versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.4 Rio de Janeiro abr. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017224.27082016
Dentre os principais empecilhos para o alcance da universalidade no SUS despontam as desigualdades socioeconômicas e de saúde vigentes no país, agravadas pela limitada governança das autoridades sanitárias nos municípios e regiões menos favorecidas, em particular na região Norte1.
Desigualdades sanitárias são exemplificadas, no Norte2, pelo restrito número de médicos atuando no SUS (1/1000 habs.) e elevada razão capital/interior na disponibilidade desses profissionais (2,5 médicos/1000 habs. nas capitais, contra 0,4/1000 no interior). Na comparação entre regiões geográficas a disponibilidade de médicos nas capitais do Norte foi quase 3 vezes inferior àquela encontrada nas do Sul do país; (7,1/1000) e mais de 4 vezes inferior à distribuição de médicos no interior do Sudeste (1,7/1000). Dentre os estados do Norte, o Amazonas teve o menor percentual de médicos com registro de atuação no interior do estado (6,9%).
A regionalização em saúde é vista como uma das alternativas para buscar a redução das desigualdades no acesso ao SUS3, sendo caracterizada como uma integração entre os diversos níveis do cuidado à saúde, consorciada às políticas econômicas e sociais voltadas para a inclusão social e para um modelo de desenvolvimento comprometido com a redução das desigualdades regionais4.
A literatura1,5-8 tem apontado importantes desigualdades entre as regiões de saúde no país, em particular no Norte, onde 46% das regiões de saúde têm baixo IDH. Ali, a rede de serviços de saúde é insuficiente e há dificuldade de fixação de recursos humanos, principalmente nos municípios de pequeno porte. Serviços de média e alta complexidade se concentram nas capitais, em prejuízo da população que vive em áreas remotas. O repasse de recursos federais é muito inferior à média per capita nacional e a infraestrutura sanitária é inadequada e pouco resolutiva frente às necessidades. Há baixa institucionalidade e descontinuidade nas políticas do governo federal com pouca sensibilidade para especificidades regionais, ao lado da restrita capacidade de gestão no âmbito municipal. A regionalização tem caminhado lentamente, sendo marcante a carência de projetos que efetivem a integração intra e inter-regiões de saúde9
Dentre os instrumentos de apoio à efetivação das regiões de saúde, destacam-se o mapa sanitário; os contratos pactuados (Contratos Organizativos de Ação Pública – COAP) entre os entes federados que atuam numa mesma região, e as Comissões Intergestores, aí incluídas as Comissões Intergestoras Regionais – CIR, instâncias de governança regional das redes de atenção à saúde10,11, cuja atuação é relevante para apreender como se efetiva o dinâmica da regionalização.
Este artigo analisa avanços e dificuldades que cercam o processo de regionalização da região de saúde Entorno de Manaus (ENMAO), no estado do Amazonas, buscando apreender, mediante a análise de dimensões estruturais e institucionais8, aspectos de sua governança e efetivação no âmbito da Comissão Intergestora Regional e da regional como um todo.
Pesquisa qualitativa que analisa o processo de regionalização na região de saúde Entorno de Manaus. A seleção dessa região de saúde obedeceu aos critérios definidos no projeto Política, Planejamento e Gestão das Regiões e Redes de Atenção à Saúde no Brasil (Regiões e Redes), que propôs uma tipologia para classificar, em âmbito nacional, as regiões de saúde formalizadas no SUS6. Tal tipologia tomou como base a situação socioeconômica e o perfil de oferta e complexidade de serviços de saúde das regionais de saúde formalmente constituídas até janeiro de 2014. Os procedimentos adotados selecionaram 17 regiões de saúde, classificadas em 5 grupos: grupo 1 (baixo desenvolvimento socioeconômico e baixa oferta de serviços); grupo 2 (médio/alto desenvolvimento socioeconômico e baixa oferta de serviços); grupo 3 (médio desenvolvimento socioeconômico e média oferta de serviços); grupo 4 (alto desenvolvimento socioeconômico e média oferta de serviços); e grupo 5 (alto desenvolvimento socioeconômico e alta oferta de serviços).
A região de saúde Entorno de Manaus, enquadrada no grupo 4, foi selecionada para a pesquisa, havendo coleta de dados em três (Manaus, São Gabriel da Cachoeira, Careiro da Várzea) dos 12 municípios dessa regional. Os dados aqui analisados se baseiam em 9 entrevistas abertas, aplicadas aos gestores municipais e estaduais (subsecretários da capital e do interior do Amazonas), coordenadores de atenção básica e ao coordenador da CIR Entorno de Manaus, versando sobre o processo de regionalização no estado do Amazonas e, em particular, da região de saúde Entorno de Manaus. No componente documental foram revisadas atas e resoluções oriundas da Comissão Intergestora Regional (CIR) da região Entorno de Manaus, entre 2012 a 2015, período de funcionamento regular desta CIR, e documentos institucionais das secretarias de saúde participantes da região Entorno de Manaus. A revisão também incluiu páginas de internet onde o tema da regionalização no Amazonas foi tratado.
A análise dos dados variou conforme o tipo de fonte. Para as atas foi desenvolvida uma avaliação de conformidade, tomando o Decreto 7.508/11 como padrão de referência para analisar a atuação deste colegiado. A análise de conformidade foi guiada por três capítulos do referido decreto: Capítulo III: Planejamento da Saúde; Capítulo IV: Organização da Assistência à Saúde; e Capítulo V: Articulação Federativa. A leitura das 32 Atas existentes, referentes ao período de 2012 a 2015, gerou um quadro analítico (Quadro 1) que ordenou os conteúdos relevantes segundo as categorias previamente eleitas para orientar a avaliação.
Quadro 1 Avaliação de Conformidade da Atuação da CIR-ENMAO.
Temas | Recomendações do Decreto 7.508/2011 | Atas da CIR – ENMAO |
---|---|---|
Planejamento da Saúde | O planejamento será ascendente e integrado, do nível do local ao federal, ouvidos os respectivos conselhos de saúde e compatibilizando-se as necessidades das políticas de saúde com a disponibilidade de recursos financeiros. | - As discussões sobre planejamento versaram principalmente sobre as dificuldades em realiza-lo; |
-Relato de dificuldades pontuais no planejamento de ações por municípios participantes, que buscaram, na CIR, apoio técnico para solucioná-las. | ||
- Há registro de metas regionais aprovadas na CIR, mas não foram encontrados registros de planejamento e pactuação envolvendo o conjunto dos municípios da regional. | ||
Organização da Assistência à saúde | A integralidade da assistência à saúde se inicia e se completa na Rede de Atenção à Saúde, mediante referenciamento do usuário na rede regional e interestadual, conforme pactuado nas Comissões Intergestores. | - Não foram encontrados registros de discussões que definissem um rol de ações a serem desenvolvidas pelos municípios, segundo sua capacidade instalada e nem fluxos que orientassem o referenciamento dos usuários para outros municípios e outros pontos de assistência. |
A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios pactuarão nas respectivas Comissões Intergestores as suas responsabilidades em relação ao rol de ações e serviços constantes da Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (RENASES). | - Discussões deste teor trataram apenas de situações pontuais de municípios que buscavam garantir o acesso individual de doentes à exames ou internação. | |
- A atuação do sistema de regulação não foi objeto de discussão na CIR para o período estudado. | ||
Articulação Interfederativa | As Comissões Intergestores pactuarão diretrizes gerais sobre Regiões de Saúde, integração de limites geográficos, referência e contrarreferência e demais aspectos vinculados à integração das ações e serviços de saúde entre os entes federativos; | - Não houve discussão sistemática para traçar diretrizes relativas à organização e atuação da região ENMAO de Saúde. Algumas atas referiam apenas dificuldades na operacionalização da proposta. Estratégias de referencia e contrarreferência para o conjunto da região não foram discutidos no período de estudo. |
O objeto do Contrato Organizativo de Ação Pública da Saúde é a organização e a integração das ações e dos serviços de saúde, sob a responsabilidade dos entes federativos em uma Região de Saúde, com a finalidade de garantir a integralidade da assistência aos usuários. | - Não houve elaboração, discussão ou pactuação de COAP na CIR ENMAO, no período estudado. |
A leitura minuciosa das entrevistas propiciou a emergência de 5 categorias de argumentação12. Estas foram analisadas tanto como unidades discursivas13 que expressavam o conteúdo imediato do discurso, quanto como vias de comparação das interpretações dos falantes, propiciando o acesso à teia de relações que permeia o processo de regionalização. O procedimento gerou um conjunto de significados que expressam a interpretação do conjunto de atores políticos envolvidos no tema investigado, sem desprezar potenciais conflitos e diferenças de interpretações entre eles13.
A pesquisa foi aprovada por comitê de ética da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo FMUSP. Todos os entrevistados aceitaram participar da pesquisa e assinaram o TCLE.
O processo de regionalização no estado do Amazonas se mostra de difícil apreensão. Há carência de publicações e de informações institucionais consistentes e atualizadas. A Figura 1, disponibilizada pela CIR Entorno de Manaus (CIR-ENMAO), apresenta a distribuição espacial das 9 regiões de saúde no Amazonas. O mapa, datado de 2011, traz informações distintas das encontradas no PDR-SUSAM, datado de 2003, que foi o único documento relativo ao tema, encontrado na página da Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas - SUSAM14.
Fonte: Proposta de Consenso preliminar de Regionalização19.
Figura 1 Regiões de Saúde do Estado do Amazonas.
A região de saúde Entorno de Manaus (ENMAO), foi instituída em 2010, com 9 municípios, recebendo um acréscimo posterior de três, que não guardam continuidade espacial com o resto da regional. O perfil geográfico e demográfico da regional está sumarizado na Tabela 1.
Tabela 1 Demografia, Geografia e IDH na Região Entorno de Manaus.
Município | IDH | ÁREA Territorial (km2) | Densidade Demográfica (habs/km) | População | Distância de Manaus em Km | Via de Deslocamento para Manaus |
---|---|---|---|---|---|---|
Autazes | 0,661 | 7.632,10 | 4,19 | 32.135 | 110 (linha reta) 218 (via fluvial) | Fluvial e Terrestre |
Barcelos | 0,500 | 122.476 | 0,22 | 27.433 | 405 (linha reta) | Fluvial |
Careiro da Várzea | 0,658 | 2.643 | 9,11 | 24.937 | 29 (linha reta) | Fluvial |
Careiro | 0,630 | 6.124,30 | 5,36 | 33.517 | 102 (linha reta) | Fluvial e Terrestre |
Iranduba | 0,694 | 2.214,25 | 18,42 | 40.78 1 | 27,7 (linha reta) | Fluvial e Terrestre |
Manaquiri | 0,663 | 3.985,10 | 5,74 | 24.325 | 60 (linha reta) 67 (via fluvial) | Fluvial |
Nova Olinda do Norte | 0,629 | 5.633.00 | 5,48 | 31.749 | 138 (linha reta) 144 (via fluvial) | Fluvial |
Presidente Figueredo | 0,647 | 25.422,25 | 1,07 | 28.652 | 107 (linha reta) | Terrestre |
Rio Preto da Eva | 0,611 | 5.813,21 | 4,42 | 26.948 | 57,5 linha reta | Terrestre |
Sta. Isabel do Rio Negro | 0,479 | 62.846 | 3,25 | 19.292 | 631 (linha reta) 781 (via fluvial) | Fluvial |
São Gabriel da Cachoeira | 0,609 | 109.185 | 2,53 | 43.094 | 852 (linha reta) | Fluvial e Aéreo |
Manaus | 0,774 | 11.401,07 | 158,06 | 1.802.525 | -- | -- |
Fonte: IBGE, 2010; SEPLAN, 2014, IDH-M, 2000; SEGOV, 2011, SEMSA MANAUS, 2013.
Para o conjunto da regional, tendo apenas Manaus como exceção, a densidade demográfica é baixa e distribuída em amplos espaços territoriais, em que o mais remoto dos municípios dista mais de 800 km da capital.
As informações sobre as distâncias e meios de acesso dispostas na Tabela 1 apontam apenas os trechos que ligam Manaus a cada município da regional, pois no estado do Amazonas a movimentação intermunicipal de pessoas e cargas é pouco frequente; o deslocamento preferencial é feito por via fluvial e aérea, em trechos que ligam Manaus a municípios determinados. Ou seja, o modelo de interação entre os municípios do Amazonas e Manaus, seu principal centro de poder, é binário e não em rede. Tais características são válidas tanto para a interação intermunicipal na região de saúde do Entorno de Manaus quanto para outros espaços geopolíticos no estado15,16.
A Tabela 1 também expressa desigualdades, com destaque para a desproporção demográfica entre Manaus e os demais municípios da regional e as marcadas situações de pobreza e indicadores sociais insatisfatórios, expressos nos baixos IDH, com exceção de Manaus.
Santa Isabel do Rio Negro detém o menor PIB per capita do grupo (R$ 3.077,14), seguida por Barcelos (R$ 4. 399,71). Careiro, Manaquiri e Nova Olinda formam um grupo com PIB per capita na faixa dos R$ 5.000,00 para cada um deles, seguidos por Autazes e Careiro com PIB de pouco mais de R$ 6.000,00, per capita. Rio Preto da Eva (R$ 13.836,99) e Presidente Figueredo (R$ 18.637,63) são os municípios cujos PIBs mais se aproximam do de Manaus, com R$ 32.300,56 de PIB per capita15,17.
Tais condições têm implicações na organização e oferta de serviços de saúde, na dinâmica da regionalização no Amazonas e nesta regional em particular. Manaus não apenas tem a maior população e as melhores condições de vida na regional, mas também congrega quase 60% da população do estado; contribui com 77,7% do PIB do Amazonas e detém, no conjunto de mais de 300 estabelecimentos públicos de saúde existentes na cidade, todos os serviços públicos de alta complexidade e cerca de 89% dos de média disponíveis no estado, o que obriga os usuários de todos os municípios a acorrerem à capital do estado em busca de atenção especializada14,17. São iniquidades estruturais, associadas, não apenas ao isolamento geográfico e político, mas também à baixa capacidade de gestão e arrecadação pela administração dos municípios menores, o que também impossibilita a incorporação tecnológica nos seus serviços, perpetua a baixa resolubilidade e os precários níveis de saúde5,6.
Pavão et al.18 apresentaram indicadores socioeconômicos e demográficos para 17 regiões de saúde selecionadas no projeto Regiões e Redes. Na comparação entre elas, a região do Entorno de Manaus foi a que apresentou a razão de renda (23,7%) mais elevada no grupo estudado. Esta grande concentração de renda coexiste com um rendimento per capita que é, comparativamente, mais baixo que o das outras 3 regiões de saúde no Brasil que têm mais de 2 milhões de habitantes, tal como ocorre em Entorno de Manaus18.
De acordo com a tipologia adotada no Projeto Regiões e Redes, a região Entorno de Manaus foi enquadrada no grupo 4, que corresponde a alto desenvolvimento econômico e média oferta de serviços de saúde. A comparação com as outras regiões de saúde do mesmo grupo (que são Baixada Cuiabana e Sul_Barretos), mostra que Entorno de Manaus tem pior IDH e rendimento per capita mais baixo (R$ 663,20 contra R$ 881,10 e R$ 4.797,40 para Baixada Cuiabana e Sul_Barretos, respectivamente). Ou seja, ainda que no plano local, o PIB per capita de Manaus seja muito mais elevado que o de outros municípios que conformam essa região, seu rendimento per capita médio é comparativamente mais baixo que o encontrado em outras regiões de saúde com características similares às de Entorno de Manaus.
Tomando ainda como base os dados de Pavão et al.18, verifica-se que a razão de dependência da região do Entorno de Manaus é de 51,4, contra 41,1 e 41,6 para Baixada Cuiabana e Sul_Barretos respectivamente. Destaque-se também uma transferência de recursos federais do SUS muito desfavorável para Entorno de Manaus, que recebe R$ 78,7 per capita/ano, em contraponto a Sul_Barretos que recebe R$ 171,6, valor 2,2 vezes maior. Já a comparação com a Baixada Cuiabana mostra-se ainda mais desfavorável, visto que os R$ 339,3 per capita/ano recebidos pela região cuiabana, superam em mais de 4 vezes o valor repassado à região Entorno de Manaus. O valor da transferência de recursos SUS por habitante repassado para Entorno de Manaus é o menor, dentre as 17 regiões de saúde estudadas no projeto Regiões e Redes. Em suma, o subfinanciamento da saúde, recorrentemente apontado na literatura, persiste e aprofunda as fragilidades dos sistemas municipais que compõem a regional Entorno de Manaus.
A análise de conformidade, que utilizou o Decreto 7.508/2011 como guia da análise do processo de regionalização, evidenciou que o desenho da região Entorno de Manaus não atende ao conceito de Região de Saúde, em particular por apresentar municípios não limítrofes na composição da regional. Na documentação revisada não foi encontrada qualquer justificativa para a atual composição da regional, a qual difere da proposta disposta no PDR da SUSAM de 2003.
Para Mendes20, a regionalização compreende o desenvolvimento de estratégias e instrumentos de planejamento, administração, coordenação, regulação e financiamento de uma rede de ações e serviços de saúde num determinado território. Gestores municipais e gerentes da atenção básica entrevistados detinham informações apenas sobre seus municípios, não conseguindo formular juízos sobre o conjunto da regional. De modo similar, as atas da CIR não trazem discussões, iniciativas ou planos de ação voltados para a atuação conjunta no território, sugerindo fraco entrelaçamento no processo de gestão na região Entorno de Manaus.
A análise de conformidade da atuação da CIR, realizada através da leitura de suas atas, foi orientada pelo teor dos Capítulos III: Planejamento da Saúde; IV: Organização da Assistência à Saúde; V: Articulação Federativa, do Decreto 7.508/2011, conforme pode ser observado no Quadro 1.
A transcrição de um trecho da ata CIR-ENMAO exemplifica algumas ações voltadas para o acesso aos sistemas de planejamento do SUS:
...o Sr. “X”, secretário de saúde do município “Y”, agradece à secretaria da CIR pelo apoio dado à recuperação de senhas para acessar informações e inserir dados. Essa era uma demanda importante que não conseguíamos entender o caminho, até porque com essas mudanças de gestores acabamos nos perdendo quanto às senhas. (ATA da CIR, 2015)
A demanda acima descrita foi considerada como muito relevante pelos participantes, pois a perda das senhas impossibilitava o secretário de efetivar o registro, nos sistemas de gestão do Ministério da Saúde, de ações desenvolvidas em seu município. Tal ação – mecânica, pontual e individualizada – pouco se relaciona com as finalidades propostas para a CIR, mas expressa com clareza a descontinuidade nos processos de gestão, agravada pela elevada rotatividade de gestores, que surgiu como um tema recorrente nos documentos e depoimentos dos entrevistados, bem como na literatura5,6,9,16. Na falta de quadros técnicos qualificados e frente à escassa continuidade de gestão, a CIR se transmuta num espaço solidário de apoio mútuo, não para planejar, mas para dirimir dúvidas no manejo das ferramentas de registro das atividades prescritas pelo gestor federal.
O distanciamento, no cotidiano da CIR, das atribuições que lhe competem é por vezes percebido por seus participantes, como se pode observar na fala abaixo transcrita:
O Sr. “X “ informou que existe a intenção de, no futuro, promover a pactuação regional, com metas estabelecidas, visando qualificar gradativamente o processo de pactuação que responsabilize os envolvidos, para que possamos fazer um planejamento com os pés no chão, ao longo do tempo. Na forma cartorial isso já é feito. Faz a pactuação e guarda, e na hora de apresentar o plano, quando é cobrado que o sistema seja novamente alimentado, aí todo mundo corre. A gente precisa fazer disso uma ferramenta que, de fato nos ajude a qualificar mais a gestão e eu acho que isso é possível (ATA da CIR, 2015)
A fala evidencia uma imagem objetivo a ser perseguida, mas, ao mesmo tempo diagnostica com clareza os limites atuais de funcionamento da CIR. Tais achados não são especificidades da CIR-ENMAO, ou mesmo do estado do Amazonas. Estudo de abrangência nacional21 evidenciou que, na maioria das regiões, a CIR tem operado como um espaço burocrático, alimentado por disputas e prioridades da política partidária, nacional ou estadual, mostrando a incipiência de uma atuação capaz de discutir coletivamente as soluções para os problemas locais.
O padrão se repete na temática da organização das redes de atenção. A limitada capacidade instalada e a resolutividade nos municípios do interior, em paralelo à concentração de serviços na capital, levam à necessidade de encaminhar um grande número de casos para a média e alta complexidade. Na ausência de fluxos de referência definidos, o gerenciamento desta tarefa se mostra problemático e não tem implicado na formulação de soluções coletivas. Uma das atas exemplifica com riqueza de detalhes a orientação, dada pelo então coordenador da CIR, para que a secretária de saúde de um dos municípios da regional comparecesse à direção de um hospital estadual, para negociar um fluxo de encaminhamento que garantisse a aceitação de seus munícipes, referidos para tratamento hospitalar. (ATA da CIR, 2012)
A persistente ausência de um desenho assistencial capaz de garantir a referência de usuários na região de saúde Entorno de Manaus perpetua um fluxo informal em que situações são resolvidas caso a caso, sem que haja uma definição de prioridades e uma análise de custo-efetividade para orientar o deslocamento. A carência de discussões e pactuações voltadas para instituir as redes de assistência e efetivar os COAP explicam, em certa medida, a persistência de um modelo cartorial de gestão, com pouca adesão às necessidades concretas dos usuários e dos sistemas municipais de saúde que gravitam em torno da cidade de Manaus.
A análise do teor das resoluções da CIR-ENMAO reafirma a ideia do perfil burocrático de atuação desse comitê gestor. No período compreendido entre 2012 e 2015, a CIR-ENMAO tornou público um total de 87 resoluções. Destas, 65 (82,2%) tratavam da Homologação/Aprovação/Implementação de normativas oriundas do Ministério da Saúde e dirigidas aos municípios, ou de respostas destes, habilitando ou desabilitando ações preconizadas pelo nível federal para execução em âmbito municipal; 15 resoluções (18,9%) continham orientações sobre Repasse/Aplicação de recursos oriundos do Ministério da Saúde e 5 foram erratas de resoluções anteriores. No período, somente 1 resolução versou sobre a integração do planejamento na região de saúde e 2 trataram da ampliação de ações de assistência à saúde.
A implantação de mecanismos de gestão colegiada e regionalizada na Amazônia tem sido lenta8,10 e o Amazonas não é exceção. O estado foi um dos últimos a aderir ao Pacto pela Saúde, e em 2010 somente 50% dos municípios amazonenses tinha efetuado tal adesão. Em análise da abrangência do processo descentralização no SUS, Lima et al.22 atribuiu a diversidade encontrada a determinantes e condicionantes intersetoriais que transcendem o campo sanitário.
São conclusões similares às de Oliveira5 e Viana et al.6-9 para a Amazônia, sendo válido inferir que o ritmo lento e fragmentário do processo de regionalização aqui estudado, esteja ligado às condições estruturais desfavoráveis no plano local, dadas as limitações políticas, econômicas e administrativas dos municípios que compõem a região Entorno de Manaus. Também são relevantes os limites político institucionais, seja por parte do gestor federal – mais inclinado a priorizar os grandes problemas sanitários e/ou de grupos populacionais e municípios de grande porte, em detrimento de territórios e populações específicas – seja por parte dos gestores e corpos técnicos dos sistemas municipais de saúde, apontados por Viana et al7,9, como pouco familiarizados com as políticas do governo central. As dificuldades encontradas pela regional ENMAO para superar a fragmentação instituída pelo arcabouço jurídico federativo da administração pública podem ser bem maiores para outras regiões de saúde no estado, que não dispõem de quadros técnicos e recursos existentes na ENMAO.
Não se deve perder de vista que tais problemas não são solucionáveis apenas através de medidas de racionalização administrativa. A elevada concentração de estabelecimentos de saúde em Manaus, a precariedade da estrutura física e a baixa resolutividade dos serviços no interior do estado16,23, demandam investimento em pessoal e infraestrutura para que se inverta a tendência centrípeta do fluxo de atendimento.
O financiamento emergiu como um tema importante, tanto nos documentos da CIR quanto nas entrevistas com os gestores de saúde. Tal como identificado em outras realidades24, também foram correntes as estratégias que buscavam maximizar o repasse de recursos do Ministério da Saúde, otimizando a realização de ações “premiadas” com financiamento ou buscando espaços assistenciais vazios que permitiriam ampliar o faturamento por procedimento (Ata da CIR, 2012). É digna de nota a ausência de discussões, nas atas da CIR, sobre a otimização do acesso e uso coletivo do orçamento, nos termos instituídos na política da regionalização, mesmo quando os municípios partilhavam necessidades e demandas comuns na busca por recursos.
Outro tema recorrente nas falas dos gestores diz respeito aos grandes espaços e obstáculos da geografia amazônica. Ressaltam as dificuldades de deslocamento, grandes cheias, altos barrancos e outras imagens que enfatizam o poderio da natureza, vista como protagonista num cenário hostil, onde o dirigente se situa como personagem impotente frente a um inimigo incontornável. Nessas falas, as características do espaço amazônico são apresentadas de modo a conceder ao gestor uma prévia isenção por eventuais insuficiências e falhas do sistema de cuidados.
Entretanto, a recorrência de narrativas sobre os obstáculos naturais não se acompanha da apresentação de quaisquer estratégias para abordá-los. É uma temática ausente nos documentos de gestão – aí incluídos os da CIR – onde nenhuma referência é feita aos modos como o sistema de saúde deveria lidar com as características geográficas da região. Dada a proeminência do desafio logístico nas falas dos gestores, se poderia esperar que o processo de gestão contemplasse, nos seus planos de ação, estratégias para fazer frente ao isolamento, à lide com os períodos anuais de cheia e vazante dos rios, com as dificuldades de comunicação e o alto custo de deslocamento de equipes e pacientes. Nos dados coletados até o momento, tais estratégias não foram identificadas. Interrogados a respeito, os gestores entrevistados negam ter participado ou protagonizado iniciativas voltadas para contornar os problemas logísticos inerentes à oferta de cuidados na Amazônia. Cabe uma revisão futura dos planos municipais de saúde dos municípios incluídos na pesquisa, visando corroborar ou negar tais afirmações.
Outro elemento ausente nas narrativas – exceto por um único entrevistado – é a reflexão sobre a adequação/inadequação dos modelos e processos de gestão das instituições envolvidas no processo de regionalização. Além de representar uma novidade no cenário da descentralização no SUS, historicamente direcionado para a municipalização, a regionalização propõe a criação de redes intermunicipais de ações e serviços de saúde, cuja operacionalização exigiria importantes mudanças no arcabouço jurídico-administrativo das instituições envolvidas21.
Uma resposta satisfatória a este desafio demandaria investimento de tempo, requalificação dos processos de gestão e dos profissionais e a formalização de acordos que viabilizassem a partilha de custeio e responsabilidades de assistência, que não fazem parte da rotina atual do gestor municipal. Porém, nem os documentos da CIR e nem as falas dos gestores continham propostas destinadas a abordar ou equacionar os supracitados desafios de gestão e a fortalecer – ou a instituir – os laços intermunicipais necessários à regionalização. As insuficiências dessa institucionalidade não são prerrogativas da regional estudada, tendo sido identificadas como característica relevante no momento atual regionalização em curso no país24-26, ainda que pareça mais acentuada na região Norte.
As características descritas nos parágrafos anteriores têm implicações relevantes na delimitação das regionais no estado, propiciando um melhor entendimento do desenho – à primeira vista pouco lógico, ou pelo menos incongruente com as normativas do Decreto 7.508/11 – da região Entorno de Manaus. As falas dos entrevistados apontam a dificuldade em produzir um desenho adequado na formação das regionais no Amazonas, o que também é expresso pela variedade de mapas das regionais, que se alternam no tempo e nos poucos documentos oficiais que tratam do tema.
O processo de incluir e retirar municípios no desenho das regiões de saúde permanece em curso e já está na terceira versão. Ele gerou a composição atual da regional Entorno de Manaus, com a inclusão, a partir de 2010, de Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira. Esses municípios, situados na calha do rio Negro à montante da capital, têm o município de Novo Airão interposto entre eles e Manaus. Tal decisão resultou na supracitada descontinuidade espacial entre municípios que formam a regional Entorno de Manaus, já que Novo Airão, que guarda proximidade geográfica com Manaus, está vinculado a outra região de saúde.
Um entendimento mais adequado dessa dinâmica pode ser obtido na fala de um ex-coordenador da CIR-ENMAO, e que exercia esta função na época da coleta de dados. É um depoimento exemplar, por conter uma reflexão sistemática sobre o processo de implantação da CIR-ENMAO. O entrevistado aponta com muita clareza a necessidade de instituir estratégias que qualifiquem a gestão intermunicipal, preparando-a para superar as limitações do arcabouço jurídico político que apoia e disciplina a gestão intramunicipal, mas não lhe oferece suporte. Além disso, o ex-coordenador aponta o caráter superficial, ou mesmo artificial, da articulação em rede instituída pelo Decreto 7.508/11 e documentos anteriores, ao induzir a congregação de municípios sem história prévia de interação social, econômica e sanitária, o que parece ser o perfil da regionalização em curso no Amazonas.
São condições locais prévias que mantêm ou incrementam a competitividade e a desarticulação intermunicipal, faltando aos gestores os meios técnicos e os recursos para superar os obstáculos estruturais e institucionais e propiciar governança ao processo de regionalização21,26.
Os percalços e o ritmo lento da política de redes e regiões de saúde não se resumem a dificuldades intrasetoriais e do processo de gestão, mas também precisam ser entendidos à luz das características de organização da vida no Amazonas, marcada pela atomização e dispersão dos espaços sociais, em contraponto à absoluta centralidade de Manaus. A capital monopoliza os sistemas de abastecimento, transporte, provisão de serviços e a condução da vida política, num cenário de fraco protagonismo dos outros municípios e de interação rarefeita entre eles. No caso da saúde, o sistema binário de relações entre Manaus e outros municípios institui um tipo de organização da assistência no qual os residentes no interior do estado são obrigados a recorrer regularmente à metrópole em busca de cuidados, não havendo uma rede de interações sanitárias que se assemelhe àquilo que é preconizado para uma região de saúde.
A política da regionalização tem, entre suas principais características, o foco na interação poliárquica e cooperativa entre sujeitos institucionais, cujos escopos de atuação devem ser complementares entre si. Os dados obtidos até o momento sugerem que a eleição de redes de cooperação múltipla como elemento central de uma política pública pode ter reduzidas chances de sucesso numa realidade onde predominam a assimetria, a verticalidade e a fragilidade das relações multilaterais entre municípios. Ainda que a parca autonomia política financeira e administrativa dos pequenos municípios amazônicos seja problema há muito identificados por pesquisadores e gestores, persiste a falta de iniciativas integradoras que facilitem a gestão colegiada, a partilha integrada de tecnologia entre os sistemas municipais de saúde e reduzam a assimetria entre eles.
O apego ao determinismo geográfico no horizonte de preocupação dos gestores dificulta o reconhecimento da carência de meios sociopolíticos e institucionais para aprimorar a qualidade e a efetividade do cuidado em saúde e para superar os desafios impostos pelo espaço natural. As condições instituídas pela natureza e pelo tipo de organização social da vida amazônica podem e devem ser levadas em conta no processo de planejamento em saúde, mas deveriam ser consideradas como contextos sobre os quais a ação dos gestores se inscreve. No cenário investigado elas surgem como obstáculos reconhecidos, mas que não se tornam objeto de iniciativas coordenadas, com vistas a neutralizá-las, superá-las ou contorná-las.
Há um longo caminho a percorrer na busca de institucionalizar e efetivar as regiões de saúde no estado do Amazonas. Espera-se que os resultados aqui analisados auxiliem no entendimento do processo de regionalização em curso e nos percalços enfrentados pelos sistemas municipais e regionais de saúde, contribuindo para questionar suas concepções e práticas de gestão e também para problematizar diretrizes induzidas pelo nível federal, quando estas se mostrarem inadequadas às necessidades das populações amazônicas.