versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.111 no.1 São Paulo jul. 2018 Epub 02-Jul-2018
https://doi.org/10.5935/abc.20180111
A operação de Jatene tornou-se o procedimento cirúrgico de escolha para o reparo da transposição das grandes artérias (TGA) em neonatos e lactentes. Complicações tardias, principalmente relacionadas à via de saída pulmonar e às artérias coronarianas, já são bem reconhecidas. O comportamento da valva neo-aórtica tem sido motivo de crescente preocupação pelo seu potencial de necessidade de reoperações tardias.
Avaliar a prevalência e os fatores de risco associados à regurgitação da valva neo-aórtica em 127 pacientes em pós-operatório tardio de cirurgia de Jatene.
Dos 328 sobreviventes da cirurgia de Jatene no Biocor Instituto operados de outubro de 1997 a junho de 2015, todos os pacientes em seguimento de pós-operatório foram contatados via ligação telefônica, sendo 127 elegíveis para o estudo. Os pacientes foram divididos em dois grupos, Grupo TGA simples e Grupo TGA complexa, com médias de follow-up de 6,4 ± 4,7 anos e 9,26 ± 4,22 anos, respectivamente. Foi realizada avaliação ecocardiográfica com medidas indexadas (escore Z) do anel da valva neo-aórtica, do seio de Valsalva, da região sinotubular e da aorta ascendente, bem como quantificação do grau de regurgitação da valva neo-aórtica.
A incidência de leve regurgitação da valva neo-aórtica em nossa casuística foi de 29% em um follow-up de 7,4 ± 4,7 anos. Regurgitação moderada foi observada em 24 pacientes, com idade média (± desvio-padrão) de 9,81 ± 4,21 anos, sendo 19 (79%) no Grupo TGA complexa. Nesses pacientes, observou-se maior escore Z do anel aórtico. A taxa de reoperação por regurgitação da valva neo-aórtica associada a dilatação da aorta foi de 1,5%, sendo todos os casos no Grupo TGA complexa.
O estudo demonstra que, embora reoperações após cirurgia de Jatene por dilatação da neo-aorta e regurgitação da valva neo-aórtica tenham incidência baixa, esse é um fenômeno dependente de tempo, requerendo rígida vigilância desses pacientes. Na nossa casuística, um dos principais fatores de risco para regurgitação da valva neo-aórtica foi o diâmetro da artéria pulmonar no pré-operatório (p < 0,001).
Palavras-chave: Cardiopatias Congênitas; Cirurgia de Jatene; Transposição dos Grandes Vasos; Insuficiência da Valva Aórtica
Jatene surgery became the surgical procedure of choice to repair transposition of the great arteries (TGA) in neonates and infants. Late complications, mainly related to the pulmonary outflow tract and coronary arteries, are well known. The behavior of the neo-aortic valve is a cause of concern because of its potential for requiring late reoperation.
To assess the prevalence and risk factors of neo-aortic valve regurgitation in 127 patients in the late postoperative period of the Jatene surgery.
Of the 328 survivors of the Jatene surgery at the Biocor Institute from October 1997 to June 2015, all patients undergoing postoperative follow-up were contacted via telephone, 127 being eligible for the study. The patients were divided into two groups, simple TGA and complex TGA groups, with follow-up means of 6.4 ± 4.7 years and 9.26 ± 4.22 years, respectively. Echocardiography was performed with adjusted measurements (Z-score) of the neo-aortic annulus, sinus of Valsalva, sinotubular region and ascending aorta, as well as quantification of the neo-aortic valve regurgitation grade.
The incidence of mild neo-aortic valve regurgitation was 29% in a follow-up of 7.4 ± 4.7 years. Moderate regurgitation was identified in 24 patients with age mean (± standard-deviation) of 9.81 ± 4.21 years, 19 of whom (79%) in the complex TGA group. Those patients had a higher aortic annulus Z-score. The reoperation rate due to neo-aortic regurgitation associated with aortic dilation was 1.5%, all patients in the complex TGA group.
This study shows that, despite the low incidence of reoperation after Jatene surgery due to neo-aorta dilation and neo-aortic valve regurgitation, that is a time-dependent phenomenon, which requires strict vigilance of the patients. In this study, one of the major risk factors for neo-aortic valve regurgitation was the preoperative pulmonary artery diameter (p < 0.001).
Keywords: Heart Defects, Congenital; Transposition of Great Vessels; Transposition of Large Vessels, Aortic Valve Insufficiency
Historicamente, a transposição das grandes artérias (TGA) é conhecida há quase 300 anos.1 Em 1797, Matthew Baille descreveu uma condição na qual a aorta originava-se do ventrículo direito (VD) e a artéria pulmonar saía do ventrículo esquerdo (VE).2 Em 1814, Farré utilizou o termo “transposição” para caracterizar a malformação descrita por Baillie. A história da correção cirúrgica da TGA inicia-se na década de 50 com os procedimentos paliativos e posteriormente com as técnicas de correção atrial (Mustard/Senning).3
O tratamento cirúrgico da TGA foi definitivamente modificado com a publicação da técnica de correção anatômica pelo Dr. Adib Jatene4 em 1976, o que mudou, de forma definitiva, a evolução dos pacientes. Portanto, ao longo dos anos, a cirurgia de Jatene ficou consagrada como o procedimento de escolha com correções fisiológica e anatômica completas. Sua supremacia foi corroborada por resultados a longo prazo que mostram a preservação da boa função ventricular esquerda5 e do ritmo sinusal e proporcionam uma baixa mortalidade, com uma taxa de sobrevida superior a 88% no acompanhamento de 10 e 15 anos.6
As complicações observadas no pós-operatório imediato são infrequentes e estão relacionadas principalmente à condição pré-operatória do paciente, ao tempo prolongado de circulação extracorpórea e à obstrução da artéria coronária, com consequente isquemia do miocárdio. Apesar da excelente evolução clínica da grande maioria dos pacientes a médio e longo prazo,5 o índice de reoperações tardias ainda é significativo após a cirurgia de Jatene. As obstruções da via de saída do VD, as obstruções coronarianas e a dilatação progressiva da neo-aorta associada a insuficiência aórtica são os principais motivos de reintervenção. Embora, com as modificações técnicas, tenhamos observado uma redução importante nas reintervenções da via de saída do VD7 e das obstruções coronarianas,8 a evolução tardia progressiva da dilatação da neo-aorta a da insuficiência da valva neo-aórtica constituem fatores de grande preocupação.
O objetivo deste estudo foi investigar os possíveis fatores que poderiam contribuir para a progressão da regurgitação da valva neo-aórtica através de uma revisão retrospectiva de um grupo de pacientes operados em uma única instituição.
No período de outubro de 1997 a junho de 2015, foram submetidos à correção anatômica pela técnica de Jatene no Biocor Instituto 367 pacientes portadores de TGA, com número de alta hospitalar de 328. Este estudo observacional, prospectivo foi realizado entre novembro de 2015 e maio 2016 no Biocor Instituto de doenças cardiovasculares de Minas Gerais com parte de dados para dissertação de mestrado. Dos 328 sobreviventes, 251 estavam em controle ambulatorial regular. Participaram do estudo 127 pacientes que foram separados em dois grupos levando em consideração as suas semelhanças anatômicas.
No grupo da TGA simples, foram incluídos 84 pacientes portadores de TGA com septo interventricular intacto.
O grupo de TGA complexa incluiu 43 pacientes portadores de TGA associada à comunicação interventricular (CIV) de tamanho médio a grande e os pacientes portadores de dupla via de saída do VD sem estenose pulmonar (Taussig Bing), com ou sem obstrução do arco aórtico.
Não participaram do estudo crianças com menos de 2 anos de pós-operatório (n = 18), pacientes submetidos a preparo ventricular (n = 3), pacientes que foram submetidos à técnica da plastia redutora da artéria pulmonar (n = 27), método idealizado para pacientes com grandes desproporções aorto-pulmonares, que foi iniciado no Biocor Instituto a partir de 2006, e os que por impossibilidade não puderam comparecer (n = 76). Houve (n = 75) perda de seguimento e (n = 2) óbito tardio.
Foi realizada revisão de prontuários para coleta de dados demográficos pré-, per- e pós-operatórios imediatos, como definição anatômica, idade em dias na correção cirúrgica, superfície corporal na data da cirurgia, medida indexada da artéria pulmonar e presença de anomalias associadas.
Na avaliação de pós-operatório, todos os pacientes foram submetidos a exame clínico feito por cardiologista pediátrico da instituição e foi realizada medida de peso e de altura para cálculo da superfície corporal. Foi feito também estudo ecocardiográfico transtorácico sem custo para o paciente. O deslocamento dos pacientes foi feito pelas secretarias de saúde dos respectivos municípios e, na impossibilidade, custeada pela própria autora. O estudo foi aprovado pelo comitê de ética local, tendo sido implementado em plena conformidade com a Declaração de Helsinque, em pesquisa com seres humanos. Todos os indivíduos ou seus representantes legais deram seu consentimento informado para participar.
A técnica da cirurgia de Jatene empregada no Biocor Instituto foi basicamente a mesma em todo período do estudo. A manobra de Lecompte foi utilizada em quase todos os pacientes (96%) e o reimplante coronário foi realizado com a neo-aorta distendida e sempre nos seios de Valsalva e nunca na linha de sutura (“trap door”). A abordagem da CIV variou de acordo com sua localização anatômica, ocorrendo via átrio direito, aorta ou artéria pulmonar. A reconstrução pulmonar foi realizada com pericárdio autólogo (dois remendos ou monopatch)
O exame ecocardiográfico foi realizado pela autora, ecocardiografista pediátrica da instituição, com aparelho modelo Phillips HD11, no Biocor Instituto, onde foram realizadas quatro medidas sequenciais da aorta, sendo quantificado o grau de regurgitação da valva neo-aórtica. O mesmo exame foi realizado por outro ecocardiografista de igual experiência, sendo as medidas comparadas.
Não houve discrepância entre as medidas dos examinadores, motivo pelo qual não foi necessária nova conferência em nenhum dos exames realizados, visto que as diretrizes relacionadas às medidas são bem claras.9
Medidas seriadas do anel neo-aórtico, do seio de Valsalva, da região sinotubular e da aorta ascendente foram realizadas no corte paraesternal do eixo longo do VE e indexadas para superfície corporal seguindo as diretrizes da Sociedade Americana de Ecocardiografia (ASE) (Figura 1). De acordo com essas diretrizes, considerou-se que a raiz da aorta se estende do local de implante dos folhetos aórticos com a via de saída do VE até a porção tubular da aorta (junção sinotubular).9
Figura 1 Medidas da aorta. Imagem da neo-aorta pelo ecocardiograma bidimensional no corte paraesternal do eixo longo do VE. São mostrados os locais das medidas: A- anel aórtico; B- seio de Valsalva; C- região sinotubular; D- aorta ascendente.
A raiz da aorta é uma estrutura geometricamente complexa que inclui: (1) anel da valva aórtica; (2) triângulos entre os folhetos; (3) folhetos aórticos semilunares e suas inserções; (4) seios aórticos de Valsalva; (5) junção sinotubular.10
As medidas aórticas foram realizadas nos seguintes locais: (1) anel da valva aórtica; (2) o diâmetro máximo do seio de Valsalva; (3) junção sinotubular (usualmente uma transição demarcada entre os seios de Valsalva e a porção tubular da aorta ascendente); (4) diâmetro máximo da aorta proximal ascendente, incluindo a anotação da distância entre o local de medida e a junção sinotubular.9
As medidas do anel aórtico, do seio de Valsalva, da região sinotubular e da aorta ascendente foram indexadas utilizando o escore Z.11,12 Da mesma forma, as medidas do anel aórtico foram realizadas seguindo a recomendação da ASE.9 Assim, foram feitas no modo zoom, utilizando a medida no meio da sístole, quando o anel está levemente maior e mais redondo do que na diástole, entre os pontos de articulação dos folhetos da valva aórtica (usualmente entre o ponto de articulação da cúspide coronariana direita e a borda do seio do lado das comissuras entre as cúspides do folheto esquerdo e não coronariano) em sua borda interna. Ainda segundo as recomendações, todas as outras medidas aórticas foram feitas no final da diástole, em um plano estritamente perpendicular ao eixo longo da aorta.9
A regurgitação da valva neo-aórtica foi avaliada pelo ecocardiograma com Color Doppler e quantificada em ausente ou trivial, leve, moderada e severa, dependendo da relação do jato regurgitante e do diâmetro da via de saída do VE.13 Se a relação fosse menor que 0,25, a regurgitação foi quantificada como leve; entre 0,25 e 0,5, moderada; maior que 0,5, severa. Contudo, diante da possibilidade de subestimar o grau de regurgitação valvar nos pacientes com dilatação do anel aórtico, foi realizada análise do fluxo em aorta descendente pelo Doppler. Na presença de fluxo reverso holodiastólico na aorta descendente, a regurgitação foi considerada moderada ou importante.14
O grau de regurgitação foi comparado com o diâmetro da neo-aorta em suas respectivas medidas.
O cálculo da superfície corporal foi realizado utilizando a fórmula de Mosteller: A = √ (altura x peso) / 3600).15
Para coleta de dados e gerenciamento do banco de dados, utilizou-se o programa Epi Info, versão 6. Para as análises estatísticas, utilizaram-se os programas Epi Info e Microsoft Office Excel, versão 2000. Para elaboração e edição de tabelas, utilizou-se o programa Microsoft Office Excel, versão 2000.
As variáveis categóricas foram comparadas usando-se os testes estatísticos do Qui-Quadrado de Pearson e o teste Exato do Fisher, quando necessário. As contínuas foram comparadas pelo teste t de Student para amostras independentes quando a distribuição foi normal para a comparação de médias, o teste t pareado para amostras pareadas e o teste de Kruskal-Wallis para a comparação das medianas.
Análise de variância (ANOVA) foi usada para a comparação de vários grupos em um só tempo, com variáveis contínuas.
Foi considerado o valor p < 0,05 como limiar de significância estatística.
As características pré- e peroperatórias dos dois grupos estão apresentadas na Tabela 1, sendo: sexo, superfície corporal, idade e medida no anel pulmonar indexada à superfície corporal.
Tabela 1 Médias, desvios-padrão e medianas dos pacientes dos grupos de TGA simples e TGA complexa submetidos à cirurgia de Jatene
Variáveis | n | Média ± desvio-padrão | Mediana | Teste estatístico |
---|---|---|---|---|
Sexo | ||||
TGA simples | ||||
Masculino | 60 | Qui-quadrado = 0,83 | ||
Feminino | 24 | |||
TGA complexa | ||||
Masculino | 30 | |||
Feminino | 13 | |||
Superfície corporal | ||||
TGA simples | 84 | 0,20 ± 0,04 m2 | 0,20 | p = 0,86 |
TGA complexa | 43 | 0,21 ± 0,08 m2 | 0,20 | |
Escore Z anel pulmonar | ||||
TGA simples | 84 | 1,6 ± 0,6 | 0,2 ± 0,3 | p = 0,18 |
TGA complexa | 43 | 1,9 ±1,1 | 0,3 ± 0,4 |
(*) Diferença com significância estatística.
Dos 127 pacientes avaliados, 84 foram incluídos no grupo da TGA simples e 43 no grupo da TGA complexa. O tempo de seguimento foi de 7,4 ± 4,7 anos.
As médias para superfície corporal foram de 0,20 ± 0,04 m2 para o grupo da TGA simples e de 0,21 ± 0,08 m2 para o grupo da TGA complexa.
Na comparação do escore Z do anel pulmonar no pré-operatório, como demonstrado na Tabela 1, observa-se que o grupo da TGA complexa apresenta maior escore Z, achado com significância estatística.
Na análise das anomalias associadas, essas foram encontradas em 21 pacientes (16,5%), como demonstrado na Tabela 2.
Tabela 2 Anomalias associadas nos grupos de TGA simples e de TGA complexa
Anomalias Associadas (n = 21) | TGA simples | TGA complexa |
---|---|---|
Dextrocardia em situs solitus | 2 | 0 |
Dextrocardia em situs inversus | 0 | 1 |
Justaposição de apêndices atriais | 3 | 1 |
Aorta em L-posição | 0 | 3 |
Stradling tricúspide | 0 | 2 |
Ventrículo superoinferior | 0 | 2 |
Anomalias do arco aórtico | 1 | 6 |
TOTAL | 6 | 15 |
Dentre as anomalias associadas, a mais frequente foi a anomalia do arco aórtico, encontrada em 7 pacientes (5,5%), sendo 6 no grupo de TGA complexa.
Análise 2.1 - De acordo com a Tabela 3, as médias de idade para o grupo de TGA simples e de TGA com CIV foram 6,4 ± 4,73 anos e 9,26 ± 4,22 anos, respectivamente.
Tabela 3 Médias e desvios-padrão das idades dos pacientes dos grupos de TGA simples e de TGA complexa
Variáveis | n | Média ± desvio padrão | Teste estatístico | Valor p |
---|---|---|---|---|
Idade no controle | ||||
TGA simples | 84 | 6,40 ± 4,73 anos | Teste t de Student | < 0,0001 |
TGA complexa | 43 | 9,26 ± 4,22 anos | (*) |
*t = 3,34
Análise 2.2 - Na avaliação de pós-operatório, como demonstrado na Tabela 4, em que se comparou a relação entre o escore Z da artéria pulmonar no pré-operatório com a neo-aorta no pós-operatório nos 84 pacientes do grupo da TGA simples e nos 43 do grupo de TGA complexa, foi demonstrada significância estatística entre as médias.
Tabela 4 Comparação entre as médias do Z escore da artéria pulmonar (pré-operatório) e do Z escore do anel aórtico no pós-operatório nos pacientes dos grupos de TGA simples e de TGA complexa
Escore Z (TGA complexa) | Média ± desvio-padrão | Diferença entre as médias | Teste t pareado | Valor p |
---|---|---|---|---|
Pré | 1,9 ± 1,1 | -0,3 ± 0,4 | 4,88 | < 0,0001 |
Pós | 2,2 ± 1,3 | |||
Escore Z (TGA simples) | Média ± desvio-padrão | Diferença entre as médias | Teste t pareado | Valor p |
Pré | 1,6 ± 0,7 | -0,2 ± 0,3 | 4,81 | < 0,0001 |
Pós | 1,8 ± 1,0 |
*p < 0,0001
Análise 2.3 - Na avaliação do grau de regurgitação da valva neo-aórtica nos grupos de TGA simples e complexa, foi observado, como demonstrado na Tabela 5, que 74 pacientes do grupo de TGA simples (88%) e 16 pacientes do grupo de TGA complexa (37,2%) apresentavam regurgitação considerada ausente ou trivial. Regurgitação leve foi observada em 5 pacientes do grupo de TGA simples (5,9%) e em 8 pacientes (18,6%) do grupo da TGA complexa. Já regurgitação moderada esteve presente em 5 (5,9%) pacientes do grupo de TGA simples e em 19 (44,8%) no grupo de TGA com CIV.
Tabela 5 Avaliação do grau de regurgitação entre os grupos de TGA simples e de TGA complexa nos 127 pacientes submetidos à cirurgia de Jatene
Grupos | Regurgitação ausente/trivial | Regurgitação leve | Regurgitação moderada | Total |
---|---|---|---|---|
TGA simples | 74 (82,2%) | 5 (38,4%) | 5 (20,8%) | 84 |
TGA complexa | 16 (17,7%) | 8 (61,5%) | 19 (79,1%) | 43 |
Total | 90 (70,8%) | 13 (10,2%) | 24 (18,9%) | 127 |
Qui-quadrado = 34,85; p < 0,0001
Tabela 6 Comparação entre as médias do escore Z do anel aórtico e o grau de regurgitação no seguimento em 127 pacientes em pós‑operatório de cirurgia de Jatene
Grau de regurgitação | n | Média ± Desvio-padrão | Análise de variância | F |
---|---|---|---|---|
Ausente/trivial | 90 | 1,72 ± 0,98 cm | F | 6,66 |
Leve | 13 | 2,18 ± 0,83 cm | ||
Moderado | 24 | 2,60 ± 1,40 cm |
F = 6,6
A ausência de regurgitação ou regurgitação trivial predominou no grupo de TGA simples (p < 0,0001).
Análise 2.4 - No grupo de pacientes com regurgitação ausente ou trivial (90 pacientes), média ± desvio-padrão do anel aórtico foi de 1,72 ± 0,98 cm. Nos pacientes com regurgitação leve (13 pacientes), média ± desvio-padrão foi de 2,18 ± 0,83 cm, e, naqueles com regurgitação moderada (24 pacientes), 2,60 ± 1,40 cm. Os resultados demonstram que, quanto maior o anel aórtico, maior o grau de regurgitação (p < 0,001).
Análise 2.5 - O grau de regurgitação da valva neo-aórtica, como demonstrado na Tabela 7, com as médias de idade dos pacientes operados demonstra relação entre regurgitação moderada e média de idade mais elevada (p = 0,0145). Dos 127 pacientes estudados, 2 necessitaram de troca valvar por progressão da regurgitação da valva neo-aórtica durante a coleta de dados. Os 2 pacientes pertenciam ao grupo de TGA Complexa, sendo a taxa de reoperação de 1,5%.
Tabela 7 Comparação entre as médias de idade no controle e o grau de regurgitação da valva neo-aórtica no seguimento em 127 pacientes submetidos à cirurgia de Jatene
Grau de regurgitação | n | Média ± desvio-padrão | Análise de variância | F |
---|---|---|---|---|
Ausente/trivial | 90 | 7,08 ± 4,74 anos | F | 5,4 |
Leve | 13 | 5,60 ± 4,16 anos | ||
Moderado | 24 | 9,81 ± 4,21 anos |
F = 5,4
O primeiro relato de reintervenção por regurgitação da valva neo-aórtica após cirurgia de Jatene foi feito em 2009 em um adolescente (16 anos).16 O mesmo relatório concluiu que a dilatação da neo-aorta estava presente em dois terços dos pacientes, e a regurgitação moderada foi observada em 15%, enfatizando a necessidade de acompanhamento cuidadoso nesse grupo de pacientes.
Embora a incidência global relatada de cirurgia para dilatação da neo-aorta e regurgitação da valva neo-aórtica após cirurgia de Jatene ainda seja baixa em 10 anos (2-2,5%),6,17-19 vários grupos observaram que o desenvolvimento de regurgitação e dilatação da neo-aorta é um fenômeno dependente do tempo, sendo obrigatória uma rígida vigilância desses pacientes.6,20,21 McMahon et al.,22 encontraram aumento moderado da raiz neo-aórtica (escore Z entre 3 e 4) em 52% e aumento grave da raiz neo-aórtica (escore Z > 5) em 25%. Eles também demonstraram que o desenvolvimento de regurgitação significativa da valva neo-aórtica foi fortemente associado ao desenvolvimento da dilatação da neo-aorta, o que também é confirmado por outros.23 Schwartz et al.,24 concluíram que, após cirurgia de Jatene, a dilatação da raiz da neo-aorta e a regurgitação da valva neo-aórtica continuam a se desenvolver ao longo do tempo, mas essa dilatação da raiz aórtica tende a não ser progressiva durante o seguimento tardio. No entanto, nessa série, o último acompanhamento foi de até 16 anos, enquanto Demo Walter et al.,19 concluíram que a regurgitação da valva neo-aórtica pode se desenvolver em até 15 anos. Em nossa série, dois pacientes necessitaram de reintervenção para dilatação progressiva da raiz neo-aórtica associada a regurgitação da valva neo-aórtica em um seguimento de 9,81 ± 4,21 anos. O significado de vários fatores de risco no desenvolvimento da regurgitação da valva neo-aórtica tardia e dilatação da raiz aórtica, como dilatação da artéria pulmonar no pré-operatório, idade da cirurgia de Jatene além do 1º ano de vida, presença de CIV e TGA complexa, tem sido demonstrado em vários estudos,6,18-21 mas esses achados não podem ser repetidos em outras grandes séries.8,23 Em nossa série, assim como na de outros investigadores,6,21,23 observamos que o fator mais relevante para a regurgitação da valva neo-aórtica foi a desproporção pulmonar/aorta no momento da cirurgia, que estava presente nos grupos de TGA complexa, especialmente quando associada às anomalias do arco aórtico.
Além disso, a CIV encontrada no grupo da TGA complexa está relacionada a dois fatores que aumentam o risco de associação com a regurgitação valvar: a dilatação da raiz pulmonar e a elevação da pressão da artéria pulmonar, que pode modificar o arranjo das fibras musculares e gerar um desarranjo permanente da artéria pulmonar, mesmo após a correção anatômica.25
A associação da regurgitação da valva neo-aórtica em pacientes sem fatores de risco, como na TGA simples, pode ser explicada por estudos histopatológicos que revelaram que a quantidade de colágeno nas raízes arteriais foi diminuída nos corações com TGA quando comparados com corações normais e que a ancoragem e a incorporação de ambas as raízes arteriais no miocárdio foram menores.26 A dilatação comparável da raiz pulmonar na circulação sistêmica é observada após a operação de Norwood para a síndrome do coração esquerdo hipoplásico,27 indicando que a artéria pulmonar colocada na circulação sistêmica é um fator de risco em si mesmo. Do ponto de vista morfológico e histológico, as valvas pulmonar e aórtica são indistinguíveis no nascimento. Em corações normais, os estudos demonstram mudanças macro e microscópicas nessas valvas, que ocorrem presumivelmente pelas mudanças pressóricas resultantes da transição da circulação fetal para a pós-natal, acarretando valva pulmonar com folhetos finos, com menos colágeno e com menor quantidade de tecido elástico. Após a operação, essa valva mais delicada é integrada à circulação sistêmica, podendo ser danificada pelo regime de alta pressão.27
Em resumo, a etiologia da regurgitação da valva neo-aórtica e da dilatação da neo-aorta é muito provavelmente multifatorial. Além dos fatores de risco externos, existem problemas intrínsecos estruturais da raiz pulmonar na circulação sistêmica. Assim, de acordo com nossas observações clínicas, um aumento no número de intervenções cirúrgicas para tratamento da dilatação da raiz aórtica e regurgitação da valva neo-aórtica deve ser motivo de constante monitoramento em pacientes com ou sem fatores de risco adicional.
O presente estudo, à semelhança dos de outros investigadores,21-23 evidencia que o fator mais relevante para a regurgitação da valva neo-aórtica foi a desproporção pulmonar/aorta no momento da cirurgia, observada nos grupos de TGA complexa, especialmente quando associada às anomalias do arco aórtico.
Podemos observar, no presente trabalho, que o grupo de TGA complexa apresentou maior índice de escore Z na artéria pulmonar no pré-operatório quando comparado ao grupo da TGA simples, assim como maior incidência de anomalias associadas, como as anomalias do arco aórtico (p = 0,0064), e ainda que a dilatação da neo-aorta se mantém no pós-operatório.
Os resultados demonstram que, quanto maior o anel aórtico, maior o grau de regurgitação (p < 0,001). Houve ainda associação entre regurgitação moderada e média de idade mais elevada (p = 0,0145), tanto no grupo de TGA simples quanto no grupo de TGA complexa, o que indica a necessidade de monitoramento constante desses pacientes.
O presente trabalho é resultado de seguimento prospectivo com coleta de dados de dois grupos de pacientes com características anatômicas distintas, submetidos a uma mesma técnica cirúrgica.
Algumas variações relacionadas à presença de insuficiência aórtica a longo prazo citadas por outros grupos (técnica de reimplante coronária e de fechamento da CIV e presença de cerclagem prévia da artéria pulmonar) não foram abordadas no presente trabalho.