versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.4 Rio de Janeiro abr. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017224.30252016
De acordo com o que está disposto na Constituição Federal do Brasil, as ações e os serviços de saúde são de relevância pública e devem ser disponibilizadas à população de modo regionalizado e hierarquizado, com o atendimento integral das pessoas no território brasileiro, tanto em ações preventivas quanto assistenciais. Esse sistema deve ser gerido de modo descentralizado e com direção única em cada esfera de governo, constituindo um sistema pautado pela participação da comunidade no seu processo de desenvolvimento e implementação1.
A Lei Orgânica da Saúde, editada em 1990, como parte do arcabouço normativo que sustenta o SUS e trata dos seus princípios e diretrizes, identifica como parte do processo de descentralização político-administrativa a regionalização e a hierarquização da rede de serviços de saúde, constituída em níveis de complexidade crescente e que pode ser complementada por serviços de natureza privada, mediante a necessidade de garantir a plenitude desses princípios2.
Para Santos e Andrade3, o SUS é o exemplo mais acabado de federalismo cooperativo, no qual os interesses são comuns e indissociáveis e devem ser harmonizados em nome dos interesses local, regional, estadual e nacional. No federalismo do SUS, todos devem ser titulares dos interesses que permeiam a questão da saúde pública e devem manter garantida a direção única do sistema, preservando sua autonomia. O processo de institucionalização da gestão do sistema, segundo Paim e Teixeira4, pode ser caracterizado como um movimento pendular de descentralização/centralização, regido pelo esforço de se implantar o pacto federativo incorporado à Constituição Federal de 1988.
Esse processo, desencadeado fundamentalmente a partir de 1991, com a edição das normas operacionais básicas (NOB)5-7, estabeleceu progressivamente as estratégias para a organização e o funcionamento do sistema através de um processo de descentralização político-administrativa, cuja ênfase se dava nas diferentes modalidades de habilitação dos estados e municípios, tipos de serviços e modalidades de financiamento, pavimentando o caminho para o lançamento, em 2001, da norma operacional da assistência à saúde (NOAS)8, cuja principal contribuição organizativa para o sistema foi o estabelecimento de regras para o processo de regionalização das ações e dos serviços de saúde.
A partir dos anos 2000, com a necessidade de se avançar com a consolidação do acesso da população às ações e serviços de saúde de maior complexidade, torna-se imperiosa a agenda da regionalização dos serviços. O lançamento do Pacto pela Saúde9, em 2006, com seus desdobramentos para estados e municípios, e a edição do Decreto nº 7.50810, de 28 de junho de 2011, no entanto, retomam a regionalização do ponto de vista dos acordos políticos entre os gestores na organização do sistema e proporcionam uma intensificação dessa pauta na agenda da gestão, ampliando o papel das Comissões Intergestores11, no nível regional e fortalecendo a lógica do Planejamento Integrado, consubstanciado por meio do Contrato Organizativo da Ação Pública (COAP) e tendo a Região de Saúde como espaço efetivo de sua operacionalização11,12.
O Decreto 7508/11 cumpre, dentre outras coisas, a determinação constitucional de que o SUS deve ser formado por uma rede regionalizada e hierarquizada e que suas “regiões de saúde” devem organizar-se para ofertar, no mínimo, ações de atenção primária, urgência e emergência, atenção psicossocial, atenção ambulatorial especializada e hospitalar, e vigilância em saúde10, explicitando a complementariedade entre essas ações para garantir, minimamente, um cuidado integral em tempo oportuno.
Dentre o conjunto de aspectos relevantes de que dispõe o Decreto, pode ser destacada, do ponto de vista organizativo, a definição da atenção básica como a porta de entrada prioritária do sistema; e o estabelecimento dos novos dispositivos para o planejamento do SUS, compreendido como ascendente e integrado, pautado pelas necessidades de saúde e disponibilidade de recursos, induzindo a organização de redes de atenção11, privilegiando as principais linhas de cuidado que se somam aos esforços desenvolvidos pelos estados e municípios para garantir o acesso à saúde de modo regionalizado13-17.
Carvalho et al.18, analisando o processo destacado, explicita que a recente construção do Pacto pela Saúde e seu aprimoramento com a promulgação do Decreto 7.508/11, que regulamenta aspectos da Lei 8.080/90, tem como fundamento principal o respeito aos princípios constitucionais do SUS, com ênfase nas necessidades de saúde da população, o que implica o exercício simultâneo da definição de prioridades articuladas e integradas buscando a melhoria do acesso a ações e serviços de saúde, o fortalecimento do planejamento regional com a consequente definição das redes de atenção nas regiões de saúde, o aprimoramento dos mecanismos de governança e a qualificação dos processos de pactuação tripartite19.
Estudos recentes20-26, desenvolvidos com a perspectiva de analisar a regionalização do SUS, demonstram que esse processo vem sendo construído, do ponto de vista tecnopolítico, com a participação efetiva dos gestores dos estados e municípios, ainda que centrado na indução do Gestor Federal e desenvolvido em processos de institucionalidade e governança complexos e, muitas vezes, conflituosos, estabelecido por meio de relações entre os diferentes níveis de governo e entre esses e os cidadãos e os diversos segmentos da sociedade, de natureza pública ou privada.
Percebe-se que nesse processo, dentre outras coisas, vêm sendo construídos ao longo do tempo instrumentos e mecanismos de planejamento, gestão e financiamento das ações e serviços de saúde, visando à provisão e organização de um sistema regionalizado27-31, indicando-se como ponto de partida a identificação de demandas e necessidades de saúde da população, bem como o estabelecimento dos fluxos assistenciais dos serviços para a conformação de redes de atenção, construídas a partir de potenciais de referência e tipologias distintas32-34.
Percebe-se também uma perspectiva de integração das atividades governamentais nos âmbitos da atenção à saúde, da economia e das políticas sociais, tendo como fim a mitigação das iniquidades regionais no processo de formulação e implementação de políticas do setor13,35,36.
O processo de regionalização, neste sentido, além de ser influenciado pelas dinâmicas socioeconômicas, também sofre influência dos ciclos de implantação/implementação das políticas e do grau de articulação/cooperação existente entre os atores sociais componentes dos espaços de governança do setor. Constata-se um processo autorreferente e dependente, inclusive, dos referenciais teóricos, interesses e projetos nos quais os mesmos encontram-se envolvidos e militando4, pautado na capacidade desses atores em gerar consensos sobre as responsabilidades compartilhadas e em construir desenhos regionais que visem a garantia de acesso a ações e serviços de saúde20-23,37.
Mesmo resguardadas as particularidades do SUS, as tendências da regionalização da saúde no Brasil seguem o curso dos processos estabelecidos em diferentes países no tocante à necessidade de administração coordenada das ações e serviços, principalmente em termos de governança, planejamento e programação, capacitação e treinamento de pessoal, desenvolvimento de redes profissionais, bem como exercícios de enfrentamento mútuo a situações de catástrofe e funcionamento de serviços de urgência/emergência e de acesso, inclusive, a tecnologias e medicamentos de alto custo38-40. Isto, de acordo com esses estudos, vem permitindo uma utilização mais eficiente dos recursos e melhor coordenação e progresso do setor em análises comparadas41.
Considerando que a problemática da regionalização no SUS impõe compreender os desafios e as possibilidades encontradas pelos gestores em relação às novas responsabilidades previstas na construção desse processo, faz-se necessário aprofundar os conhecimentos em seus aspectos conceituais e evolutivos no âmbito da gestão do SUS.
Para tanto, trabalhamos na construção deste artigo identificando aspectos vinculados ao estabelecimento dos marcos e limites do processo de regionalização da saúde, adotando como ponto de partida o ensaio de um diálogo crítico sobre a temática e, por fim, uma primeira aproximação à experiência vivenciada na gestão federal do Sistema, no período de 2010 a 2015, que motivou este artigo, visando contribuir no apontamento de alguns desafios que ainda permanecem.
Utilizou-se da análise temática de conteúdo42 dos levantamentos normativo e documental sobre o processo de regionalização no SUS, cotejados por elementos de contextualização histórica e política no período, permitindo agregar conhecimentos sobre o objeto estudado e suas relações para além do que possa estar explícito. Cabe destacar que esta técnica tem suas limitações, dentre as quais destacamos a contaminação que o olhar do observador possa apresentar, com seus “pré-conceitos”, enviesando os resultados finais. No entanto, o objetivo do estudo foi evidenciar olhares do ponto de vista dos gestores, que pudessem contribuir, de alguma maneira, com o avanço do processo da regionalização, no cotidiano da gestão.
As fontes de dados principais foram documentos de circulação restrita do Departamento de Articulação Interfederativa da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (DAI/SGEP/MS)43,44, com a autorização institucional de uso para fins de estudo.
O primeiro documento43 diz respeito ao relatório consolidado de um ciclo de debates produzido no momento de transição do processo do Pacto pela Saúde9 para o Decreto 7.508/1110, cujo objetivo foi conhecer as preocupações relativas aos processos de gestão vinculados à regionalização do sistema e que traz o olhar dos técnicos e gestores de estados e municípios; foram convidados representantes de todas as Secretarias Estaduais de Saúde (SES) e de todos os Conselhos de Secretarias Municipais de Saúde (Cosems) em cada Estado, em cinco momentos distintos, no espaço de um mês. Os convidados deveriam apresentar o estado da arte do processo de regionalização em seus estados, a partir da referência à importância deste, como diretriz estruturante da descentralização de ações e serviços; dos parâmetros que orientaram a configuração das regiões e a constituição dos respectivos colegiados de gestão regional; de como garantir a “governança” de uma região de saúde, dada as características federalistas do país; e, inquietudes e desafios colocados para o processo.
O segundo documento44 trata do relatório de uma pesquisa institucional realizada em 2014, a partir de uma amostra selecionada de técnicos, gestores e conselheiros nacionais, composta por cinco membros dos níveis federal, estadual e municipal, ligados diretamente ao processo de pactuação nacional, visando à elaboração de um diagnóstico sobre o processo de regionalização no SUS desde a perspectiva da governança, de forma a apontar caminhos para a sua qualificação e aprimoramento. Foram aplicadas entrevistas individuais, guiadas por um roteiro previamente elaborado, a cinco membros do Conselho Nacional de Saúde, dirigentes de cinco secretarias do Ministério da Saúde; cinco membros do Conselho Nacional de Secretarias de Saúde (Conass) e Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems); e realizados três grupos focais, compostos por técnicos e assessores dos gestores ao processo de pactuação nacional.
As entrevistas individuais procuraram abordar desde o entendimento do processo de regionalização na organização do sistema de saúde às perspectivas futuras para o processo de governança, num contexto de gestão compartilhada, da percepção em relação à incorporação de necessidades em saúde e de gestão no processo de planejamento; da relação entre instâncias de pactuação e com as institucionalizadas de controle social.
Os grupos focais também foram guiados por um conjunto de questões onde foi possível abordar a percepção sobre o processo de regionalização da saúde e seus mecanismos de institucionalização com foco na governança; as relações dos diversos atores no desenvolvimento da governança no SUS: as comissões intergestores, as instâncias de controle social e outros mecanismos de participação social; o processo de governança e a tomada de decisão no planejamento regional integrado, com a consequente pactuação de responsabilidades sanitárias entre os entes federados, os desafios regionais e, por fim, as perspectivas futuras desse processo.
Os achados com relação a esses dois processos, induzidos pelo gestor federal, foram sistematizados em duas matrizes analíticas, cujas constatações sintetizam os achados postos até então (Matriz 1), bem como os limites e as perspectivas (Matriz 2) desse processo, ante os posicionamentos dos gestores do sistema sobre a temática em questão. As matrizes foram orientadas por quatro categorias temáticas vinculadas sinergicamente ao conceito que subjaz a ideia da regionalização no sistema de saúde, como diretriz estruturante da descentralização das ações e serviços no SUS; à sua implementação propriamente dita, identificando mecanismos e instrumentos que balizam a prática cotidiana por meio da configuração das regiões e constituição da rede de serviços regionalizada, estrutura de governança e papel dos gestores no processo de regionalização do SUS; e, por fim, as perspectivas que abrem possibilidades na leitura das inquietudes e desafios ante o processo de regionalização estabelecido. A divisão em duas matrizes tem como propósito estabelecer um corte temporal, de modo a deixar mais visíveis, os desafios a serem enfrentados no processo de regionalização, como diretriz estruturante do SUS.
Foram ainda observadas questões de natureza ética, de acordo com o disposto na Resolução CNS n°. 196/96, bem como as relativas a conflitos de interesses dos autores.
A partir do olhar dos protagonistas da gestão do sistema, captado a partir do Ciclo de Debates sobre o Processo de Regionalização no contexto da Gestão Interfederativa do SUS43 e da Pesquisa Institucional sobre Governança Regional no SUS44, foram elaboradas as matrizes abaixo.
Com base no Quadro 1, fica evidente que a regionalização pode ser considerada como uma diretriz estruturante da descentralização das ações e dos serviços de saúde no SUS, construída na perspectiva de se garantir o direito à saúde por meio do acesso resolutivo e equânime da população23,25,36. Trata-se de um processo em andamento desde a Lei Orgânica da Saúde, passando pelas normas operacionais e pelo Pacto pela Saúde, não sendo algo que se inicia ou mesmo se renova a priori com o Decreto 7508/1118,26.
Quadro 1 Evidências temáticas do processo de regionalização, segundo os achados da análise documental.
Categoria temática | Ciclo de Debates | Pesquisa Institucional |
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Regionalização como diretriz estruturante da descentralização das ações e serviços no SUS | ● Garantir o direito à saúde, promovendo a equidade e contribuindo para a redução de desigualdades sociais; | ● A regionalização tem suas bases legais na Lei 8.080/1990, desenvolvendo-se por meio das Normas Operacionais e do Decreto 7.508/2011 e seus dispositivos complementares; |
● Diminuir vazios assistenciais; organizar ações e serviços de saúde em rede de atenção; garantir o acesso resolutivo; direcionar investimentos; | ● A regionalização ainda não está na pauta efetiva da gestão do sistema; | |
● Permitir uma gestão solidária, cooperativa com compartilhamento de responsabilidades; fortalecer o processo de descentralização e o papel do Estado e dos municípios e intensificar a negociação e pactuação entre gestores. | ● Há de se considerar que alguns Estados avançaram na questão da regionalização da assistência, e que existem diferentes movimentos no país. | |
● O modelo de regionalização da saúde vem sendo construído de modo descolado dos demais processos de regionalização; | ||
● Só é possível avançar no processo de regionalização rediscutindo o modelo de financiamento do SUS. | ||
Configuração das regiões e constituição da rede de serviços regionalizada | ● Os aspectos levados em conta para configurar as regiões foram: critério populacional; critérios de escala e escopo; fluxos assistenciais; contiguidade territorial; malha viária (rede de transporte); rede de comunicação; acessibilidade; suficiência da atenção básica e realização de parte da média complexidade; perfil socioeconômico e cultural e perfil epidemiológico. | ● O interesse dos gestores na conformação das regiões não se baseia nas necessidades dos usuários; sua conformação tem se dado em função de questões administrativas e não de saúde; |
● Os munícipios com maior capacidade não têm interesse e ou incentivos para materializar o princípio de solidariedade; | ||
● As normativas do SUS não consideram as especificidades regionais, que a rigor são feitas para municípios ideais não existentes; | ||
● Há um viés político partidário dificultando o processo de regionalização. | ||
Estrutura de “Governança” e papel dos gestores no processo de regionalização do SUS | ● Institucionalizar CIR, promovendo a criação de câmaras técnicas subsidiando a construção de pactuações entre regiões na CIB; | ● A burocracia tem determinado as ações da CIR; há fragilidade nos espaços de negociação e decisão dos gestores do SUS nas regiões de saúde; e a ausência de grupos técnicos que assessorem os gestores nas CIR fragilizam estes espaços de decisão; |
● Garantir uma maior participação do gestor estadual, fortalecendo a continuidade de projetos regionais pelos membros da CIR; | ● A baixa qualificação técnica e déficit de pessoal nas estruturas municipais e estaduais comprometem a gestão do sistema; | |
● Ampliar a participação de outros atores no processo de governança regional (Conselhos de Saúde, movimentos sociais, iniciativa privada, etc.), estabelecendo parcerias entre SES, Regionais do Estado e COSEMS; contar com apoiadores de campo; existência de Consórcios Públicos e de Ouvidorias. | ● O “furor” normativo do SUS tem atrapalhado as funções originais dos espaços de negociação e decisão do sistema; a execução dos programas acaba se inviabilizando pelos interesses e disputas partidárias; | |
● As questões políticas/partidárias interferem diretamente nas relações federativas, com impactos negativos no setor saúde. |
Cabe destacar as diversas interpretações a que está sujeito esse decreto, implicando no desenvolvimento de estratégias contraditórias ou mesmo ambíguas, com destaque para o Contrato Organizativo de Ação Pública (COAP), que tem tido um desenvolvimento muito localizado no país, evidenciando deficiências nos instrumentos e ferramentas básicas vinculadas processo de planejamento e avaliação do SUS31,44.
Mesmo com os avanços normativos e os esforços dos gestores no sistema, a regionalização efetivamente ainda não está na agenda prioritária, a não ser que se considerem os aspectos relativos à organização assistencial dos serviços de saúde, a exemplo da iniciativa das redes de atenção construídas nessa perspectiva nos últimos anos.
Há que se destacar o esforço na direção do estabelecimento de uma gestão mais solidária e cooperativa, com maior compartilhamento de responsabilidades, ainda que, na prática, as questões relativas ao financiamento do sistema e à infraestrutura da rede de serviços colonizem a agenda da gestão, constituindo-se num entrave ao pleno estabelecimento do processo de regionalização19,23,25. Ainda que, de fato, não se tenham estabelecido, de modo claro, critérios de rateio de recursos no tocante ao provimento dos serviços nas regiões de saúde e à direcionalidade em relação aos investimentos compartilhados, é necessária uma ampla discussão acerca do modelo de financiamento do setor43,44.
Há uma necessidade expressa de simplificação normativa, uma vez que o arcabouço jurídico-institucional do sistema o torna complexo, ambíguo e de difícil apreensão por parte das equipes gestoras30,44. Faz-se necessária, neste sentido, a construção de novos arranjos normativos que respaldem o desenvolvimento do SUS e a profissionalização da gestão e que estipulem claramente responsabilidades e limites para cada um dos entes federativos, a exemplo de uma Lei de Responsabilidade Sanitária4,25,30,45.
Há também um descolamento entre o modelo de regionalização da saúde e os demais das políticas públicas, particularmente as sociais, fator que traz instabilidade a seu processo de implementação33,34,44.
Ademais, o poder econômico do nível federal é o que tem determinado o desenvolvimento das políticas e dos programas nos municípios e nos estados, deturpando o estabelecimento de ações baseadas nas necessidades de saúde35,36,43,45.
Fica evidente ainda que a institucionalidade do processo de regionalização é, portanto, ainda incipiente e carece de meios e respaldos necessários para sua consolidação, haja vista a indefinição de papéis e funções entre os atores políticos, a complexidade que norteia alguns processos, a falta de recursos, bem como as mudanças provocadas pelos ciclos políticos25,30,44.
Os gestores reforçam que o modelo de atenção não pode avançar desvinculadamente do de gestão; pelo contrário, deve ser claramente definido para que se dê a governança regional, comungado por todos e fortalecido num processo sólido de cogestão das redes de saúde no território44.
Por fim, tanto a situação que envolve o papel da União, quanto do estado, somada às dificuldades organizativas dos municípios, são desafios para a conformação do arcabouço regional e da consolidação dos acordos de governança em torno do COAP44,45. Como também fica marcado que, em certa medida, o estado compete na atenção à saúde com municípios ao invés de realizar o apoio técnico e financeiro a estes, o que gera tensionamentos e, consequentemente, fragilidades no âmbito da gestão do SUS.
No que tange às inquietudes expressas no Quadro 2, fica patente que para a construção dos desenhos regionais, os instrumentos/ferramentas são utilizados de forma inadequada, limitando a capacidade dos gestores em conceber/compreender as regiões em suas expressões e necessidades de saúde, dado o centralismo descendente das decisões coletivas (comissões intergestores tripartite e bipartite)43-45.
Quadro 2 Inquietudes e desafios ante o processo de regionalização estabelecido, segundo os achados da análise documental.
Categoria Temática | Ciclo de Debates | Pesquisa Institucional |
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Inquietudes e desafios ante o processo de regionalização estabelecido | ● Desenvolver cultura solidária entre os entes federados, bem como definir as reais responsabilidades sanitárias de cada um; cumprir as pactuações entre gestores na região de saúde; fortalecer as CIR; | ● A fragmentação dos sistemas de informações nacionais ainda persiste; |
● Garantir a pactuação entre regiões de saúde intraestaduais e interestaduais; superar as dificuldades de acesso e deslocamento no território; | ● Instrumentos/ ferramentas são utilizados de forma inadequada, | |
● Consolidar a Atenção Básica como ordenadora da rede de atenção à saúde; desconcentrar serviços de saúde; ampliar a descentralização de serviços de média complexidade; ampliar a capacidade instalada; | ● Os estados estão sem acesso às informações municipais repassadas para os bancos de dados nacionais; | |
● Financiar adequadamente; implantar processo de regulação; regular os prestadores privados; evitar a interferência de fatores político-partidários; | ● O planejamento ascendente que não se concretiza e não está voltado para suprir as necessidades de saúde da população, pois o que tem definido as prioridades locais tem sido o poder econômico do governo federal; | |
● Articular regiões de saúde e regiões administrativas do Estado; construir regiões de saúde interestaduais; qualificar os gestores e servidores da saúde; interiorizar e fixar profissionais; | ● As conferências de saúde municipais e estaduais que ainda funcionam como etapas para a conferência nacional, perdendo a capacidade de orientar as agendas locais/regionais; | |
● Instituir processos de monitoramento e avaliação; utilizar os instrumentos de planejamento e gestão; | ● As deliberações das conferências, principalmente da nacional, não são incorporadas à agenda do SUS; | |
● Garantir a participação e o controle social. | ● Os espaços do controle social estão tomados pelos interesses “corporativos”, distanciando-se dos interesses da população. |
Soma-se a isto, a fragilidade no processo de funcionamento dos colegiados intergestores, particularmente os regionais, onde ainda se constata a ausência de câmeras técnicas e baixa disponibilidade de pessoal tecnicamente qualificado em muitas regiões de saúde, o que faz com que estes espaços careçam da “autoridade” regional necessária, dificultando o processo de planejamento regional calcado em necessidades de saúde locais4,30,31,44,45.
As abordagens apontam a necessidade de se levar em conta as particularidades e as especificidades internas ao sistema, pois uma parte das fragilidades identificadas deve-se a definições centralizadas e homogêneas na operacionalização das ações inerentes ao processo de planejamento, organização regional, suas diferenças históricas e culturais.
Do ponto de vista do planejamento, o movimento “descendente” e desconexo interfederativamente, traz prejuízos consideráveis para a implementação de políticas de âmbito locorregional43-45.
Sendo assim, os gestores destacam que as debilidades municipais e/ou estaduais, no que tange às ferramentas e instrumentos de planejamento, bem como a indefinição do papel do estado em muitas ocasiões, traduzem-se em dificuldades vinculadas à determinação por parte da União, por exemplo, de onde os recursos devem ser aplicados e gerenciados em âmbito regional, prejudicando o planejamento regional integrado e de base ascendente.
Por fim, outra abordagem destacada diz respeito à atuação dos conselhos de saúde e à participação dos cidadãos no sistema, onde foi apontada uma série de situações negativas, a exemplo da marcada presença de grupos de interesses particulares nos Conselhos de Saúde, produzindo nestes uma progressiva burocratização e, consequentemente, motivando resistências por parte das Comissões Intergestores ao Controle Social43-45.
O debate atual sobre a temática da regionalização no sistema de saúde brasileiro vem ganhando novos contornos nos últimos quinze anos, tanto em virtude da edição por parte do gestor federal de um denso arcabouço normativo sobre a questão, quanto em virtude do número expressivo de estudos sobre a temática, desenvolvidos, principalmente, a partir da instituição do Sistema Único de Saúde – SUS.
Cada vez mais fica evidente a necessidade de se pensar políticas com enfoque regional, adequadas a uma realidade que respeite aspectos histórico-culturais dos processos de gestão, permitindo consolidar o desenvolvimento equânime do SUS. Neste sentido, importa ressaltar o aprimoramento dos processos de planejamento e as práticas de monitoramento e avaliação; para tanto, será necessário investir nas pessoas que operam o sistema, notadamente em processos de capacitação, que possibilitem profissionalizar a gestão do sistema.
Por outro lado, a abordagem em saúde deve ser intersetorial; pensar em saúde significa implicar outros setores que têm influência e que, em grande parte, desconhecem seus desafios, potencialidades e processos.
Do ponto de vista da articulação interfederativa, considerando o regime federativo do Brasil, fica também evidente que será preciso intensificar a relação entre a União, estados e municípios, no que diz respeito aos compromissos e responsabilidades a assumir perante o processo de regionalização.
Isto exigirá um esforço no sentido de obter uma maior precisão quanto ao papel de cada ente federativo na organização do sistema, particularmente o papel do estado na coordenação da conformação de redes e na identificação da oferta de serviços e necessidades de saúde, bem como na cooperação com os seus municípios. Para tanto, faz-se necessário investir na transição do modelo baseado na oferta para outro calcado em necessidades de saúde e que, frente aos serviços ofertados, a implementação de estratégias preventivas e de promoção da saúde seja seu foco.
Fica patente que essas debilidades inerentes ao processo de regionalização são históricas e se arrastam desde o início do sistema, e que somente superando essas fragilidades poderemos fortalecer a governança regional, cuja velocidade de implementação dependerá da capacidade e da vontade política, e será distinta no país.
Por fim, cabe destacar a complexidade do tema e a necessidade de aprofundar aspectos aqui abordados em estudos posteriores, com vistas a desvendar entraves e indicar estratégias no setor saúde capazes de fortalecer a regionalização como processo dinamizador na implementação das políticas públicas, consolidando o SUS como expressão de uma política social inclusiva.