas no SUS sabemos que é impossível regular a priori o que cada ente deverá fazer, ante a infinitude de variáveis próprias das desigualdades demográficas, sociais, geográficas, econômicas, culturais existentes em nosso país, conforme explanado neste trabalho. O modelo contratual há de ser o mais adequado meio de se regular as relações de interdependência dos entes na rede de atenção à saúde de uma região, por ser possível, no contrato, definir, de acordo com a realidade de cada um, suas necessidades, realidade econômica, as atribuições no tocante à organização das ações e serviços de saúde em rede de atenção.

É pelo contrato que os entes federativos poderão definir, de acordo às suas realidades e no âmbito de suas competências comuns, o papel de cada um na rede de atenção à saúde, se autoimpondo regramentos resultantes de negociação solidária e responsável no tocante à competência comum de cuidar da saúde da população. Trata-se de uma regulação negocial, ajustada mediante cláusulas e condições contratuais, as quais passam a exercer o papel que seria previamente reservado à lei quanto à definição, em minúcias, das competências dos entes na área da saúde, sua obrigatoriedade e sanção quando algo for descumprido.

Estamos diante de um modelo de inter-relações federativas que devem ser construídas permanentemente, em interregnos de tempo, de acordo com objetivos definidos em lei e que devem ser alcançados em nome de um dever constitucional que é o de garantir o direito à saúde.

O contrato, nesse caso, visa minudenciar as gerais competências constitucionais e legais na área da saúde. Para tanto, é necessário delimitar espaços territoriais para a construção da rede de atenção à saúde, regionalizando-se o que a descentralização individualizou. Sendo o contrato a única forma de os entes federativos, de determinada região de saúde, impor a si mesmos responsabilidades sanitárias, individuais, compartilhadas e solidárias, sua assinatura há de ser obrigatória.

Se a interdependência dos entes federativos na garantia do direito à saúde é intrínseca ao SUS, ou seja, é de sua natureza constitucional ser um único sistema decorrente da integração de serviços de entes autônomos, o contrato deve ser o elo obrigatório nessa cadeia de inter-relações. É o contrato o elo sistêmico do SUS. Sem o contrato há uma falha na garantia das obrigações de fazer entre os entes federativos agregados em região.

O contrato consagra o respeito às assimetrias geográficas, demográficas e socioeconômicas uns dos outros e contribui para erradicar as desigualdades regionais e locais, tornando realidade a integralidade da assistência à saúde e produzindo equidade federativa sanitária.

O desempenho de atividades comuns, idênticas, como é o caso da saúde, e que não podem ser realizadas isoladamente, mas sim conjuntamente por uma multiplicidade de entes, conduz à necessidade de atuação harmônica e solidária, uma vez que o exercício isolado pelos diversos entes administrativos das respectivas competências não satisfará o interesse público7. A integração e a cooperação são elementos essências para o cumprimento adequado das competências comuns exigindo permanente articulação. No SUS a concertação é obrigatória.

Os contratos organizativos são uma forma de o estado se relacionar no interior da própria administração pública com o intuito de torná-la mais eficiente e, no caso do SUS, possível. Fundados na cooperação e colaboração, o estado muda a forma de suas relações substituindo a subordinação e a hierarquia pela ação conjugada de interesses, que, muitas vezes, somente são satisfeitos mediante a reunião de esforços. Nessa nova forma de relação, a negociação e a fixação de responsabilidades mediante contrato são essenciais para o atendimento do interesse público.

No campo da descentralização territorial, que encerra o risco da fragmentação dos serviços, mas que foi necessária no início do SUS para se realocar os serviços a quem de direito, a interação entre os entes prestadores de serviços é importante para permitir a sua reaglutinação sem se perder a independência da gestão. Na saúde, a descentralização das atividades em 5.570 municípios impõe remédios que permitam integrar essas ações. Ainda no ensinamento de Oliveira8: a conduta administrativa há de ser exercida cotidianamente no âmbito organizatório da Administração Pública, com o fito de possibilitar um melhor exercício da função administrativa.

O contrato organizativo persegue um fim único, e as partes reunidas não pretendem tirar nenhum proveito para si. O ganho é a soma de esforços de todos os implicados para melhorar seu desempenho público, organizar serviços comuns ou definir melhor suas obrigações, responsabilidades, financiamento. É uma forma de os entes se autorregularem quanto às responsabilidades em relação a determinados serviços comuns, como é o caso da saúde pública.

O contrato organizativo permite que seus participantes definam regras que devem vinculá-los ante a sua força jurídica. Esses contratos têm regime jurídico diverso dos bilaterais e comutativos, são plurilaterais, diferentes do regime jurídico clássico, ensejando novos paradigmas para a sua elaboração e consecução.

Na área da saúde, o contrato organizativo é essencial à organização dos sistemas regionais; pois são os que unem os entes federativos, ao mesmo tempo em que se definem as responsabilidades e as obrigações de cada um na rede de serviços que deverá prover a saúde da comunidade.

É o contrato que vai garantir o não fracionamento dos serviços que foram descentralizados em razão de sua feição municipal ou estadual, acordando compensações financeiras para os entes que venham a ser referência, garantindo solidariedade e equidade, respeitando as autonomias federativas, acordando sanções pelo descumprimento dos acordos e garantindo governança regional à rede de atenção à saúde. Sem o contrato, a governança da rede poderá ser falha pela ausência de segurança jurídica aos compromissos sanitários pactuados.

O contrato de ação pública na área da saúde se dota de finalidades e características, tais como3:

  1. garantia da integralidade da assistência à saúde, que não se realiza de forma isolada, mas somente mediante acordo de colaboração entre os entes federativos implicados na saúde de uma região;

  2. segurança jurídica à organização regional das ações e serviços públicos de saúde;

  3. horizontalidade nas negociações;

  4. reconhecimento da interdependência dos entes contratantes na gestão de ações e serviços de saúde, mantendo a direção única em cada esfera de governo;

  5. equilíbrio à rede de atenção à saúde em relação às diferenças socioeconômicas dos entes contratantes (equalização e solidariedade sistêmica);

  6. garantia dos referenciamentos do cidadão na rede e compensação financeira ao ente federativo responsável que pode ser da União ou do estado;

  7. função organizativa e não patrimonialista;

  8. multilateralidade de contratantes;

  9. possibilidade de garantir governança regional; e,

  10. igualdade jurídica das partes.

Os contratos devem ter suas diretrizes convencionadas de forma colegiada na CIR, CIB e CIT (Comissão Intergestores Regional, Comissão Intergestores Bipartite e Comissão Intergestores Tripartite, respectivamente) – nas quais estão representados todos os entes federativos implicados nos contratos de ação pública da saúde. Essas convenções, que tenho denominado de consensos interfederativos1, serão o marco referencial para a celebração dos contratos, uma forma de regulamentar aspectos da gestão, mediante acordo.

O contrato organizativo, na área da saúde, se define mais que um programa, mas sim a própria rede de atenção à saúde, o próprio sistema de saúde regional que deve ser organizado em rede. Organiza-se, na realidade, o sistema de saúde regional; é o meio pelo qual se regulam as relações de interdependência dos entes federativos no SUS, com o fim de manter as autonomias federativas.

Por isso, defendemos ser o contrato, previsto no decreto 7.508, de 2011, obrigatório para todos os entes federativos; é obrigatório por ser a forma escolhida pelo decreto para articular as interdependências na organização da rede de atenção à saúde, definir responsabilidades e equalizar as diferenças entre os entes federativos (socioeconômicas). O ente federativo deverá se dispor a negociar e, uma vez obtido o consenso, deverá firmar o contrato como salvaguarda de suas responsabilidades no provimento da saúde da população brasileira.

Além do mais, o art. 17, § 3º, da Lei Complementar 141, determina que o Poder Executivo informe aos conselhos de saúde e tribunais de contas montantes de recursos destinados às transferências intergovernamentais pela União, com base no Plano Nacional de Saúde, no termo de compromisso de gestão firmado entre os entes federativos. O primeiro termo de compromisso de gestão surgiu no âmbito do Pacto pela Saúde, 2006; contudo, tratava-se de um termo de compromisso unilateral, retratado por um documento encaminhado pelo estado ou o município ao Ministério da Saúde afirmando que se comprometia a realizar determinada ação (uma declaração de intenções). Não era um termo multilateral, conforme mencionado no texto legal (LC 141). O termo multilateral é o contrato organizativo de ação pública disposto no decreto 7.508. Referido contrato é um acordo entre os entes federativos que, dentre outras responsabilidades, destaca-se a das transferências interfederativas. Esse dispositivo legal confirma a necessidade de os compromissos assumidos pelos entes federativos no âmbito do SUS ser formalizado.

É mediante o contrato que se definem as responsabilidades: a) pelas ações e serviços na região de saúde; b) por sua prestação ou garantia; c) por seu financiamento (o próprio e os decorrentes do rateio federativo), além das responsabilidades pelo controle do gasto, da qualidade, da eficiência, desempenho etc.

No SUS, a colaboração é obrigatória. Pode parecer uma contradição em termos, mas não é. O SUS é um sistema que resulta da colaboração dos entes federativos, a qual não é facultativa. Para garantir o cumprimento do art. 30, VII, da CF, que determina que o município cuide da saúde com a cooperação técnica e financeira do estado e da União, foram editadas leis impondo o repasse de recursos da União e dos estados. Assim, a colaboração prevista no art. 30, VII, da CF, não é mera faculdade, colaboração. Trata-se de uma obrigação. Os repasses interfederativos da saúde são obrigatórios e não voluntários, por força constitucional e legal. Esse também é entendimento expressado por Silveira9 ao dizer que no SUS a cooperação já não se revela como sugestão, mas como exigência constitucional.

O contrato, por ser uma necessidade quase natural da forma organizativa do SUS e por estar previsto no decreto regulamentando da lei 8.080, de 1990, e de forma mais genérica e abrangente no § 3º do art. 17 da lei complementar 141, de 2012, sua celebração também há de ser obrigatória.

A integração dos serviços dos entes federativos e a consequente alocação de recursos, definição de responsabilidades há de ser instrumentalizada pelo contrato, sob pena de não haver como vincular os entes federativos de uma região de saúde a esses compromissos. A organização do SUS, por se pautar na inter-relação e interdependência, encontra no contrato o necessário respaldo jurídico, vinculando os entes federativos signatários.

Conclusões

A região de saúde é essencial para a conformação do SUS nacional, sendo recortes territoriais que aglutinam municípios para ganhar escala e densidade tecnológica suficientes para garantir a integralidade da atenção à saúde em pelo menos 90% das necessidades das pessoas. A região é território dotado de certas características e serviços; mas sua essência é territorial face ao cumprimento de necessidades comuns dos entes municipais.

A rede, por sua vez, deve conter serviços, conforme disposto no Decreto nº 7.508, de 2011, organizados em níveis de complexidade tecnológica, a qual se organiza por identidade genética de suas ações e serviços e permite satisfazer às necessidades da pessoa no cuidado com a sua saúde, de modo a criar um itinerário sanitário racional e identitário, sem obstáculos burocráticos, com economia processual e temporal, racionalidade nos gastos e nos exames de apoio diagnóstico, dentre outros elementos. A rede é composta por serviços de igual identidade, organizada de modo a viabilizar e racionalizar o itinerário terapêutico necessário ao cuidado com a saúde.

São elementos essenciais na região, as governanças executiva (operativa) e política; o planejamento integrado regional; os consensos interfederativos alcançados na comissão Intergestores regional e bipartite; os mapas da saúde; o sistema informatizado de dados sanitários, terapêuticos, diagnósticos, dentre outros.

O contrato organizativo de ação pública da saúde é essencial acordo jurídico-sanitário que dá garantia aos consensos alcançados na comissão intergestores regional e define as responsabilidades, na região, dos entes federativos no tocante à organização e execução de serviços, financiamento, controle e avaliação dos resultados alcançados.

A governança na região poderá contar com instrumento executivo de gestão, como uma associação regional de saúde, autarquia territorial, consórcios públicos, fundação estatal interfederativa, devendo os entes federativos definirem em comum acordo a melhor forma de gerir de forma cooperada as ações e os serviços de saúde na região.

REFERÊNCIAS

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