Print version ISSN 0102-6720On-line version ISSN 2317-6326
ABCD, arq. bras. cir. dig. vol.29 no.3 São Paulo July/Sept. 2016
https://doi.org/10.1590/0102-6720201600030004
A influência do Helicobacter pylori (HP) nas alterações inflamatórias das mucosas digestivas tem sido objeto de vários estudos uma vez que fatores socioeconômicos, pessoais e ambientais são implicados na transmissão da bactéria, facilitando-a.
Relacionar os achados inflamatórios endoscópicos com a infecção pelo HP e o aparecimento de doenças mucosas do trato digestivo alto.
Estudo observacional comparativo, o qual foram coletados dados de 2247 pacientes submetidos à endoscopia digestiva alta e biópsias para HP com teste de urease. Os pacientes foram divididos em dois grupos: HP+ e o controle HP-dentro dos quais foram observados os achados endoscópicos referentes às seguintes alterações: esofagite, úlcera esofágica, gastrite, gastrite erosiva, úlcera gástrica, bulboduodenite, úlcera bulbar e sem doença.
Quanto à esofagite, observou-se pequena desproporção na distribuição, favorável ao grupo HP+ (HP+ =67,11% e HP- =69,89%) bem como na úlcera esofágica (HP+ =0% e HP- =0,21%). Na gastrite foi favorável ao grupo HP- (HP+ =78.34% e HP- =73.63%), assim como na gastrite erosiva (HP+ = 67,11% e HP- = 64,55%), na bulboduodenite (HP+ = 1,87% e HP- 1,23%), na úlcera gástrica (HP+ =2,14% e HP- =2,03%) e na ausência de alterações no grupo HP+ (4.81%) com o grupo controle HP- (6,30%), nos quais há pequena desproporção favorável ao grupo HP-, porém, sem significância estatística. Já quanto à úlcera bulbar (HP+ =10,16% e HP- =4,48%), houve significância estatística (p=0,00001).
Não há diferenciação entre os grupos HP+ e HP- nas alterações endoscópicas inflamatórias na mucosa gastroduodenal, exceto para a relação entre HP e úlcera bulbar.
DESCRITORES: Endoscopia; Esofagite; Gastrite; Duodenite; Helicobacter pylori; Inflamação.
The influence of Helicobacter pylori (HP) in inflammatory disorders of the digestive mucosa has been the subject of several studies since socioeconomic, personal and environmental factors were implicated in the bacteria transmission.
To correlate the inflammatory endoscopic findings with HP infection and the onset of mucosal diseases mucous of the upper digestive tract.
Comparative observational study, in which were collected data from 2247 patients who underwent upper endoscopy and biopsies for HP with urease test. The patients were divided into two groups: HP+ and HP- (control) in which endoscopic findings were observed for the following changes: esophagitis, esophageal ulcer, gastritis, erosive gastritis, gastric ulcer, bulboduodenitis, bulbar ulcer and without disease.
As for esophagitis, there was little disparity in the distribution favorable to HP+ group (HP+ =67.11% and HP- =69.89%) and esophageal ulcer (HP+ =0% and HP- =0, 21%). Gastritis was favorable to HP- group (HP+ =78.34% and HP- =73.63%), as well as erosive gastritis (HP+ = 67,11% and HP- = 64,55%), in bulboduodenitis (HP+ =1,87% and HP- 1,23%), in gastric ulcer (HP+ =2,14% and HP- =2,03%) and in the absence of alterations in the HP+ group (4.81%) with the HP- control group (6,30%), in which there was little disproportion in favor of HP- group, but without statistical significance. As for the bulbar ulcer (HP +=10.16% and HP- =4.48%), there was statistically significant (p=0.00001).
There is no difference between HP+ and HP- groups in inflammatory changes in endoscopic gastroduodenal mucosa, except for the relationship between HP and bulbar ulcer.
HEADINGS: Endoscopy; Esophagitis; Gastrites; Duodenitis; Helicobacter pylori; Inflammation.
A descoberta do Helicobacter pylori (HP) e a análise de sua correlação com as alterações inflamatórias das mucosas digestivas tem sido objeto de inúmeros estudos. Muitos apontam correlação entre esta bactéria e ampla gama de doenças gastroduodenais, modificando o entendimento da fisiopatologia que as produz, bem como interrogando se o tratamento dela pode prevenir complicações.
É sabido, que a aquisição da infecção tem padrão de transmissão interpessoal, relacionado a fatores socioeconômicos e ambientais, sendo mais prevalente em países em desenvolvimento4,18,26.
HP é bacilo gram-negativo espiralado, flagelado. Não costuma ser invasivo, permanecendo na superfície da mucosa gástrica. Pequena proporção de células bacterianas adere ao epitélio da mucosa. Sua forma espiralada e flagelos a tornam móvel no ambiente mucoso e sua eficaz urease a protege contra o ácido, catalisando a hidrólise de ureia para produzir tampão de amônia7.
A infecção pelo HP é relacionada ao desenvolvimento de lesões e linfomas gástricos; porém, ainda não se sabe ao certo se há correlação com a doença do refluxo gastroesofágico e esofagite de refluxo3,20. A literatura já descreve sua associação com duodenite6-8 e com a dispepsia funcional5,8-13.
Estabelecer corretamente a relação com as diversas doenças gastroduodenais é desafiante, pois a presença de infecção acaba por influenciar em um mesmo paciente positivamente em alguns aspectos e negativamente em outros.
O objetivo deste estudo foi relacionar os achados inflamatórios encontrados endoscopicamente com grupos HP positivo e negativo, a fim de analisar se há relação com o aparecimento das principais doenças das mucosas do trato digestivo alto.
É estudo observacional comparativo. Foram coletados dados de 2247 pacientes submetidos à endoscopia digestiva alta e biópsias para HP com teste de urease atendidos pelo Serviço de Endoscopia, Hospital Nove de Julho, São Paulo, SP, Brasil.
Os critérios de inclusão foram: pacientes maiores de 18 anos de ambos os gêneros que realizaram endoscopia digestiva alta com teste da urease, independente da razão da solicitação do exame, doença em curso ou uso de medicamentos. Os critérios de exclusão foram: sangramento ativo durante o exame; uso de anticoagulante; sem resultado de HP por urease; HIV positivos; com operações prévias; tumores no esôfago, estômago e duodeno; e quando não foi possível a realização do exame completo e detalhado (resistentes à sedação ou com hipóxia ou arritmia durante o exame).
Baseado nos 2247 pacientes formaram-se dois grupos: HP+ com 16,6% e HP- com 83,4%. Dentro deles, observaram-se os achados endoscópicos referentes às seguintes alterações: esofagite, segundo a classificação de Los Angeles, úlcera esofágica, gastrite não erosiva, segundo a classificação de Sidney, gastrite erosiva, úlcera gástrica, bulboduodenite, úlcera bulbar e sem doença. Para a identificação de úlcera, usou-se a definição da classificação de Paris.
Para o teste de urease e/ou histológico foram realizadas biópsias em corpo e antro com pinça de biópsias tipo fórceps e o material colocado em reagente pré-fabricado para o teste da urease.
Os pacientes foram previamente submetidos ao preparo habitual para realização da endoscopia - jejum prévio de 8 h para sólidos e líquidos. Imediatamente antes do exame, foi solicitado que ingerissem 10 ml de água com 40 gotas de simeticona e borrifado entre 5-10 puffs de lidocaína spray em orofaringe.
Para as análises dos dados foi utilizado o software estatístico SPSS 23.0. Os pacientes cujo teste de urease deu resultado negativo (HP-) serviram de grupo controle para aqueles cujo teste foi positivo (HP+), a fim de que se pudesse comparar se a presença do HP influenciava positivamente ou negativamente as afecções estudadas. Para determinar se as amostras apresentavam resultado estatisticamente significativos, utilizou-se o teste do qui-quadrado de Pearson, com precisão de 5%, ou seja p<0.5, a fim de afastar resultados que pudessem ter sido gerados ao acaso.
Comparando a incidência da esofagite no grupo HP+ (67,11%) com o grupo controle HP- (69,89%) observou-se pequena desproporção na distribuição, favorável ao grupo HP+ que apresentava percentil ligeiramente menor desta doença. Contudo, a análise dos dados dessa desproporção não apresentou significância estatística (p=0,287464, >.05, Tabela 1A)
TABELA 1 Incidência da esofagite (A) e úlcera de esôfago (B) nos grupos HP+ e HP-
A | esofagite sim | % | esofagite não | % | total | % | |
Hpylori positivo | 251 | 67,11 | 123 | 32,89 | 374 | 100,00 | |
Hpilory negativo | 1309 | 69,89 | 564 | 30,11 | 1873 | 100,00 | |
total | 1560 | 69,43 | 687 | 30,57 | 2247 | 100,00 | |
B | úl esôfago sim | % | úl esôfago não | % | total | % | |
Hpylori positivo | 0 | 0,00 | 374 | 100 | 374 | 100,00 | |
Hpilory negativo | 4 | 0,21 | 1869 | 99,79 | 1873 | 100,00 | |
total | 4 | 0,18 | 2243 | 99,82 | 2247 | 100,00 |
Comparando a incidência da úlcera de esôfago no grupo HP+ (0%) com o HP- (0,21%) observou-se baixa incidência em ambos os grupos, com pequena desproporção na distribuição favorável ao grupo HP+ que não apresentou casos desta doença. Contudo, a análise dos dados da desproporção não apresentou significância estatística (p=0,371051, >.05, Tabela 1B).
Comparando a incidência da gastrite no grupo HP+ (78,34%) com o grupo controle HP- (73,63%) observou-se certa desproporção na distribuição, favorável ao grupo HP- que apresentou percentil menor. Contudo, a análise dos dados dessa desproporção não apresentou significância estatística (p=0,56, >.05, Tabela 2).
TABELA 2 Incidência da gastrite nos grupos HP+ e HP-
gastrite sim | % | gastrite não | % | total | % | |
Hpylori positivo | 293 | 78,34 | 81 | 21,66 | 374 | 100,00 |
Hpilory negativo | 1379 | 73,63 | 494 | 26,37 | 1873 | 100,00 |
total | 1672 | 74,41 | 575 | 25,59 | 2247 | 100,00 |
Comparando-se a incidência da gastrite erosiva nos grupos HP+ (67,11%) e HP- (64,55%) observou-se pequena desproporção na distribuição favorável ao grupo HP- que apresentou percentil ligeiramente menor. Contudo, a análise dos dados dessa desproporção não apresentou significância estatística (p=0,343, >.05, Tabela 3).
TABELA 3 Incidência da gastrite erosiva nos grupos HP+ e HP-
gast eros sim | % | gast eros não | % | total | % | |
Hpylori positivo | 251 | 67,11 | 123 | 32,89 | 374 | 100,00 |
Hpilory negativo | 1209 | 64,55 | 664 | 35,45 | 1873 | 100,00 |
total | 1460 | 64,98 | 787 | 35,02 | 2247 | 100,00 |
Comparando-se a incidência da bulboduodenite nos grupos HP+ e HP- (1,23%) observou-se pequena desproporção na distribuição favorável ao grupo HP-que apresentou percentil ligeiramente menor. Contudo, a análise dos dados dessa desproporção não apresentou significância estatística (p=0,322, >.05, Tabela 4).
TABELA 4 Incidência de bulboduodenite nos grupos HP+ e HP-
bulboduo sim | % | bulboduo não | % | total | % | |
Hpylori positivo | 7 | 1,87 | 367 | 98,13 | 374 | 100,00 |
Hpilory negativo | 23 | 1,23 | 1850 | 98,77 | 1873 | 100,00 |
total | 30 | 1,34 | 2217 | 98,66 | 2247 | 100,00 |
Comparando-se a incidência da úlcera gástrica nos grupos HP+ (2,14%) e HP- (2,03%) observou-se pequena desproporção na distribuição, favorável ao grupo HP- que apresentou percentil ligeiramente menor. Contudo, a análise dos dados dessa desproporção não apresentou significância estatística (p=0,523, >.05, Tabela 5).
TABELA 5 Incidência da úlcera gástrica nos grupos HP+ e HP-
úlcera gast sim | % | úlcera gast não | % | total | % | |
Hpylori positivo | 8 | 2,14 | 366 | 97,86 | 374 | 100,00 |
Hpilory negativo | 38 | 2,03 | 1835 | 97,97 | 1873 | 100,00 |
total | 46 | 2,05 | 2201 | 97,95 | 2247 | 100,00 |
Comparando-se a incidência da úlcera bulbar no grupo HP+ (10,16%) com o grupo controle HP- (4,48%) observou-se desproporção na distribuição, favorável ao grupo HP- que apresentou percentil menor. Ademais, a análise dos dados dessa desproporção apresentou elevada significância estatística (p=0,00001,<.05, Tabela 6A).
TABELA 6 Incidência da úlcera bulbar (A) e ausência de lesões (B) nos grupos HP+ e HP-
A | úl bulbar sim | % | úl bulbar não | % | total | % | |
Hpylori positivo | 38 | 10,16 | 336 | 89,84 | 374 | 100,00 | |
Hpilory negativo | 84 | 4,48 | 1789 | 95,52 | 1873 | 100,00 | |
total | 122 | 5,46 | 2125 | 94,57 | 2247 | 100,00 | |
B | sem alter sim | % | sem alter não | % | total | % | |
Hpylori positivo | 18 | 4,81 | 356 | 95,19 | 374 | 100,00 | |
Hpilory negativo | 118 | 6,30 | 1755 | 93,70 | 1873 | 100,00 | |
total | 136 | 6,05 | 2111 | 93,95 | 2247 | 100,00 |
Comparando-se a incidência da ausência de alterações no grupo HP+ (4.81%) com o grupo controle HP- (6,30%) observou-se certa desproporção na distribuição favorável ao grupo HP- que apresentou percentil um pouco maior de ausência de doenças. Contudo, a análise dos dados dessa desproporção não apresentou significância estatística (p=0,2708, >.05, Tabela 6B).
A colonização mucosa pelo HP predispõe à doença ulcerosa péptica, atrofia gástrica e subsequente câncer gástrico devido às várias alterações na secreção ácida gástrica.
Neste estudo as doenças mais frequentes para os pacientes com HP+ foram gastrite (78,34%), esofagite (67,11%) e gastrite erosiva (67,11%). As outras doenças tiveram prevalência muito pequena e foram úlcera bulbar (10,16%), úlcera gástrica (2,14%), bulboduodenite (1,87%) e úlcera de esôfago (0,00%), com resultados semelhantes já apresentados3,5,17,23.
Apesar da bactéria ter sido inicialmente implicada na patogênese da doença do refluxo gastroesofágico e esofagite, vários estudos demonstraram que a prevalência de sua infecção é menor que no resto da população19,22,25,28. Explica-se isso pela atrofia gástrica e subsequente redução da secreção ácida gástrica causada o que levaria à menor lesão esofágica. Apesar disso, pela sua implicação na carcinogênese gástrica, orienta-se a sua erradicação15,19.
Não foram analisados no presente estudo os efeitos carcinogênicos, diretos ou indiretos, nem tampouco a atrofia gástrica ou o refluxo gastroesofágico, associados à infecção por HP. Pôde-se analisar dados referentes às úlceras do trato digestivo, onde confirmou-se relação direta entre a presença de úlceras e HP+; mas, apenas para úlcera bulbar esta relação demonstrou-se significante. Fato observado sem correlação com a literatura foi à relação inversa entre HP e úlcera de esôfago, mas com desproporção muito pequena e estatisticamente insignificante.
Os dados também demonstraram relação inversa entre a presença de HP e esofagite, com certa desproporção percentual a menor para o grupo HP+ em relação ao HP-. Os números desta relação não chegaram a apresentar significância estatística, mas confirmaram a literatura citada.
A infecção pelo HP é considerada a principal causa de gastrite crônica ativa1,9 e estudos sugerem que esse agente desempenha importante papel na gênese da úlcera péptica19. Após a constatação de que sua erradicação acarreta a cicatrização da úlcera, decidiu-se que os pacientes com ela relacionada ao HP deveriam receber tratamento específico para o agente. A erradicação da bactéria visa restabelecer a mucosa gástrica e acabar com a evolução carcinogênica da gastrite aguda (gastrite crônica - atrofia - metaplasia - displasia - câncer). Muller et. al.12 encontraram que os pacientes com HP+ apresentaram razão de chances 10 vezes maior (IC 95%=6,50%-17%) de apresentar algum dos graus de lesão da mucosa gástrica do que aqueles com ausência. Estima-se que somente parcela dos indivíduos infectados pelo HP desenvolverão doenças gastroduodenais devido à diferente patogenicidade das cepas. Estudos têm demonstrado que a infecção com HP Cag-A+ é associada às alterações no ciclo celular e apoptose do epitélio gástrico e com níveis mais acentuados de inflamação11,14. O HP Cag-A+ também tem sido associado com maior intensidade de atrofia e metaplasia intestinal10,16,21,24.
Estudos demonstraram ainda a forte relação entre úlcera duodenal e HP26,27. Encontraram úlcera duodenal como lesão mais comum em seu trabalho27. Caetano et. al.2, avaliando prospectivamente 150 pacientes do total de 1.043 atendimentos, evidenciaram gastrite crônica em 109 pacientes (72,6%), úlcera gástrica em seis (4%), duodenite crônica em nove (6%) e úlcera duodenal em 26 (17,4%). Depois, agruparam os pacientes em que 103 (68,67%) apresentaram teste da urease positivo, 104 (69,33%) positividade histológica e 98 (65,33%) positividade sorológica para HP. Marques12, analisando 1478 casos, tiveram como achados endoscópicos mais frequentes: gastrites (n=810, 54,8%); úlceras pépticas duodenais e gástricas (n=494, 33,4%); duodenites (n=287, 19,4%) e esofagites (n=217, 14,7%); prevalência da infecção por HP em 53% (n=786) aumentando o risco de úlceras gástrica e duodenal em 1,9 e 1,6 vezes.
Os dados aqui apresentados possuíam percentual bem menor que o referido na literatura (16,6%). Contudo, denotam certa propensão, ainda que pequena e pouco significativa, dos indivíduos do grupo HP+ apresentarem alterações nas mucosas, sendo que, em análise global, apenas 6,30% do grupo HP+ não apresentou qualquer outro tipo de alteração contra 4,81% do grupo HP- (controle). Cumpre-se ressaltar, novamente, que para relação específica entre HP e úlcera bulbar os números mostraram-se significativos.
Não há diferenciação entre os grupos HP+ e HP- nas alterações endoscópicas inflamatórias na mucosa gastroduodenal, exceto para a relação entre HP e úlcera bulbar.