versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.40 no.2 São Paulo abr./jun. 2018 Epub 07-Jun-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-3841
As doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) oferecem grande risco à saúde da população brasileira. Em 2009, representaram 72,4% das mortes, sendo a principal causa de mortalidade.1 A doença renal crônica (DRC), embora não esteja incluída oficialmente nesse grupo, representa um grande impacto, uma vez que apresenta como principais causas a hipertensão arterial sistêmica (HAS) e o diabetes mellitus (DM), duas das principais DCNTs.
No Brasil, o último inquérito da Sociedade Brasileira de Nefrologia, em 2014, mostrou que o número estimado de usuários com DRC em terapia dialítica foi de 112.004.2 Esse número tem crescido em média 5% ao ano desde 2011, portanto a patologia é um problema de saúde pública que necessita de diagnóstico e tratamento precoce.3
Registros em saúde são essenciais para melhorar a abordagem preventiva e o tratamento das doenças, além de diminuir custos, o que torna a gestão em saúde mais eficiente. A DRC apresenta evolução conhecida, que pode sofrer intervenções, sendo possível retardar a progressão, além de evitar a mortalidade precoce e a terapia renal substitutiva (TRS).
Segundo o conceito definido tanto pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) como pela Sociedade Brasileira para Informática na Saúde (SBIS), o registro eletrônico de saúde (RES) é um repositório de informações a respeito da saúde de indivíduos, numa forma processável eletronicamente.4 Esses registros foram regulamentados pela Portaria nº 2.073, de agosto de 2011, do Ministério da Saúde.5
Existem diversos registros sobre DRC dialítica nos EUA,6,7 Europa,8,9,10 Austrália11,12 e Ásia.13 Um número menor de registros é encontrado no Oriente Médio14,15 e na América Latina e Caribe.16,17 Ao realizarem uma revisão sistemática, Liu et al.18 encontraram 144 registros renais, e na análise de 48 deles foram usados como critérios: acessibilidade, avaliação de dados quanto ao usuário, aos tratamentos e resultados. No término do estudo, concluíram que apenas 17 registros apresentavam boa acessibilidade para as informações gerais.
Existem poucos registros de acompanhamento de usuários com DRC em fase pré-dialítica.6-17 Assim, é necessária uma validação dos dados de registros eletrônicos para caracterização do perfil desses usuários em relação aos indicadores clínicos de qualidade, tanto para a área de pesquisa quanto para as decisões clínicas e de gestão.
Este estudo teve como objetivo validar os dados do registro eletrônico do Centro Hiperdia Juiz de Fora e apontar características do perfil desses usuários em relação aos indicadores clínicos de qualidade para a DRC.
O sistema de registro eletrônico em saúde foi desenvolvido especialmente para o Centro Hiperdia Juiz de Fora, utilizando o banco de dados em SQL com a linguagem PHP Ajax - Javascript. Os arquivos do sistema de registro dos atendimentos foram exportados no formato CSV ou Excel e transformados em formato SPSS 18.0. A validação foi feita utilizando syntax do SPSS para identificar as inconsistências dos dados e então corrigi-las ou eliminar informações de dados inconsistentes. Dessa forma, a validação de dados - condição imprescindível para a confiabilidade das informações - proporciona integridade e confiabilidade das informações gravadas no banco de dados, para assim não serem desprezadas. O procedimento evita incongruências de informações que porventura o atendente tenha gerado ao inserir os dados.19
Validação de dados é: "a correção ou melhoria de problemas de dados, incluindo valores em falta, valores incorretos ou fora do intervalo, respostas que são logicamente inconsistentes com outras respostas no banco de dados e registros de pacientes duplicados".20 É importante diferenciar de validação de instrumento, que é a "adequação entre o fenômeno estudado e o conceito teórico a ser medido".21
Foi verificado que muitas informações inseridas na RES do Centro Hiperdia tinham dados inconsistentes ou fora do padrão, e, para que pudessem ser utilizadas em pesquisas clínicas posteriores, foi necessário padronizá-las.
Primeiramente, foram verificados os nomes dos usuários registrados no sistema. Durante o processo de atendimento dos usuários, houve algumas duplicações de registros, então foi preciso avaliar se os nomes duplicados se tratavam de homônimos ou duplicação de registro de uma mesma pessoa. Quando se tratava de duplicação, um dos registros foi eliminado, cujas informações foram acrescidas no registro correspondente.
Em seguida, foram consistidas e padronizadas as informações sobre idade, sexo, unidade básica de saúde de origem (UBS) e cidade. Também foram padronizadas as seguintes informações: peso, altura e renda familiar e individual. Os códigos da cidade foram alterados, para que permanecessem os mesmos utilizados nos arquivos do IBGE. Essa consistência se faz necessária porque os dados precisam ter o mesmo formato para ser utilizados como comparativos entre o trabalho realizado pela equipe interdisciplinar antes e depois dos tratamentos.
Um dos trabalhos realizados durante esse processo foi a verificação dos resultados dos exames laboratoriais digitados no sistema. Verificamos que os resultados foram digitados em um único campo, impedindo a consistência dos valores de cada tipo de exame. A digitação dos exames também não tinha um padrão, apresentando várias incongruências, como registro ou omissão do % ou utilização de escalas diferentes, às vezes mg, às vezes g, por exemplo. Foi necessário realizar leitura, conversão e consistência de todos os exames digitados.
A partir das informações consistidas, procurou-se verificar e manter as informações corretas, descartando aquelas com eventuais problemas (duplicidade, erros de inserção ou inserção de dados em campos errados, etc.), assim os dados estarão válidos para utilização em pesquisas clínicas.
Trata-se de um estudo longitudinal do tipo coorte retrospectiva. A população do estudo foi composta por pacientes atendidos no período de agosto de 2010 a dezembro de 2014, usuários do Centro Hiperdia de Juiz de Fora, Minas Gerais - criado em 2010 pela Secretaria de Saúde do Governo de Minas Gerais para monitorar a HAS, DM e DRC. Anteriormente, os usuários com DRC eram acompanhados desde 2002 pelo Instituto Mineiro de Ensino e Pesquisas em Nefrologia (IMEPEN) - criado por professores da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora, com o objetivo de oferecer atendimento multiprofissional aos usuários com DRC, visando retardar a progressão da doença.
A área de abrangência do Hiperdia de Juiz de Fora inclui as seguintes microrregiões do IBGE: Juiz de Fora (25 municípios), Santos Dumont (3 municípios) e São João Nepomuceno (9 municípios), com uma população de 837.991 habitantes. O sistema Hiperdia presta atendimento a usuários encaminhados pela atenção primária de saúde dos municípios da área de abrangência. As informações demográficas foram levantadas na admissão, e as demais variáveis foram coletadas durante o atendimento. Os critérios de inclusão no Hiperdia para HAS foram: ausência de resposta ao uso concomitante de três ou mais medicamentos anti-hipertensivos prescritos em doses farmacologicamente eficazes; lesão de órgãos-alvo; ou suspeita de Hipertensão Arterial Secundária. Para DM: todo usuário com DM1 ou diabético tipo DM2 cujo controle metabólico estivesse adequado. Para DRC: queda anual da taxa de filtração glomerular estimada pela fórmula do MDRD (Modification of Diet in Renal Disease) (∆FGe) ≥ 5mL/min/ano (Fge inicial - TFGe final/número de meses de observação x 12) mL/min/1.73m2 ou proteinúria > 1,0 g/dia ou proteinúria < 1,0 g/dia associada à hematúria ou doenças nos estágios 3B, 4 e 5 ou ainda usuários que apresentassem aumento abrupto de ≥ 30% da creatinina sérica ou diminuição de 25% da taxa de filtração glomerular estimada ao iniciarem alguma medicação que bloqueasse o eixo renina-angiotensina-aldosterona.
Como critérios de inclusão foram considerados os registros dos usuários com mais de 18 anos que passaram por pelo menos duas consultas e foram acompanhados no ambulatório de DRC. Foram analisadas as variáveis: a) demográficas: sexo, idade, cor, cidade de origem, escolaridade, renda, tabagismo, etilismo; b) clínicas: pressão arterial, peso, altura, índice de massa corporal (IMC); c) laboratoriais: creatinina sérica, taxa de filtração glomerular estimada (MDRD), glicemia de jejum, triglicérides, hemoglobina e hemoglobina glicada, colesterol total, HDL e LDL, cálcio total, fósforo e potássio; d) medicações: inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECA), bloqueadores do receptor AT1 de angiotensina II (BRAT), betabloqueadores, estatinas, ácido acetil salícico (AAS), diuréticos, insulina, biguanidas, sulfoniureias e fibratos; e) outras variáveis: tempo de acompanhamento e número de consultas.
O projeto foi submetido ao Comitê de Ética da Universidade Federal de Juiz de Fora e aprovado sob o protocolo nº 36345514.1.0000.5139.
No período de agosto de 2010 a dezembro de 2014, foram atendidos 7.266 usuários no Centro Hiperdia de Juiz de Fora. Foram excluídos 55 (0,76%) com idade inferior a 18 anos ou sem identificação da idade. Foram eliminados também 2.949 (40,5%) usuários com apenas uma consulta e 2.265 (31,2%) usuários que não foram atendidos no ambulatório de DRC. Assim, a população final deste estudo foi de 1.977 usuários (Figura 1).
Para validar a entrada dos dados no sistema, foi inserida uma flag, impedindo a aceitação de alfanumérico. Apesar disso, foram realizadas validações complementares para eliminar valores discrepantes. Foram validados resultados de 41 tipos de exames. Na Tabela 1, podem ser verificados os exames analisados na população estudada. O número de exames invalidados foi baixo, apenas cálcio total teve percentual maior que 1% (1,36%). Para os demais exames, a invalidação foi baixa. Em relação ao número de usuários com cada tipo de exame, em 98,1% havia resultado de creatinina (a maior taxa), e 55,8% apresentavam resultado de colesterol LDL (menor taxa de realização).
Tabela 1 Percentual de exames invalidados e frequência de realização de exames por usuário atendido no ambulatório de DRC no Centro Hiperdia Juiz de Fora (ago. 2010/dez. 2014)
Tipo de exame | % invalidados | Pacientes com exames | % |
---|---|---|---|
Creatinina | 0,23% | 1960 | 98,1% |
Glicemia de jejum | 0,01% | 1934 | 96,8% |
Triglicérides | 0,12% | 1896 | 94,9% |
Hemoglobina | 0,30% | 1925 | 96,4% |
Hemoglobina glicada | 0,15% | 1460 | 73,1% |
Cálcio total | 1,36% | 1651 | 82,7% |
Potássio | 0,24% | 1911 | 95,7% |
Fósforo | 0,21% | 1562 | 78,2% |
Colesterol total | 0,06% | 1914 | 95,8% |
Colesterol HDL | 0,80% | 1894 | 94,8% |
Colesterol LDL | 0,08% | 1114 | 55,8% |
Em relação à caracterização demográfica, conforme pode ser observado na Tabela 2, a média de idade dos usuários foi de 66,2 (± 13,4) anos. As idades variaram entre 19 e 102 anos, sendo que 58% dos usuários possuía mais de 64 anos. Houve uma discreta predominância de homens (51,4%), de raça/cor branca (40,3%), com ensino fundamental incompleto (61,5%). O etilismo foi identificado em 15,1% dos usuários e o tabagismo, em 10%. Quanto à procedência, a maioria é moradora da cidade de Juiz de Fora (75,5%). A renda individual mensal do grupo estudado se situa em torno de 1,35 (± 1,48) salário mínimo. O número médio de pessoas que moram na residência apurado pelo estudo foi em torno de 2,9 (± 1,55) habitantes/domicílio.
Tabela 2 Distribuição da amostra quanto às variáveis sociodemográficas dos usuários atendidos no ambulatório de DRC no Centro Hiperdia Juiz de Fora (ago. 2010/dez. 2014)
Variável | n | % |
---|---|---|
Sexo | ||
Masculino | 1026 | 51,4% |
Feminino | 970 | 48,6% |
Média de idade | 66,2 ± 13,4 anos | |
Cor da pele | ||
Branca | 805 | 40,3% |
Parda | 686 | 34,4% |
Preta | 501 | 25,1% |
Amarela | 5 | 0,3% |
Grau de instrução | ||
Não sabe ler/escrever | 223 | 11,3% |
Alfabetizado | 55 | 2,8% |
Fundamental incompleto | 1229 | 62,1% |
Fundamental completo | 174 | 8,8% |
Médio incompleto | 79 | 4,0% |
Médio completo | 175 | 8,8% |
Superior incompleto | 20 | 1,0% |
Superior completo | 25 | 13% |
Etilismo | 302 | 15,1% |
Tabagismo | 199 | 10,0% |
Renda média, salário mínimo | 1,35 ± 1,48 | |
Número médio de pessoas residentes no domicílio | 2,9 ± 1,55 people | |
Cidade | ||
Juiz de Fora | 1506 | 75,5% |
Outras cidades | 488 | 24,5% |
Na tabela 3, o tempo médio de acompanhamento no Centro Hiperdia foi de 21 (± 15) meses. O número médio total de consultas foi de 5,5 (± 4), e no ambulatório de DRC foi de 3,2 (± 2,51). Em relação ao IMC, 75,4% de todos os usuários estão acima do peso ou com sobrepeso. O acompanhamento desses usuários em outros ambulatórios foi: DM (37,1%) e HAS (37,8%). Quanto ao estágio da DRC, os resultados indicaram que os estágios 3a (26,2%) e 3b (25,4%) foram os mais frequentes. As principais medicações em uso foram diuréticos (82,9%), BRAT (62%) e estatina (60,7%). A administração concomitante de IECA+BRAT no grupo estudado foi de 24%; no entanto, ao analisar separadamente os diabéticos, foi observada proporção de 30,5%. Foi verificado que os pacientes faziam uso de IECA: 39,4% na categoria 1; 46,8% na categoria 2; 52,6% na categoria 3A; 51,7% na categoria 3B; 50,7% na categoria 4; e 46,1% na categoria 5. Com relação à administração de BRAT, as proporções foram: 54,5% na categoria 1; 59,6% na categoria 2; 60,6% na categoria 3A; 61,6% na categoria 3B; 68,2% na categoria 4; e 69,7% na categoria 5.
Tabela 3 Distribuição da amostra quanto aos indicadores clínicos de acompanhamento dos usuários atendidos no ambulatório de DRC no Centro Hiperdia Juiz de Fora (ago. 2010/dez. 2014)
Variável | N | % |
---|---|---|
Tempo médio de acompanhamento | 21 ± 15 meses | |
Número total de consultas nos ambulatórios | 5,5 ± 4 | |
Número total de consultas no ambulatório DRC | 3,2 ± 2,51 | |
Classificação quanto ao IMC | ||
Abaixo de 17 (muito abaixo do peso) | 1 | 0,1% |
Entre 17 e 18 (abaixo do peso) | 23 | 1,2% |
Entre 18,5 e 24,99 (peso normal) | 459 | 23,4% |
Entre 25 e 29,99 (acima do peso) | 726 | 37,0% |
Entre 30 e 34,99 (obesidade I) | 456 | 23,3% |
Entre 35 e 39,99 (obesidade II - severa) | 176 | 9,0% |
Acima de 40 (obesidade III - mórbida) | 119 | 6,1% |
Acompanhamento em outro ambulatório | ||
Diabetes melittus | 755 | 37,8% |
Hipertensão arterial | 741 | 37,1% |
Categoria da DRC | ||
> = 90 | 66 | 3,4% |
60 - 89 | 282 | 14,4% |
45 - 59 | 523 | 26,7% |
30 - 44 | 631 | 32,2% |
15 - 29 | 381 | 19,4% |
< 15 | 76 | 3,9% |
Principais medicações | ||
IECA | 996 | 49,9% |
BRAT | 1239 | 62,0% |
Betabloqueadores | 1020 | 51,1% |
Estatina | 1213 | 60,7% |
AAS | 937 | 46,9% |
Diuréticos | 1656 | 82,9% |
Biguanida | 678 | 34,0% |
Sulfonil ureia | 467 | 23,4% |
Fibrato | 210 | 10,5% |
Insulina | 145 | 7,3% |
IECA + BRAT | 479 | 24% |
Número médio de medicações | 4,3 ± 1,9 |
Em relação aos principais exames laboratoriais, pode ser verificado na Tabela 4 que os resultados dos exames no início do atendimento estavam controlados, exceto triglicérides. Em relação à glicemia de jejum, casos de diabéticos foram analisados isoladamente, cuja média foi de 159,23 (mg/dL) para os diabéticos e 105,05 (mg/dL) para os não diabéticos.
Tabela 4 Estatísticas dos principais exames laboratoriais iniciais dos usuários atendidos em ambulatório de DRC no Centro Hiperdia Juiz de Fora (ago. 2010/dez. 2014)
Exame (média±dp) | Total | Não diabéticos | Diabéticos |
---|---|---|---|
Creatinina (mg/dL) | 1,76 ±0,98 | 1,78 ± 0,87 | 1,71±1,14 |
Hemoglobina (g/L) | 13,18±1,95 | 13,33±1,93 | 12,94±1,96 |
Cálcio total (mg/dL) | 9,60 ± 0,91 | 9,61 ± 0,92 | 9,58 ± 0,90 |
Colesterol HDL (mg/dL) | 47,05 ±13,28 | 47,35 ±13,20 | 46,57 ±13,41 |
Colesterol LDL (mg/dL) | 115,90 ±44,95 | 117,35 ±43,29 | 113,86 ±47,16 |
Colesterol total (mg/dL) | 195,64 ±53,57 | 195,69 ± 50,95 | 195,57 ±57,51 |
Triglicérides (mg/dL) | 174,11 ± 134,87 | 159,58 ±109,41 | 196,96 ± 164,76 |
Potássio (mEq/L) | 4,68 ± 0,64 | 4,66 ± 0,62 | 4,70 ± 0,68 |
Fósforo (mg/dL) | 3,83 ± 0,98 | 3,73 ±0,98 | 3,99 ± 0,94 |
Glicemia de jejum (mg/dL) | 125,92 ±64,80 | 105,05 ±37,85 | 159,23 ± 82,55 |
Hemoglobina glicada (%) | 7,62 ±2,40 | 6,56 ±1,67 | 8,67 ± 2,56 |
Em relação à meta da hemoglobina glicada em usuários não diabéticos, 81,7% estavam na meta no início do estudo, e 85,6% no fim. Para os diabéticos, 36% estavam na meta no início, mas esse número aumentou para 52,1% no fim do estudo. Para a meta de pressão arterial, foi verificado que 34,3% estavam com pressão controlada no início, e 49,8% no fim. Para os indicadores clínicos de qualidade da DRC, foi verificado que 33,7% da amostra estava fora da meta, com delta médio de queda de 0,09 (mL/min/1.73m2) e uma mediana de zero. Para corrigir pelo tempo de acompanhamento, foi calculada a taxa de queda anual (Delta TFG/meses de acompanhamento) *12, resultando no valor médio de 4,94 ± 2,95 (mL/min/1.73m2), com mediana de 0,11(mL/min/1.73m2). A proteinúria foi citada de diversas formas, por exemplo, relação albumina/creatinina e proteinúria de 24 horas, cujas unidades variaram de miligramas a gramas. Não houve mudança clínica ou estatisticamente relevante, e a variável não é normal (Tabela 5).
Tabela 5 Distribuição da amostra quanto aos indicadores clínicos de qualidade dos usuários atendidos em ambulatório de DRC no Centro Hiperdia Juiz de Fora (ago. 2010/dez. 2014)
Variável | % |
---|---|
Declínio da taxa de filtração glomerular | 33,7% |
Taxa de queda anual (mL/min/1.73m2) | 4,94 ± 2,95 |
Proteinúria de 24 horas (mg/24h) (Média, ± DP e mediana) | |
Inicial | 540 ± 1503 (153) |
Final | 630 ± 1180 (171) |
Dentro da Meta de Hemoglobina glicada diabéticos | |
Inicial | 36% |
Final | 52,1% |
Dentro da Meta de Hemoglobina glicada não diabéticos | |
Inicial | 81,7% |
Final | 85,6% |
Meta da pressão arterial | |
Inicial | 34,3% |
Final | 49,8% |
Nota: Metas: hemoglobina glicada: < 7 (65 anos) e < (+65 anos); pressão arterial: 140/90 mmHg; TFG: < 5ml/ano
Neste estudo, foi validado o registro eletrônico do Centro Hiperdia Juiz de Fora e caracterizado o perfil dos usuários em relação aos indicadores clínicos de qualidade para o acompanhamento da DRC. Encontramos uma população predominantemente idosa e obesa com bom controle laboratorial e clínico.
O gasto com DRC terminal nos EUA, em 1991, foi de 7 bilhões de dólares, e de 30 bilhões em 2008.22 No Brasil, um estudo realizado em 2008 observou que o gasto do Ministério da Saúde com procedimentos de alto custo no Brasil girou em torno de R$ 8,6 bilhões, no período de 2000 a 2004, e cerca de R$ 780 milhões foram despendidos no custeio de medicamentos de alto custo na DRC.23 Importante notar que, a despeito do alto custo da DRC, existe uma literatura extensa sobre DRC terminal focando seus vários desfechos. Porém, mesmo em países que apresentam registros extensos de DRC, como os EUA, com o United States Renal Data System (USDRS), dados sobre a fase pré-dialítica são escassos. Nosso estudo validou um registro de DRC pré-dialítica em um ambulatório que atende a uma parcela da região da zona da mata mineira, e esses dados poderão ser utilizados para um melhor entendimento das prioridades dessa população.
Comparando a amostra do estudo com dados da população brasileira, foi observado que, embora a proporção de maiores de 60 anos no Brasil seja de 13,7%, no estudo foi verificado que 58% têm idade acima de 64 anos.24 Um dado previsível, pois se trata de uma doença crônica não degenerativa (DCND). No censo brasileiro de diálise, o percentual é de 32,5% para a faixa etária acima de 64 anos.2 Em relação ao sexo, segundo o Censo de 2011, as mulheres representaram 51,6% da população brasileira, o que difere um pouco da população de estudo, que foi de 48,6%, e também do censo de diálise, que é de 42%. Do ponto de vista de raça ou cor, os dados estão de acordo com as informações sobre a população brasileira, com maior percentual de pardos/negros. Sobre o grau de instrução, o maior percentual encontrado foi de ensino fundamental incompleto. Isso difere do grau de escolaridade da população com mais de 25 anos no Brasil, provavelmente devido à maior média de idade dos participantes do estudo. Por essa mesma razão, a renda média dos usuários atendidos é menor que a renda da população geral brasileira, que é de 2,47 salários mínimos, comparado a 1,35 salário mínimo verificado no estudo.25
A taxa de tabagismo é similar ao número encontrado em um estudo realizado anteriormente no Hiperdia de Juiz de Fora,26 que apontou 10,12%. Esse número está abaixo da taxa nacional levantada pelo Vigitel (17%), em 2008,27 o qual reflete a estratégia nacional brasileira que prevê aconselhamento e medicação para tabagistas.26
A obesidade é uma epidemia mundial que, segundo dados do Vigitel de 2014, acomete 17,9% da população geral brasileira, mas a população adulta da região sudeste tem maior índice de pessoas acima do peso, 50,45%.27 No último Censo Brasileiro de Diálise, foram encontrados 37% de usuários com sobrepeso, obesidade ou obesidade mórbida,2 número abaixo do encontrado em nosso estudo, que foi de 75,4%, denotando que condutas mais agressivas devem ser tomadas com relação a esse fator de risco para múltiplas DCND, que é evitável.
Um estudo realizado por nosso grupo de pesquisa mostra prevalência de 17% de doença renal diabética.25,28 No entanto, no presente estudo foi verificada prevalência de 37,8% de diabetes mellitus. Isso demonstra que o número de indivíduos diabéticos está aumentando em virtude de fatores como crescimento e envelhecimento populacional, maior urbanização, crescente prevalência de obesidade e sedentarismo, bem como maior sobrevida de usuários com DM. Quantificar a prevalência atual de DM e estimar o número de pessoas com diabetes no futuro é importante, pois permite planejar e alocar recursos de forma racional.29 Uma epidemia de DM está em curso, com projeção de chegar a 300 milhões de casos no mundo em 2030. Cerca de dois terços dos indivíduos com DM vivem em países em desenvolvimento, onde a epidemia tem maior intensidade, com crescente proporção de pessoas afetadas em grupos etários mais jovens, coexistindo com o problema que as doenças infecciosas ainda representam.29 Em nosso estudo, a prevalência de diabéticos, apesar de elevada, pode ter sido subestimada, dada a glicemia de jejum nos "não diabéticos" ter sido 105 mg/dL
Inquéritos populacionais em cidades brasileiras nos últimos 20 anos apontaram uma prevalência de HAS acima de 30%. Considerando-se valores de PA ≥ 140/90 mmHg, 22 estudos encontraram prevalências entre 22,3% e 43,9% (média de 32,5%), de mais de 50% entre 60 e 69 anos e 75% acima de 70 anos.29,30 No Canadá, as taxas de controle pressórico melhoraram significativamente, de 13,2% de usuários na meta, em 1992, para 64,6%, em 2007.31 O melhor controle pressórico está associado à melhora dos desfechos cardiovasculares, como visto em recente metanálise de Xie, em 2015.32 Em nosso estudo, 34,3% dos usuários estavam inicialmente na meta da pressão arterial, e no fim do acompanhamento houve melhora do controle pressórico, com 49,8% dos usuários na meta.
Com relação ao uso de medicamentos, o uso concomitante de IECA e BRAT apresenta indicações precisas, como proteinúria de difícil controle ou insuficiência cardíaca congestiva.33 Em nosso estudo há baixa prevalência do uso de ambas as drogas, isoladas e em conjunto. Nota-se que há diminuição do uso do IECA na categoria 1 e 5 da DRC, porém o uso do BRAT é mais elevado nas categorias 4 e 5. Uma revisão sistemática realizada por Catalá-Lopez indicou que não houve piora da TFG em diabéticos que fizeram uso de ambas as drogas.34
O declínio da TFG foi muito baixo, denotando excelente controle dos usuários. A taxa média do delta foi de 5 ml positivos, ou seja, houve ganho na função renal, o que reflete que o modelo de atenção à saúde adotado, multiprofissional, é adequado e fornece bons resultados. O mesmo raciocínio pode ser utilizado quando observamos o indicador HBA1C para os diabéticos, que apresentou melhora relevante.
Como limitações do estudo, nem todos os exames solicitados pelo médico foram realizados. Além disso, os exames não foram realizados em um mesmo laboratório. Este é um estudo de "vida real", portanto mostra a dificuldade de realização de exames laboratoriais em nosso meio.
Dados validados são de vital importância para gestores em saúde para monitorização dos usuários. Nossa população é predominantemente idosa, de baixa renda, obesa, usuária de polifarmácia e tem pouca escolaridade. É, portanto, uma população vulnerável que necessita de cuidados multiprofissionais intensivos para retardar a progressão da doença e diminuir a morbimortalidade. O fato de a taxa de filtração glomerular (TFG) apresentar-se com delta positivo é uma evidência de que estamos atingindo a principal meta: retardar o início da terapia renal substitutiva, e com isso melhorar a qualidade de vida e diminuir os custos.