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Reintegração familiar de crianças e adolescentes em acolhimento institucional em municípios brasileiros de diferentes portes populacionais

Reintegração familiar de crianças e adolescentes em acolhimento institucional em municípios brasileiros de diferentes portes populacionais

Autores:

Andrea M. Iannelli,
Simone Gonçalves Assis,
Liana Wernersbach Pinto

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123

Ciênc. saúde coletiva vol.20 no.1 Rio de Janeiro jan. 2015

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014201.19872013

Introdução

A preservação dos vínculos familiares e comunitários é um dos aspectos fundamentais do acolhimento de crianças e adolescentes, fundamentado na Constituição Federal1, no Estatuto da Criança e do Adolescente2, no Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária3, nas Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes4 e na Lei da Adoção5. A orientação de preservação de vínculos familiares e comunitários vem norteando as políticas públicas nas duas últimas décadas, opondo-se à prática de institucionalização de crianças e adolescentes, que contribui ainda para o afastamento familiar e comunitário. A promoção da convivência familiar e comunitária é atribuição conjunta dos Serviços de Acolhimento Institucional (SAI) e da rede socioassistencial que inclui o Poder Judiciário, o Ministério Público (MP), os Conselhos Tutelares (CT) e dos Direitos.

Os SAI são destinados às crianças e adolescentes com vínculos familiares rompidos ou fragilizados, visando à garantia de proteção integral. Podem ser na modalidade de abrigo institucional, casa-lar e repúblicas. A medida de proteção em acolhimento institucional, além de excepcional, tem caráter provisório, o que significa que é preciso empenho para o retorno do acolhido para sua família de origem6. Autores chamam atenção para os prejuízos da privação familiar e da institucionalização7 - 9. A criança ou adolescente institucionalizado vivencia uma separação do seio familiar, o que pode configurar em vários sentimentos como os de tristeza, insegurança, rejeição, ódio e fortes angústias10. A cultura de institucionalização integra a história da população infanto-juvenil em situação de pobreza, violência e abandono no Brasil, tendo tido o ideal da proteção como justificativa para o secular confinamento em instituições de abrigo11.

Crianças e adolescentes que são institucionalizadas em SAI têm seus direitos violados por situação de abandono, risco pessoal/social ou negligência de seus pais/responsáveis. Dentre os motivos mais frequentes estão a carência de recursos materiais da família/responsável; o abandono; a violência doméstica; a dependência química; a vivência de rua e a orfandade6. Neste sentido, são comuns as dificuldades para a reinserção familiar em decorrência de episódios de ameaça ou violação dos direitos de crianças e adolescentes12, tornando-se um grande desafio para os serviços. Pouco se conhece sobre a prática de reintegração familiar realizada pelos SAI nos municípios brasileiros. Neste sentido, este artigo objetiva compreender melhor as condições de reintegração familiar de crianças e adolescentes sob Medida Protetiva acolhidas em SAI nos 1.157 municípios brasileiros pesquisados, visando apoiar a implementação de políticas públicas capazes de proporcionar uma reintegração criteriosa e eficaz conforme os diferentes portes populacionais.

Metodologia

Este artigo é fruto de Levantamento Nacional em 2.624 SAI de Crianças e Adolescentes, em 1.157 municípios (representam 20,8% do total de municípios brasileiros), públicos ou privados, localizados nas 27 unidades da federação. No total, foram coletadas informações sobre todas as 36.929 crianças e adolescentes acolhidas nestes serviços. A pesquisa foi realizada entre 2009 e 2010 nas cinco regiões do país, com o apoio do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS)13.

Devido à inexistência de um cadastro nacional único que agregasse as instituições que prestam serviço de acolhimento (públicas e privadas) para crianças e adolescentes no Brasil, a lista das instituições existentes utilizada pela pesquisa foi criada a partir de duas fontes: a) levantamento do MDS nos meses de março-abril de 2009 junto aos gestores municipais e estaduais de todo o país, para que informassem os serviços de acolhimento para crianças e adolescentes existentes em seus estados e municípios por meio de preenchimento on-line da rede do SUAS Web; b) listagem nacional fornecida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Com esta listagem agregada, iniciou-se a pesquisa; em seu decorrer, algumas alterações foram realizadas: acréscimo de 121 novos municípios que passaram a receber financiamento do MDS em 2010 e que não constavam nas listas anteriores; cortes de municípios em duplicidade na lista inicial; retirada de serviços que não mais existiam ou não funcionavam mais como SAI; recusa de 15 serviços em participar da pesquisa; inclusão de SAI mediante validação realizada no município com profissionais da assistência social.

Acredita-se que esta lista ainda possa ser incompleta por mais extensiva que tenha sido sua elaboração, reconhecendo-se as dificuldades na área da informação. Todavia, destaca-se o fato de ser esta pesquisa o retrato mais fiel e de maior vulto feito até o ano de 2011 no país sobre o tema. Ressalta-se o fato de que o Estado de Minas Gerais não fez parte da coleta de dados desta pesquisa, pois existia levantamento prévio realizado em 2008 pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (SEDESE/MG) através da Fundação João Pinheiro. A SEDESE disponibilizou os dados do estado de Minas Gerais para serem incorporados ao levantamento nacional analisado neste artigo. Em cada SAI era aplicado ao gestor um questionário para coleta de dados sobre o serviço e preenchido um questionário para cada criança e adolescente acolhido sob medida de proteção (0 a 17 anos), a partir dos dados de seus prontuários e de informações dos técnicos. Neste artigo constam dados de ambos os questionários: número de SAI e de crianças/adolescentes neles acolhidos; local de residência dos pais/responsáveis pelas crianças/adolescentes (mesmo município do SAI ou outro município); vínculo familiar existente; existência de irmãos e situação legal.

Os Serviços de Acolhimento Institucional analisados neste artigo estão discriminados por municípios brasileiros, classificados segundo o porte populacional: porte pequeno I = municípios com menos de 20.000 habitantes; porte pequeno II = municípios com população entre 20.000 e 49.999 habitantes; porte médio = municípios com população entre 50.000 e 99.999 habitantes; porte grande = municípios com população entre 100.000 e 899.999 habitantes; metrópole = municípios com 900.000 habitantes ou mais. Realizou-se análise bivariada entre a variável porte do município e as seguintes: localização residencial da família em relação ao município em que está o SAI; presença de vínculo familiar com as crianças e adolescentes nos serviços; existência e frequência de visitas da família; existência de irmãos e local onde estão (com a família ou em SAI); atividades existentes nos SAI que incluem as famílias e os serviços a elas oferecidos e situação legal.

A pesquisa obteve autorização do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, bem como dos seguintes órgãos: MDS, Conselho Nacional de Justiça; Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e do Conselho Nacional de Assistência Social, bem como pelas Secretarias Estaduais e Municipais de Assistência Social. A direção dos SAI; os profissionais destes serviços, os integrantes da Rede de Proteção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente; e os familiares dos acolhidos que foram entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados

A distribuição dos SAI e do número de crianças e adolescentes acolhidos segundo porte do município pode ser vista na Tabela 1. Nela, constata-se a progressão na quantidade de SAI e de crianças e adolescentes acolhidos à medida que cresce o porte populacional. É possível observar que em municípios de porte pequeno, a quantidade de SAI e de crianças e adolescentes acolhidas é bem menor em relação à quantidade de SAI em município de porte grande ou metrópole. Cabe ressaltar que há muito mais municípios de porte grande do que metrópoles no país, razão pela qual os primeiros predominam na pesquisa em número de SAI e de acolhidos. Quando, porém, se avalia a relação número de acolhidos por porte dos municípios, percebe-se o crescimento do número de crianças e adolescentes em SAI à medida que aumenta o porte populacional, chegando a um montante de 60 por cidade de grande porte e a 602,4 acolhidos por metrópole.

Tabela 1. Distribuição dos SAI e do número de crianças/adolescentes acolhidos segundo porte do município. Brasil, 2009-2010. 

Porte do Municípios SAI Crianças/ adolescentes Relação nº acolhidos
Município N N % N % por municípios
Porte pequeno I 340 351 13,4 2.860 7,8 8,4
Porte pequeno II 367 458 17,5 5.378 14,6 14,7
Porte médio 202 317 12,1 4.475 12,2 22,2
Porte grande 231 865 33,1 13.849 37,6 60,0
Metrópole 17 626 23,9 10.240 27,8 602,4
Total 1.157 2.617* 100,0 36.802 100,0 31,8

* Dados sobre porte não disponíveis para sete SAI e 127 crianças/adolescentes do Estado de MG.

A situação de vínculo familiar das crianças e adolescentes acolhidos pode ser observada na Tabela 2. Verifica-se que parte significativa das famílias das crianças e adolescentes está presente nos SAI, independente do tamanho populacional: os dados oscilam entre 47,3% em cidades de médio porte e 58,1% nas metrópoles. No entanto, o percentual de crianças e adolescentes com família e sem vínculo é bastante considerável em todos os municípios (entre 19,4% nos de porte pequeno II e 22% nos de grande porte). Cabe ressaltar que nas metrópoles é mais elevado o percentual de crianças e adolescentes com família desaparecida/não localizada (3,4%). Verifica-se ainda na tabela que quanto maior é o porte do município maior é o percentual de crianças/adolescentes para os quais há impedimento judicial de contato da família.

Tabela 2. Situação de vínculo das crianças/adolescentes acolhidos em SAI, segundo porte do município. Brasil, 2009-2010 (N = 36.802). 

Com
Com família Com família impedimento
e sem desaparecida judicial de
Porte Com família Com família informação /não contato com a Sem família Não
populacional e com vínculo e sem vínculo de vínculo localizada família (órfãos) sabe
N% N% N% N% N% N % N%
Porte pequeno I 1.600 55,9 600 21,0 32 1,1 23 0,8 141 4,9 21 0,7 443 15,5
Porte pequeno II 2.637 49,0 1.044 19,4 81 1,5 87 1,6 342 6,4 61 1,1 1.126 20,9
Porte médio 2.117 47,3 948 21,2 38 0,8 57 1,3 295 6,6 23 0,5 997 22,3
Porte grande 7.580 54,7 3.044 22,0 186 1,3 282 2,0 1.016 7,3 137 1,0 1.604 11,6
Metrópole 5.950 58,1 1.925 18,8 117 1,1 350 3,4 1.018 9,9 117 1,1 763 7,5
Total 19.884 54,0 7.561 20,6 454 1,2 799 2,2 2.812 7,6 359 1,0 4.933 13,4

Na Tabela 3 vê-se o local de residência dos pais/responsáveis das crianças/adolescentes acolhidos conforme localização dos SAI. Há mais famílias de acolhidos vivendo no mesmo município, sobretudo nos municípios grandes e metrópole. Ressalta-se ainda o elevado percentual de crianças e adolescentes cujos pais residem em município diferente daquele no qual ocorre o acolhimento, oscilando de 12,4% nas metrópoles a 33,6% nas cidades de pequeno porte (I).

Tabela 3. Local de residência da família dos acolhidos em SAI(*), segundo o porte do município. Brasil, 2009-2010 (N = 30.718). 

Porte Local de residência no mesmo município do SAI Local de residência em outro município do SAI
populacional N % N %
Porte pequeno I 1.585 66,4 803 33,6
Porte pequeno II 2.864 69,2 1.277 30,8
Porte médio 2.542 75,5 824 24,5
Porte grande 9.476 80,4 2.312 19,6
Metrópole 7.916 87,6 1.119 12,4
Total 24.383 79,4 6.335 20,6

Na Tabela 4 observa-se que um total de 76,1% das crianças e adolescentes acolhidos em SAI possui informações sobre a existência de irmãos em seus prontuários, independente do tamanho das cidades. Nota-se acentuado número de irmãos acolhidos em outros serviços (porte médio 19,3%, porte grande 34,7%).

Tabela 4. Situação dos irmãos das crianças/adolescentes acolhidos por porte do município. Brasil, 2009-2010 (N = 38.618(*)). 

Situação dos irmãos
Convivendo com a Acolhidos Acolhidos em outros Adotados
Porte família de origem na mesma serviços de acolhimento por outras Sem
(nuclear/extensa) unidade institucional ou familiar famílias informação
N % N % N % N % N %
Porte pequeno I 1.076 62,6 1.533 70,3 132 16,8 217 25,0 75 10,3
Porte pequeno II 1.776 53,1 2.593 62,2 321 16,9 365 18,7 156 9,0
Porte médio 1.491 52,6 2.152 61,5 324 19,3 312 18,8 100 6,9
Porte grande 5.480 64,5 6.706 68,8 1.621 34,7 1.027 25,2 392 11,4
Metrópole 4.000 64,2 4.938 68,7 989 30,6 471 17,3 371 14,2

* Pode existir resposta múltipla.

As atividades desenvolvidas pelos SAI com as famílias dos acolhidos, segundo a informação dos gestores, estão descritas na Tabela 5. Nela percebe-se a predominância pela priorização da integração de grupos de irmãos no mesmo serviço, a programação das visitas em dias e horários pré-estabelecidos e a orientação dos profissionais para que participem dos momentos de visitas (próximo a 80% dos serviços nas cidades de diferentes portes populacionais, com leve elevação nos municípios maiores). Nota-se que ainda há um percentual abaixo de 6% de unidades (independente do porte populacional) que não realizam nenhuma atividade com as famílias, a despeito das orientações e normativas vigentes no país. Além das atividades mencionadas na Tabela 5, os gestores foram indagados sobre quais serviços eram oferecidos às famílias de crianças e adolescentes acolhidas. Constatou-se, de uma forma geral, que os municípios menores oferecem menos atividades às famílias do que os de maior porte populacional.

Tabela 5. Atividades promovidas pelos SAI de modo a estimular e fortalecer o vínculo com as famílias de origem (N = 13.881(*)). 

Porte do município
Ações Porte Porte Porte Porte
pequeno I pequeno II médio grande Metrópole
N % N % N % N % N %
Prioriza a integração de grupos de irmãos 297 84,6 378 82,5 285 89,9 765 88,4 531 84,8
Orienta profissionais para contato com as 229 73,9 285 77,0 212 82,2 625 80,7 446 78,7
famílias durante as visitas
Programa a visitação das famílias em dias/ 268 77,5 341 78,9 256 84,2 724 85,2 511 83,5
datas pré-estabelecidas
Incentiva contatos telefônicos/ troca de 188 53,6 251 54,8 186 58,7 613 70,9 478 76,4
correspondência
Promove visitas das crianças/adolescentes 168 54,2 204 55,0 167 64,5 554 71,6 422 74,3
aos lares de suas famílias
Realiza atividades festivas na unidade com 149 47,9 202 54,3 156 60,2 539 68,8 421 73,9
a presença da família de origem
Propicia a participação da família de 151 48,6 187 50,5 151 58,5 490 63,3 380 67,0
origem no acompanhamento da saúde e
vida escolar da criança/adolescente
Promove passeios das crianças/ 87 24,8 134 29,3 87 27,4 265 30,6 255 40,7
adolescentes com suas famílias
Oferece auxílio-transporte para as famílias 71 22,9 79 21,4 66 25,6 255 32,9 262 46,2
visitarem a unidade
Não realiza ações de incentivo à 11 3,1 24 5,4 7 2,2 34 4,0 34 5,5
convivência com as famílias de origem

* Pode existir resposta múltipla.

Observando-se a situação legal de 32.621 crianças e adolescentes (excluindo MG), tem-se que 46,4% (15.148) estão em fase de preparação para reintegração ou retorno ao convívio com familiares/responsáveis. Esta realidade é similar segundo o porte populacional, oscilando entre 44,2% nos municípios de pequeno porte II e 47,4% nos de grande porte. Outras condições legais observadas são: 9,9% de crianças/adolescentes em que há suspensão do poder familiar; 11,1% com destituição do poder familiar em tramitação; 2,7% em processo tramitando de guarda/tutela; e em 18,3% dos casos não há informação nos prontuários. Tais dados são muito similares nos municípios de diferentes portes populacionais.

Discussão

Nota-se um crescimento de crianças e adolescentes acolhidos institucionalmente no país e de SAI à medida que aumenta o porte do município, seguindo a lógica existente de maior oferta de serviços em centros urbanos maiores14. O que pressupõe mais facilidade nas visitas institucionais e tentativas de reintegração familiar. Todavia, as grandes distâncias existentes nas cidades maiores e os elevados preços dos transportes públicos podem dificultar o acesso das famílias aos serviços.

Estudo que avaliou 7.807 crianças no estado da Flórida/EUA indicou que a localização geográfica da residência da criança determinou uma maior ou menor possibilidade de saída da situação de acolhimento institucional. As áreas urbanas na Flórida tiveram as menores taxas de liberação de crianças das instituições. Os autores associam que normas administrativas levam a diferentes durações de estadia, bem como estratégias de envolvimento das equipes com as famílias.

Outros aspectos que interferem no acolhimento dizem respeito a questões de saúde mental (dada à ocorrência de transtornos por uso de substância psicoativa e problemas psiquiátricos de pais e crianças)15. Glisson et al.16observaram que crianças de municípios urbanos norte-americanos tiveram probabilidade maior de sair da custódia do Estado do que as dos condados rurais. Tais aspectos mostram a necessidade de maiores investigações sobre o tema, identificando quais fatores podem explicar as variações existentes. Ressalta-se que há uma lacuna significativa na produção nacional que aborde tais aspectos.

Outro aspecto a ser destacado refere-se à dificuldade em conhecer o real número de SAI e de crianças e adolescentes nestes serviços no Brasil, bem como o dinamismo existente na área, dificultando a obtenção de cadastro nacional único. No levantamento nacional de abrigos realizado pelo IPEA6 foram encontradas 20 mil crianças e adolescentes em 626 instituições. No presente levantamento (2009-2010)13, existiam 36.929 acolhidos em 2.624 instituições. Dados do Censo do Sistema Único da Assistência Social realizado em 2012 encontrou 2.380 abrigos e 33.456 crianças e adolescentes acolhidos. Por outro lado, o Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes Acolhidos do Conselho Nacional do Ministério Público informa a presença de 4.029 entidades de acolhimento e 43.585 acolhidos17. Urge que as instituições criem bancos interligados e atualizados continuamente, fato que permitirá políticas públicas mais eficientes.

Quanto à situação de vínculo das crianças e adolescentes acolhidos em SAI vale apontar para o fato de que nas metrópoles estudadas, o número de famílias desaparecidas e não localizadas, assim como de crianças e adolescentes acolhidas com impedimento judicial de contato é acentuado em relação aos municípios de menor porte. Estes aspectos talvez se devam ao fato de que os municípios mais populosos refletem um maior distanciamento entre o Judiciário, SAI, indivíduos e suas famílias nas cidades maiores.

É necessário conhecer as razões que determinaram a permanência da criança e do adolescente em um serviço assim como verificar as questões pessoais e familiares que contribuíram para que a reintegração familiar fosse realizada com segurança18 , 19.

A reinserção familiar não é uma tarefa simples e ágil; situações de dificuldades e risco envolvem a família desta criança e adolescente20 , 21. O desligamento do SAI e o retorno ao lar da população infanto-juvenil pode acontecer nem sempre em circunstâncias favoráveis, tendo em vista que as condições que impediram a convivência familiar podem ainda não ter sido superadas22. Neste sentido, ressalta-se que a necessidade de cumprir as normativas legais (prazo máximo de dois anos de acolhimento) pode ser um fator que estimule a reintegração familiar sem que a preparação ideal tenha sido feita, deixando sem solução os problemas que motivaram a institucionalização e contribuindo para reincidências.

No que se refere ao local de residência dos pais/responsáveis das crianças e adolescentes ser em outro município do SAI, destacam-se índices relevantes em todos os portes municipais. Tal situação relaciona-se à ausência de serviço no município de residência da família, trabalho dos pais em municípios diferentes e distantes de onde residem, dificuldades de acesso e transporte para se chegar aos serviços de acolhimento. Estes fatos contribuem para fragilizar a reinserção familiar e a permanência de crianças e adolescentes nos serviços. Além de que estes fatos atentam para a necessidade de implementar a municipalização do atendimento conforme preconiza o ECA (Art. 88 inciso I)2. O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária3 pretende que os equipamentos e serviços públicos sejam disponibilizados em quantidade e qualidade suficientes, considerando as características e diferenças regionais, estaduais e municipais em relação ao porte, geografia e densidade demográfica, mas também a cultura, objetivando o fortalecimento de vínculos familiares.

Uma pesquisa realizada em 2008 na cidade do Rio Grande identificou que 100% das crianças e adolescentes acolhidos em cinco serviços sentem insatisfação ao viverem no SAI e o sofrimento está presente no dia-a-dia deles, em virtude da falta do convívio familiar. A não existência de SAI municipal foi confirmada por 40% dos profissionais; outros 40% apontaram a existência de programa que não é de natureza municipal e 20% afirmaram existir iniciativas do poder executivo23. Este dado evidencia a falta de compromisso municipal em implantar programas destinados ao atendimento às famílias dos acolhidos e a necessidade de exigir mais articulação da rede socioassistencial.

Quanto à situação dos irmãos das crianças e adolescentes acolhidos, nota-se um número bastante considerável de casos de acolhimento em outros SAI ou em serviço de acolhimento familiar em todos os portes municipais, com ênfase para os municípios de grande porte e metrópole. Tal fato aponta para dificuldades na implementação do artigo 92 do ECA2 que indica o não desmembramento do grupo de irmãos. Weber24 revela que 60% dos SAI existentes no Rio Grande possuem crianças e/ou adolescentes separados por sexo.

Somente 20% dos gestores de SAI defendem a importância de uma junção, enquanto que a maioria (80%) não a defende quando se trata de acolher adolescentes, em virtude de ser uma fase de descoberta da sexualidade. Essa visão implica na separação do grupo de irmãos de gêneros diferentes, o que pode ser considerada como uma forma de negligência, decorrente da ausência de equipamentos suficientes para atender a população ou da desarticulação da rede socioassistencial, que não se comunica visando evitar esta situação.

Quanto às atividades promovidas pelos SAI de modo a estimular e fortalecer o vínculo com as famílias de origem percebe-se que há unidades (N = 110) que não realizam quaisquer atividades com as famílias, contrariando muito a legislação e os documentos na área da infância e juventude do país. De forma geral, depreende-se que, independente do porte de município, muitos SAI ainda não incentivam a convivência com a família de origem, demonstrando a ausência de fiscalização por parte do Poder Judiciário, MP e CT.

Na pesquisa do IPEA6 foram considerados adequados os serviços que realizam: (i) incentivo à convivência com a família de origem; e (ii) não desmembramento de grupos de irmãos. Ou seja, apenas 6,6% atenderam a esses critérios. As demais atividades desenvolvidas com as famílias das crianças e dos adolescentes incluem: (i) visitas domiciliares; (ii) acompanhamento social; (iii) reuniões ou grupos de discussão e apoio; e (iv) inserção em programas de proteção/auxílio à família. Neste grupo foram encontrados somente 14,1% SAI que atendem a esses critérios. Os dados apresentados indicam o distanciamento do preconizado em leis e normativas: "todos os esforços deverão ser empreendidos para preservar e fortalecer vínculos familiares e comunitários das crianças e dos adolescentes atendidos em serviços de acolhimento. Esses vínculos são fundamentais, nessa etapa do desenvolvimento humano, para oferecer à criança e ao adolescente condição para um desenvolvimento saudável que favoreça a formação de sua identidade e construção como sujeito e cidadão"13.

Os SAI têm a responsabilidade de cuidar dos vínculos familiares e comunitários, objetivando mantê-los ou restabelecê-los. Entretanto, há de se considerar que nem sempre os SAI cumprem com eficácia o trabalho de reintegração familiar: "embora seja órgão executor do ECA, em muitos aspectos, o abrigo contraria seus preceitos... A organização institucional cria obstáculos para que as famílias não "atrapalhem o trabalho". Uma vez que se deva manter o vínculo, o trabalho da instituição é justamente abrir espaço para a família, e não limitá-la a duas horas de visitas semanais"25.

Muitos SAI alegam não ter recursos para realizar a reintegração familiar, sendo essa atividade exercida de forma precária, ficando a cargo de equipes do Poder Judiciário, que também a realizam de maneira insuficiente26. A atuação prestada pelas equipes técnicas dos serviços de acolhimento tem sido considerada fundamental para o aumento das taxas de reunificação familiar em outros países27, a partir de atos como gestos, palavras e atitudes por parte de todos os envolvidos: crianças, adolescentes, famílias e SAI8 , 19 , 23.

Problemas relacionados à estrutura, organização e funcionamento das famílias também interferem no retorno da criança ou do adolescente ao lar. O estudo de Silva e Nunes28 atenta para o fato de que após o retorno à família, jovens são inseridos em situações de vulnerabilidade social na qual seus familiares vivenciam, tais como as mazelas sociais pelas quais passam. Logo, para uma reintegração familiar eficaz faz-se necessário uma avaliação criteriosa das condições de vida da família (socioeconômica); da intensidade do desejo da família pelo retorno da criança ou adolescente ao lar; e do vínculo entre os parentes8. A fragilidade no processo de reintegração familiar decorre, segundo Siqueira12, do acompanhamento e avaliação por parte dos serviços e das vulnerabilidades existentes nas famílias.

Outro aspecto que estimula a reintegração familiar refere-se ao apoio de programas sociais que subsidiem as famílias destas crianças e adolescentes, fortalecendo a reinserção29 , 30. Entretanto, o abrigo falha em oferecer às crianças a segurança afetiva de que elas necessitam para seu desenvolvimento. A saúde psicológica destas depende, sobretudo, do ambiente em que estão acolhidas31. O abrigo não representa apenas um espaço de cuidado diário, mas assume funções atribuídas às famílias. O que o diferencia das demais modalidades de atendimento, tornando-o ainda mais complexo32. Finalizando, ressaltam-se as limitações neste artigo, como a carência de estudos, em especial que abordem de que maneira os SAI realizam a reinserção familiar de crianças e adolescentes em diferentes regiões do país e a dificuldade de contar com estatísticas confiáveis sobre acolhimento institucional no país.

Considerações finais

As políticas voltadas para o acolhimento institucional de crianças e de adolescentes precisam levar em consideração o tamanho populacional para articular ações de apoio às famílias corroborando com a reintegração familiar. As famílias podem desempenhar plenamente suas funções quando usufruem de direitos como o acesso à saúde, à educação e ao trabalho. Para apoiar a reestruturação de uma família é preciso que o município ofereça subsídios (em conjunto com a sociedade civil, o estado e a federação) para enfrentar as graves questões sociais como o desemprego, a dependência química pelo álcool e drogas, a violência doméstica, dentre outras.

A qualificação dos profissionais que atuam em SAI e de toda a rede socioassistencial para melhor atender aos acolhidos, assim como as condições estruturais existentes nestes serviços são os elos proximais que precisam ser aperfeiçoados, visando o encurtamento do período de acolhimento institucional.

Concluindo, considera-se que a reinserção familiar de crianças e adolescentes institucionalizadas requer profissionais capacitados que atuem com cautela e uma rede de apoio social eficaz e com programas públicos direcionados ao auxílio e proteção às famílias, de maneira a empoderá-las na superação de suas vulnerabilidades sociais. Estas necessidades se manifestam de forma clara nos municípios brasileiros investigados com maior ou menor necessidade, dependendo do porte populacional.

REFERÊNCIAS

1. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 out.1988. Organização dos textos, notas remissivas e índices por Juarez de Oliveira. 11ª ed. atual e ampliada. São Paulo: Saraiva; 1995.
2. Brasil. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13/07/1990: Constituição e Legislação relacionada. São Paulo: Cortez; 1991.
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