versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.3 Rio de Janeiro mar. 2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018243.35132016
Acidentes de trabalho fatais (ATF) têm participação expressiva na mortalidade, são evitáveis, constituindo-se em um importante problema de saúde pública. Requerem, portanto, precisão dos seus registros e informações para um adequado planejamento e gestão. No mundo, morrem a cada ano cerca de dois milhões de trabalhadores por acidentes de trabalho1, enquanto no Brasil a mortalidade por ATF foi estimada em 7/100.000 trabalhadores em 20122. O monitoramento desses agravos é realizado em diversos sistemas de informação com dados baseados em três dimensões conceituais: 1) o tipo de agravo, caracterizado como “lesões, envenenamentos e algumas outras consequências de causa externa”, que na Classificação Internacional de Doenças 10ª. Revisão, CID-10, compreendem os códigos do capítulo XIX (S e T), e mais recentemente, o Capítulo XX das Causas Externas (V, X e Y); 2) relação causal com o trabalho, que corresponde a acidentes ocorridos durante a realização de atividades de trabalho (típicos) ou locomoção (trajeto); e 3) o óbito como desfecho.
Os sistemas de informação de interesse para a identificação de casos de ATF são de instituições previdenciárias, de trabalho e emprego, e de saúde3. Sistemas de informação de instituições previdenciárias são os mais utilizados para o monitoramento e estudos sobre agravos à saúde relacionados ao trabalho, porque comumente se baseiam na identificação do nexo ocupacional requerido para benefícios de compensação diferenciados. Em países onde a previdência social é universal e estatal ou atinge ampla cobertura, esses sistemas podem ser empregados como representativos de todos os trabalhadores3,4. No entanto, em países onde é elevado o número de trabalhadores não cobertos pela previdência, o uso desses sistemas de informação é limitado. Sistemas de informação provenientes de instituições relacionadas à proteção do emprego e trabalho podem conter registros de dados sobre ATF5,6. Sistemas nacionais de informação em saúde são comumente universais e podem incluir dados que permitem estimar estatísticas vitais como a mortalidade. Dentre estes, os mais conhecidos são os que se baseiam nos dados de declaração de óbito (DO), que podem conter campos específicos sobre a relação da causa da morte com o trabalho. Outras fontes de dados comuns sobre ATF são pesquisas repetidas conduzidas com amostras nacionais, de natureza complementar, empregadas para estimar a validade de registros fornecidos compulsoriamente por empresas, reconhecidamente pouco confiáveis7.
No Brasil, vários sistemas de informação incluem registros de ATF e vêm apresentando melhora na sua qualidade e cobertura, especialmente nas últimas décadas8, muito embora o uso para a pesquisa ou vigilância ainda seja pequeno. Um estudo de revisão mostrou que a disponibilidade de dados sobre ATF é pouco conhecida, o que pode causar negligência na qualidade dos registros e baixo preenchimento9. Nesta pesquisa pretende-se contribuir para um maior conhecimento sobre os sistemas de informação que registram ATF no Brasil, identificando e descrevendo esses sistemas, sua qualidade e cobertura.
Esta pesquisa é de natureza documental realizada com materiais sobre os sistemas de informação, gerenciados por instituições públicas nacionais do Brasil, nos quais se registram dados sobre acidentes de trabalho. Inicialmente, criou-se uma lista das instituições de interesse, especificamente, o Ministério da Previdência Social, Instituto Nacional de Seguridade Social, Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério da Saúde e Ministério da Justiça. Em seguida, para cada instituição foram buscados nos portais oficiais acessos a sistemas de informação, manuais, guias, suas bases de dados e condições de acesso. Também foram consultados os instrumentos de coleta de dados, fluxos de informação e ferramentas para tabulação e geração de gráficos.
As categorias de análise foram: instituição responsável; população de referência – pessoas cujos dados são elegíveis para o sistema de informação; fontes – instrumentos empregados para alimentar sistemas de informação; tipo de acesso – público ou restrito; formatos - tipo de arquivo disponível; e período – em anos. Em cada instrumento de alimentação buscaram-se campos de interesse para o reconhecimento de ATF: 1) código da CID; 2) relação do acidente com o trabalho; e 3) o desfecho óbito. Para melhor interpretação, estes sistemas foram classificados em: a) inespecíficos para agravos relacionados ao trabalho; e b) específicos, exclusivos para os agravos relacionados ao trabalho. A análise se baseou na organização das informações em tabelas e na elaboração de um diagrama contendo o fluxo comum de dados, cujo início se estabelece com a ocorrência do agravo e o término com a conclusão dos registros nos sistemas. Para cada etapa, barreiras potenciais para a identificação e registro dos casos foram identificadas e apresentadas.
O projeto foi registrado no Sistema Nacional de Ética em Pesquisa, Plataforma Brasil, e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia.
No Brasil foram encontrados oito sistemas de informação disponíveis, que contêm dados sobre ATF. Cinco são inespecíficos para acidentes de trabalho: 1) o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM); o Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS); 3) dois subsistemas do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), o de Intoxicações Exógenas e outro do Programa Vigilância de Violência e Acidentes (VIVA), todos administrados pelo Ministério da Saúde; e 4) sob a responsabilidade do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) informa sobre mortes de trabalhadores registrados ativos (Tabela 1). Três sistemas são específicos, i.e., restritos a agravos à saúde relacionados ao trabalho: 1) dois são do Sinan, Ministério da Saúde, o subsistema Acidentes de Trabalho Grave e o de Acidentes de Trabalho com Exposição a Material Biológico; e 2) o Sistema de Informação de Comunicação de Acidentes do Trabalho, Siscat, da Previdência Social (Tabela 2). Os pontos de geração de informação e seus respectivos fluxos estão mostrados na Figura 1.
Tabela 1 Características dos sistemas de informação inespecíficos para agravos relacionados ao trabalho e que contemplam dados sobre acidentes de trabalho fatais (ATF). Brasil, 2015.
Instituição responsável | Sistema de informação | População de referência | Fonte | Campos de interesse para a identificação de ATF | Tipo de acesso | Formatos | Período | ||
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Códigos da CID | Relação com o trabalho | Desfecho | |||||||
Ministério da Saúde | SIM | População total | Declaração de óbito, DO | <causabas> Causa básica do óbito e causas associadas | <acidtrab> Acidente de Trabalho 1-Sim; 2-Não; 9-Ignorado. | ------- | Público / DATASUS | DBC | 1979 a 2013 |
SIH/SUS | População admitida em hospitais próprios e conveniados do SUS. | Autorização de Internação Hospitalar, AIH | <diag_pri> Código do diagnóstico Principal <diag_sec> Código do diagnóstico secundário | <car_int> Caráter da internação 1-Eletivo; 2-Urgência; 3-Acidente no local de trabalho ou a serviço; 4-Acidente no trajeto para o trabalho; 5-Outros tipos de acidentes de transito; 6-Outros tipos de lesões por envenenamento | <apres> Motivo de apresentação 1-Por alta; 2-Por permanência; 3-Por transferência; 4-Por óbito; 5-Por outros motivos; 6-Por procedimento de parto | Público / DATASUS | DBC, CSV | 1992 a 2015 | |
SINAN – Intoxicação exógena | Casos de intoxicação exógena | Ficha de investigação de intoxicação exógena | ------- | <doenca_tra> Exposição decorrente do trabalho/ocupação 1-Sim; 2-Não; 9-Ignorado | <evolucao> Evolução do caso 1-Cura sem sequela; 2-Cura com sequela; 3-Óbito por intoxicação exógena; 4-Óbito por outra causa; 5-Perda de seguimento; 9-Ignorado. | Público / MS e CCVISAT | MS: CSV CCVISAT: SAS, XLS e DBF | MS: 2007 a 2015 CCVISAT: 2006 a 2012 | |
VIVA – componente VIVA/SINAN | Casos de violência | Ficha do Sinan específica para investigação de violência doméstica, sexual e/ou outras violências | ------- | <rel_trab> Violência relacionada ao trabalho 1-Sim; 2-Não; 9-Ignorado | <evolucao> Evolução do caso 1- Alta; 2-Evasão/Fuga; 3-Óbito por Violência; 4-Óbito por outras causas; 9-Ignorado | Público / DATASUS, preenchimento de formulário requerido | CSV | 2009 a 2011 | |
Ministério do Trabalho e Emprego | RAIS | População de trabalhadores formais registrados, com carteira assinada | Declaração da RAIS / Declaração do Caged | ------- | ------- | <caus_afast> Motivo de desligamento 60-Falecimento; 62- Falecimento decorrente de acidente do trabalho típico; 63-Falecimento decorrente de acidente do trabalho de trajeto; 64-Falecimento decorrente de doença profissional; e Outros | Restrito com senha / cadastramento requerido ao MTE | CSV, XLS, PDF, RTF | 1985 a 2013 |
CID: Classificação Internacional das Doenças; RAIS: Relação Anual de Informações Sociais; SIM: Sistema de Informação sobre Mortalidade; SIH/SUS: Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde; SINAN: Sistema de Informação de agravos de notificação; VIVA: Programa Vigilância de Violências e Acidentes; DATASUS: Departamento de Informática do SUS; MS: Ministério da Saúde; CCVISAT: Centro Colaborador para Vigilância das Doenças e Acidentes Relacionados ao Trabalho, Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia.
Tabela 2 Características dos sistemas de informação específicos para agravos relacionados ao trabalho. Brasil, 2015.
Instituição responsável | Sistema de informação | População coberta | Fonte | Campos de interesse para a identificação de ATF | Tipo de acesso | Formatos | Período | |
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Código da CID | Desfecho | |||||||
Ministério da Saúde | SINAN – Acidente de Trabalho grave | População Economicamente Ativa Ocupada, PEAO | Ficha de investigação de acidente de trabalho grave | ------- | <evolucao> Evolução do caso 1-Cura; 2-Incapacidade temporária; 3-Incapacidade parcial; 4-Incapacidade total permanente; 5-Óbito por acidente de trabalho grave; 6-Óbito por outras causas; 7-Outro; 9-Ignorado. | Público / CCVISAT | SAS, XLS, DBF | 2006 a 2012 |
SINAN – Acidente de Trabalho com exposição a material biológico | População trabalhadora do setor saúde | Ficha de investigação de acidente de trabalho com exposição a material biológico | ------- | <evolucao> Evolução do caso 1-Alta com conversão sorológica; 2-Alta sem conversão sorológica; 3-Alta paciente fonte negativo; 4-Abandono; 5-Óbito por acidente com exposição à material biológico; 6=Óbito por outras causas; 9=Ignorado. | Público / CCVISAT | SAS, XLS, DBF | 2006 a 2012 | |
Ministério da Previdência Social | SISCAT | População contribuinte da previdência | Formulário da Comunicação de Acidente do Trabalho, CAT | Tipo:1 1-Típico; 2-Doença; 3-Trajeto. CID | Houve morte?1 1-Sim; 2-Não | Restrito / DATAPREV, Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho, AEAT2 | CSV, XLS, PDF, XML, HTML, RTF | 1999 a 2013 |
CID: Classificação Internacional das Doenças; SINAN: Sistema de Informação de Agravos de Notificação; SISCAT: Sistema de Informação de Comunicação de Acidentes do Trabalho; CCVISAT: Centro Colaborador Vigilância de Acidentes de Trabalho da Universidade Federal da Bahia; DATAPREV: Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social
1 Código do campo não encontrado; 2 No AEAT, além dos dados das CAT, também são apresentadas informações dos benefícios acidentários concedidos pelo Instituto Nacional de Seguridade Social, INSS e registrados no Sistema Único de Informações de Benefícios da Previdência, SUIBE.
O SIM provê dados exclusivamente sobre mortes e integra o conjunto de fontes de informação para as estatísticas vitais do País, a partir de dados de declarações de óbitos. Nessas, é possível identificar ATF, com base nos códigos da CID para as causas básicas e associadas ao óbito. Para as mortes por causas externas, especificamente, são requeridas informações relativas às prováveis circunstâncias: tipo – se a causa foi acidente, suicídio, homicídio ou outra; e se foi acidente de trabalho (sim/não/ignorado) (Tabela 1). A natureza universal é a principal vantagem do SIM, ao incluir todos os trabalhadores independentemente do seu tipo de contrato de trabalho, cobrindo trabalhadores informais e militares e assim, permitindo a comparabilidade com as estimativas de outros países. Outra vantagem do SIM é o registro da ocupação, com códigos da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), criada com base na International Standard Classification of Occupations (ISCO). Infelizmente, os registros do ramo de atividade econômica e tipo de vínculo de trabalho, se formal ou informal, dentre outros, ainda não se encontram disponíveis.
A partir da última década, a cobertura do SIM vem se elevando, variando de 87,0% em 2000 a 96,1% em 201110, sendo classificado pela Organização Mundial de Saúde como de qualidade intermediária11. A qualidade do SIM também vem melhorando, como mostra a queda do percentual de óbitos com causas mal definidas que passou de 7,2% em 2009, para 6,7% em 201110. A introdução na declaração de óbito de uma seção específica para as circunstâncias de morte não naturais (causas externas), com um campo para registro da relação da morte com o trabalho, foi um avanço considerável para a informação sobre acidentes de trabalho. Entretanto, o preenchimento desse campo é baixo, média de 20,0% entre 2000 e 201012. Este tipo de informação também foi incorporado às declarações de óbitos nos Estados Unidos13,14 e poderia ser empregado mais amplamente no mundo, notadamente, nos países onde é grande o sub-registro de ATF.
Outro sistema inespecífico para agravos relacionados ao trabalho, mas que registra ATF é o SIH/SUS15,16. Embora limitado a hospitais da rede própria ou conveniada do SUS, ficando excluídos os privados, o SIH/SUS abrange cerca de 70% do total das hospitalizações do País17,18. A fonte de origem dos dados, requerida para fins de pagamento, é a Autorização de Internação Hospitalar (AIH), na qual são registrados: 1) códigos da CID para diagnósticos principal e secundários; 2) dados sobre a relação do acidente com o trabalho (“acidente no local de trabalho ou a serviço” e “acidente no trajeto do trabalho”); e 3) se foi óbito a razão da alta hospitalar. Em 2001, os campos para registros desses dados foram atualizados15(Tabela 1) e incluídos códigos da ocupação segundo a Classificação Brasileira de Ocupações Resumida (CBOR) e do ramo da atividade econômica de acordo com a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), o número de registro da empresa no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) e sob a denominação de “vínculo com a previdência” (empregado, empregador, autônomo, desempregado, aposentado e não segurado na Previdência Social)16, que de fato considera posição na força de trabalho.
O SIH-SUS é uma importante fonte adicional de dados sobre ATF, apesar de nem sempre hospitalizações ou atendimentos de emergência ocorrerem nesses casos. Alta cobertura e acurácia são presumíveis devido à natureza dessa informação, embora a relação com o trabalho possa estar ausente ou mal registrada por interesses pecuniários envolvidos19. Um estudo sobre a qualidade dos registros para causas externas do SIH/SUS mostrou que o nível de concordância entre os diagnósticos registrados e um padrão-ouro foi moderado20, porém o foco não era acidentes de trabalho. Registros hospitalares têm sido empregados e recomendados para a vigilância de ATF nos Estados Unidos21 e na Finlândia, onde bases de dados de admissões hospitalares nacionais estão disponíveis22.
O Sinan compreende vários subsistemas de informação para doenças de notificação compulsória, cujas notificações são emitidas por unidades de saúde; alguns desses subsistemas contêm dados úteis para a identificação de ATF. Em dois deles, Intoxicações Exógenas e Violência, há campos para registro da relação com o trabalho (sim/não/ignorado), e dois outros com registros sobre o desfecho que pode ser óbito (Tabela 1). Similarmente, estes campos compõem outros subsistemas do Sinan como o do Tétano Acidental, Acidentes por Animais Peçonhentos e Hepatites Virais. Uma vantagem deles é o registro codificado da “ocupação”, embora raramente registrado.
O sistema de informação da RAIS é gerenciado pelo MTE e alimentado mensalmente pelo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) com relatórios fornecidos compulsoriamente pelas empresas. Para cada trabalhador ativo, seu status de emprego e toda mudança no contrato de trabalho como a remuneração, tipo de ocupação, licenças maternidade ou por motivo de saúde, para os quais óbitos por acidentes de trabalho, sejam estes típicos ou de trajeto, são registrados e enviados ao Caged. Esta base de dados tem seu acesso autorizado após solicitação formal (Tabela 1). Não encontramos estudos sobre ATF empregando essa base, ou informações sobre sua cobertura e qualidade, mas obviamente pode ser empregada como fonte complementar de dados. Vale notar que a RAIS se limita a trabalhadores registrados formais, aproximadamente 51% dos brasileiros ocupados em 201023.
O subsistema Acidente de Trabalho Grave, do Sinan, compreende a notificação compulsória de casos fatais e não fatais envolvendo mutilações ou hospitalizações em adultos, ou de qualquer gravidade em crianças ou adolescentes. Outro subsistema é o de Acidente de Trabalho com Exposição Potencial à Material Biológico. Em ambos, quando ocorrem mortes estas são registradas em dois campos do formulário fonte, que também contém dados sobre a ocupação, ramo de atividade econômica, nome e número de registro (CNPJ) da empresa (Tabela 2). Infelizmente, quase dez anos desde o seu início em 2007, estes subsistemas continuam em implantação com alto sub-registro. Até 2011, 71,7%24 dos municípios não haviam relatado nenhuma notificação, apesar da tendência de aumento da cobertura25. Isto pode ser resultante da estratégia inicial de limitação da notificação a unidades sentinelas, i.e., serviços de saúde especialmente habilitados, modificada em 2014, quando todos os serviços de saúde se tornaram elegíveis para notificar acidentes de trabalho26. O acesso a dados destes subsistemas depende de autorização mediante pedido ao Ministério da Saúde.
O Siscat é um sistema de informação exclusivo para agravos relacionados ao trabalho, e o mais empregado no país para se estimar indicadores epidemiológicos nacionais. Sua fonte é a Comunicação de Acidentes de Trabalho (CAT) e não se limita a causas externas, incluindo também enfermidades. É documento emitido compulsoriamente por empresas, serviços de saúde ou mesmo trabalhadores, independentemente da gravidade, ou de ter ocorrido incapacidade para o trabalho. Registram-se além de dados de identificação do trabalhador e empresa, o tipo do agravo (1-típico/2-doença/3-trajeto), o código CID-10, e se houve morte (1-sim/2-não). O Anuário Estatístico de Acidentes de Trabalho (AEAT), disponível no website, apresenta alguns dados do Siscat, enquanto um infologo permite criar tabelas apesar de limitadas a poucos indicadores e descritores (Tabela 2). Outro sistema de informação da Previdência é o Sistema Único de Informações de Benefícios da Previdência, Suibe, não exclusivo para agravos ocupacionais. Baseado em registros de licenças concedidas por incapacidade para o trabalho por doença, pensões por incapacidade e aposentadorias, esses dados são também apresentados no AEAT. Para ATF, todavia, o uso do Suibe é limitado porque pensões para parentes do falecido restringem-se a casos elegíveis. Embora os dados do Siscat tenham boa qualidade de registro, sub-registro já foi encontrado, especialmente para incapacidade de 15 ou menos dias de duração27, tempo requerido para recebimento de benefício de compensação.
Devido a sua natureza violenta, ATF são registrados por órgãos da segurança pública a exemplo do Sistema Nacional de Estatísticas em Segurança Pública e Justiça Criminal, (Sinespjc), e o Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais e sobre Drogas (Sinesp). Várias fontes de dados alimentam o Sinespj, como o Boletim de Ocorrência (BO), compulsoriamente emitido por delegacias de polícia para toda morte violenta. Portanto, sempre que ocorre óbito por causas externas, a delegacia de Segurança Pública territorial deve ser comunicada, que então registra o BO e emite a guia de levantamento cadavérico, documento que autoriza a polícia técnica a conduzir a perícia no local, a coleta de provas e a remoção do corpo pelos institutos forênsicos de medicina legal (IML) que então realizam os exames necessários para a emissão do laudo cadavérico e a declaração de óbito28. Se a morte ocorrer durante o transporte para a unidade de saúde ou nesta, após recebimento do cuidado médico, de qualquer tempo de duração, o procedimento é semelhante: comunicação à delegacia territorial, que emite o BO, a guia de levantamento cadavérico, e assim sucessivamente. O Sinesp é informatizado e descentralizado, representa um avanço do Sinespjc, e o seu objetivo é criar uma única base de dados para garantir uma eficiente interoperabilidade entre instituições de segurança pública e defesa29. No entanto, o Sinesp ainda não está completamente implantado e seus dados não estão disponíveis. Através do país, os IML30 têm sistemas de informação diferentes que podem também registrar dados forênsicos e do BO, permitindo a identificação do ATF. Esses dados podem ser empregados na pesquisa e na vigilância31.
Em síntese, são múltiplos registros de ATF em vários sistemas de informação do país, situação semelhante à de outros países. Isso decorre de diferentes interesses e responsabilidades das instituições que necessitam criar e manter registros desses eventos. Originalmente criados com propósitos administrativos, como os do MTE e da Previdência Social, podem ser empregados no monitoramento e até mesmo na prevenção. Todavia, eles são limitados por abrangerem apenas os trabalhadores formais, e alguns apenas para os cobertos pelo seguro acidente de trabalho, RAT, deixando os informais de fora de suas estatísticas de saúde ocupacional. Além disso, sem uma chave individual comum essas múltiplas bases de dados requerem complexos procedimentos para sua integração em uma base única. Embora alguns sistemas de informação tenham cobertura limitada e baixa qualidade de registros, eles podem ser empregados para imputação de dados perdidos ou para corrigir erros de preenchimento de outras. A sobreposição de responsabilidades, entre múltiplas instituições, pode ocorrer trazendo dificuldades para a coordenação e integração de práticas de modo eficiente e efetivo, ainda um grande desafio para as políticas de saúde do trabalhador32.
A recente criação de um único sistema de informação sob a responsabilidade da seguridade social nacional, o E-social, que integra dados históricos da vida de cada trabalhador, como a ocupação, ramo de atividade econômica, licenças maternidades e por incapacidade entre outras, traz uma perspectiva otimista para ambas, a vigilância e a pesquisa33. No âmbito do SUS, o E-saúde é uma estratégia de informatização da informação que prevê a redução das barreiras para a interoperabilidade sintática, semântica e de processos entre os sistemas de informação em saúde. Essa integração favorece a implementação da interdisciplinaridade e a transversalidade das ações de saúde34.
A Figura 1 pretende contribuir para melhor compreensão das conexões entre os vários sistemas de informações envolvidos no registro de ATF, mostrando os fluxos, barreiras ou filtros, que presumidamente limitam a cobertura e qualidade dos dados. O ponto de partida é o ATF que pode ocorrer nas seguintes circunstâncias: 1) no local da ocorrência do acidente, no local de trabalho ou fora dele quando realizando uma tarefa de trabalho – é necessária a comunicação imediata à delegacia de polícia, que registra a ocorrência e emite o BO e a guia para o levantamento cadavérico, a ser realizado pela polícia técnica. Uma investigação sobre as circunstâncias é realiza com depoimentos de testemunhas no local onde materiais são coletados como prova. O corpo é levado ao IML mais próximo para necropsia e exames laboratoriais quando necessário. Finalmente, o laudo cadavérico (LC) e a DO são liberados, contendo informações que podem ser úteis para estabelecer a relação do acidente com o trabalho; 2) a morte ocorreu durante o transporte ou quando em tratamento em serviço de emergência ou hospitalar – a instituição responsável informa à delegacia de polícia e todos os passos descritos previamente devem ser seguidos, e BO, LC e DO são liberados. Se o atendimento médico foi fornecido pelo SUS, o ATF é registrado no SIH/SUS e em vários subsistemas do Sinan, quando aplicável; 3) a morte ocorre em locais remotos, distantes, onde não existe delegacia de polícia, IML ou serviço de saúde. Os procedimentos mudam de acordo com o contexto, mas em qualquer condição todos os documentos legais devem ser emitidos.
Independentemente da circunstância de ocorrência da morte, registros de ATF no Sinan serão feitos se houver unidades de atenção à saúde com equipes capacitadas, uma vez que a universalidade da notificação compulsória do ATF é recente. Além disso, para qualquer caso de trabalhador formalmente registrado, o InSS registra o ATF no Siscat, quando a CAT é emitida, e no Suibe quando parentes recebem indenizações ou pensões (Figura 1). Registros em ambos, Siscat e Suibe, dependerão do desejo da família da vítima e também do seu conhecimento sobre o direito de receber esses benefícios e a importância do registro do ATF pelas equipes de saúde ou pelos empregadores. De fato, empregadores necessitam informar sobre ATF nos formulários mensais do Caged e, consequentemente, na RAIS (Figura 1).
Barreiras e filtros nesses fluxos de informação são comuns e descritos em outros países35,36. Neste estudo, empregou-se o Modelo de Filtros para Registro de Acidentes de Trabalho descrito por Webb et al.36, no qual são identificados filtros que podem impedir ou comprometer o fluxo necessário, gerando sub-registro de casos verificável em etapas subsequentes. Portanto, filtros são barreiras parciais para o registro, enquanto as barreiras são impedimentos. Eles variam e são influenciados por aspectos individuais da vítima, dos profissionais responsáveis pelo registro, e pela gestão do sistema de informação36. Este Modelo facilita a compreensão das razões do sub-registro em cada etapa dos sistemas de informação35, e demonstra a factibilidade do uso de múltiplas fontes de dados para imputação, quando necessária para ampliar a qualidade dos registros35,37. Estratégias para a melhoria da qualidade dos registros precisam estar pautadas no reconhecimento das causas e efeitos dos diversos filtros e barreiras em seus respectivos contextos35.
Para simplificar, os filtros foram classificados em dois tipos; no primeiro falta de registro da morte no sistema de informação e no segundo tipo registra-se a morte, mas não a sua relação com o trabalho (Figura 1). As causas desses filtros têm sido estudadas, com resultados que sugerem o seguinte: 1) treinamento insuficiente de profissionais envolvidos38; 2) pobre motivação e consciência sobre a relevância do registro da relação com o trabalho39,40; 3) a preocupação com as implicações legais, especialmente entre aqueles responsáveis pelo registro do ATF41; 4) a falta de equipamentos ou outros recursos necessários para notificar ou para investigar a relação do óbito com o trabalho42; e 5) as pressões de parte de empregadores, colegas, profissionais de saúde, advogados, e até mesmo familiares para a omissão do registro da relação com o trabalho devido a interesses pecuniários43.
É possível que essas barreiras e filtros tenham se intensificado devido às transformações no mundo do trabalho que vêm ocorrendo no Brasil, a exemplo da redução das restrições à terceirização e o consequente aumento da precarização do trabalho44. Outros filtros e barreiras, no entanto, podem ser indiretos. Por exemplo, o Nexo Técnico Epidemiológico, NTEP, foi criado em 2007 pelo InSS, para promover a identificação e registro da relação com o trabalho de acidentes e doenças para trabalhadores formais por médicos qualificados. Consequentemente, os benefícios acidentários poderiam ser concedidos independentemente da emissão da CAT27,45. Infelizmente, como a quantidade desses benefícios é usada para definir o valor a ser pago compulsoriamente pelas empresas para o seguro acidentes de trabalho, isto pode causar o desenvolvimento de estratégias visando o não registro de casos de ATF. Ressalta-se ainda a fragilização de diretrizes relacionadas à saúde nas políticas adotadas por muitos sindicatos e movimentos de trabalhadores nas últimas décadas32.
Este estudo constatou que, no Brasil, dados sobre ATF podem ser identificados em diversos sistemas de informação de distintas instituições governamentais. Todavia, não existem variáveis unívocas compartilhadas entre os sistemas, o que limita o uso de múltiplas fontes para melhorar a cobertura e a qualidade dos dados, comprometendo a completitude e a precisão das estimativas epidemiológicas. Contudo, é clara a complexidade da identificação e do registro de dados sobre ATF. Em muitas situações, o seu não reconhecimento pode ser intencional, sendo resultante de interesses pecuniários e/ou relacionados a penalidades legais. A existência de barreiras e filtros importantes é presumível, sendo necessários estudos com foco na qualidade e cobertura dos sistemas de informação úteis para a investigação do ATF. Ressalta-se que o registro apropriado dos ATF precede e permite o planejamento de iniciativas preventivas eficientes.