versão impressa ISSN 1809-2950
Fisioter. Pesqui. vol.21 no.4 São Paulo out./dez. 2014
http://dx.doi.org/10.590/1809-2950/11880021042014
Apesar do grande número de pesquisas envolvidas no estudo da dor lombar, os mecanismos que conduzem ao seu desenvolvimento permanecem mal entendidos, sendo 90% dos casos classificados como não específicos, uma vez que o diagnóstico definitivo não pode ser alcançado1. Entretanto, há evidências (nível A) de que as variáveis psicossociais, geralmente, têm maior impacto do que os fatores biomédicos ou biomecânicos na incapacidade associada a dor lombar2. Do ponto de vista clínico, a dor lombar é um processo multifatorial complexo, que depende de características somáticas, psicológicas e ambientais2, sendo considerada muitas vezes uma condição difícil de ser tratada pela abordagem clássica de saúde, a qual enfatiza principalmente os fatores somáticos, não conseguindo evitar sua cronificação3 que pode estar associada com níveis significantes de depressão4 , 5, incapacidade e baixa qualidade de vida6.
Investigações com pacientes deprimidos, mas sem dor lombar, indicaram que a aliança terapêutica parece influenciar positivamente na direção de mudanças cognitivas duradouras, assim como antecipar melhorias no tratamento7. O conceito de aliança terapêutica, oriundo no campo da Psicoterapia, foi proposto por Bordin8, no qual ele defende que a aliança terapêutica entre a pessoa que busca a mudança e quem se propõe a ser um agente de mudança é uma das chaves, se não for a chave, no processo de mudança.
Desta forma, é possível supor que, em pacientes com quadro de dor lombar crônica não específica, o estabelecimento de uma aliança terapêutica positiva é capaz de favorecer o recrutamento muscular adequado, contribuindo para o sucesso da reabilitação física. Assim, o objetivo do presente estudo foi verificar o impacto da aliança terapêutica no recrutamento da musculatura abdominal profunda em pacientes com dor lombar crônica não específica.
O protocolo de pesquisa foi registrado na Australian New Zealand Clinical Trails Registry, sob o número ACTRN12610000829011, e aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (Unesp), campus Presidente Prudente, (processo no. 53/2009).
Foram envolvidos no estudo 12 voluntários (50% masculinos, 50% femininos), com características antropométricas e clínicas homogêneas e apresentando dor ou desconforto na região entre a margem costal e a prega glútea inferior, com ou sem mencioná-la para as pernas, por período igual ou superior a três meses (Tabela 1).
Tabela 1. Dados antropométricos e características da amostra durante a linha de base
Variável | Ocorrência (média, IC95%) |
---|---|
Sexo Masculino | 6 (50%) |
Idade (anos) | 37,2 (31,2–43,7) |
Peso (kg) | 72,8 (64–82) |
Altura (cm) | 167,7 (162,6–173,7) |
Tempo de dor (meses) | 60 (41–82) |
McGill (0–93) | 27 (22,9–30,2) |
RM (0–24) | 7 (5,5–8,9) |
Cinesiofobia (68) | 40 (31,1–43,4) |
Lócus de controle | |
Interno (36) | 26 (23,4–28,1) |
Externo (36) | 23 (21–25) |
McGill: questionário McGill de dor; RM: questionário Rolland Morris para incapacidade; cinesiofobia: escala TAMPA de cinesiofobia; lócus de controle: questionário de controle de saúde multidimensional
Os participantes selecionados preencheram os seguintes critérios: ausência de alterações estruturais dos membros inferiores (MMII) e/ou coluna lombar; histórico negativo de cirurgia em segmento vertebral; ausência de bandeiras vermelhas (tumores, infecções, processos inflamatórios) ou de sinais claros de radiculopatias com alteração de reflexos, dermátomos e/ou miótomos; ausência de doença reumática da coluna lombar ou incontinência urinária ou alteração cognitiva; índice de massa corporal (IMC) <35 kg/m², permitindo a visualização da camada muscular profunda; não estar em gestação ou período puerperal e não estar envolvido em outro programa de tratamento.
Os voluntários foram entrevistados para o preenchimento do questionário McGill9, que reporta o nível de dor; da escala TAMPA de cinesiofobia10, que quantifica o medo do movimento e da atividade física; do questionário multidimensional de lócus de controle da saúde11, o qual verifica as crenças do voluntário diante de sua condição de saúde e o Rolland Morris, que avalia o grau de incapacidade12. Após o preenchimento do questionário, o recrutamento dos músculos transverso abdominal (TrA) e oblíquo interno (OI) foi avaliado por meio da ultrassonografia de imagem. Ao completar a avaliação inicial, os participantes iniciaram um programa de estabilização lombar, conforme descrito por Costa et al.13.
Reavaliações do nível de dor, do grau de incapacidade e do comportamento muscular, bem como análise da aliança terapêutica ocorreram entre a primeira e a segunda fase de intervenção e ao final do tratamento. Todos os participantes do estudo foram esclarecidos sobre os procedimentos e objetivos da pesquisa, e solicitados a assinarem o termo de consentimento livre e esclarecido.
A análise da aliança terapêutica foi verificada por um avaliador independente, por meio da aplicação do questionário WAI14 (versão do paciente) na transição da primeira para a segunda fase do programa de intervenção e ao final do estudo. Este questionário é composto por 36 questões direcionadas ao paciente, as quais permitem avaliar os três domínios propostos por Bordin8 para a formação da aliança. A aliança terapêutica representa a relação baseada no senso de trabalho conjunto, em uma luta contra aquilo que aflige o paciente. Sua construção está fundamentada na concordância entre terapeuta-paciente quantos aos objetivos, ao comprometimento com a intervenção proposta e no vínculo afetivo entre paciente e terapeuta8. A qualidade da aliança terapêutica é estabelecida pela soma das características pessoais do paciente anteriormente à terapia, das características pessoais do terapeuta, da habilidade técnica do terapeuta, do comportamento entre paciente e terapeuta frente às necessidades e das características do paciente15.
O recrutamento muscular foi verificado por meio da ultrassonografia de imagem, um método não invasivo e confiável16 que permite a visualização e a quantificação de alterações em músculos da camada abdominal superficial e profunda17.
O registro ultrassonográfico foi realizado com um transdutor de 13.5 MHz acoplado a um aparelho de ultrassonografia da marca Siemens (Issaquah, WA, USA), modelo Sonoline Sienna. Para aquisição das imagens do recrutamento dos músculos TrA e OI, utilizou-se o protocolo proposto e validado por Ferreira et al.18, em que os participantes do estudo foram posicionados em supino sobre uma maca com os braços cruzados no tórax, com flexão de quadril e joelho a 50º e 90º, respectivamente, com transdutores de força afixados nos membros inferiores (Figura 1).
Figura 1. Posição do paciente para registro das medidas do comportamento muscular por meio da ultrassonografia de imagem
O examinador responsável pela obtenção das imagens com a ultrassonografia foi previamente treinado, e a confiabilidade intraexaminador das medidas foi verificada em um ensaio-piloto, no qual o registro das imagens foi realizado em dias distintos com um intervalo de 24 horas entre as medidas.
As imagens obtidas por meio da ultrassonografia foram analisadas em um software desenvolvido para fornecer os valores correspondentes à espessura dos músculos TrA e OI. Após o estabelecimento de um ponto de referência, o programa sobrepunha automaticamente uma grade com linhas verticais, separadas a uma distância de 5,10 e 15 mm de uma linha vertical de referência que havia sido traçada junto à fáscia que delimita a borda medial do TrA (Figura 2).
Figura 2. Imagem ultrassonográfica obtida durante a coleta TrA: músculo transverso abdominal; OI: músculo obliquo interno. A primeira linha vertical à esquerda demarca a borda do transverso abdominal
Após o cálculo da espessura em cada um destes pontos, a média aritmética da espessura muscular foi calculada para cada imagem. A partir desta medida, mensurou-se o percentual de alteração entre repouso e contração utilizando-se da Equação 1:
em que, C representa a média da espessura muscular durante a contração e R demonstra o valor da média em repouso dos músculos TrA e OI.
A confiabilidade intraexaminador das medidas ultrassonográficas foi observada previamente ao início das coletas, em um ensaio-piloto por meio do cálculo do coeficiente de correlação intraclasse (CCI3,1).
Para verificar o comportamento da aliança terapêutica entre a transição da primeira para a segunda etapa do protocolo de tratamento e ao final do estudo, utilizou-se o teste não paramétrico de Friedman.
Para análise da incapacidade, do recrutamento muscular dos músculos TrA e OI pré- e pós-intervenção, aplicou-se o teste não paramétrico de Kruskal-Wallis, enquanto a variação do nível de dor nas diferentes etapas do estudo foi verificada por meio da análise de variância (Anova) one-way.
A fim de verificar a associação entre as variáveis contínuas estudadas, foram construídos dois modelos forçados de regressão linear múltipla. Cada um utilizou como variável resposta a mudança no recrutamento dos músculos TrA e OI pré- e pós-intervenção e como explicativas as variáveis aliança terapêutica após a primeira fase da intervenção, incapacidade, dor e recrutamento muscular durante a linha de base.
Os modelos de regressão construídos foram:
mudança no recrutamento do TrA = - α- β1 x incapacidade + β2 x dor - β3 x TrA + β4 x WAI;
mudança no recrutamento do OI = α + β1 x incapacidade + β2 x dor - β3 x OI - β4 x WAI.
Todas as análises estatísticas foram efetuadas utilizando o pacote estatístico PASW(r) para Windows, versão 18.0, considerando um nível de significância de 5% (α<0,05).
O estudo da confiabilidade intraexaminador para análise ultrassonográfica do recrutamento do TrA revelou uma excelente concordância, segundo a classificação proposta por Fleiss19 (CCI3,1=0,88; IC95% 0,61-0,96) para a imagem capturada durante o movimento de extensão e 0,82 (IC95% 0,39-0,95) para o de flexão.
A análise do comportamento muscular após o período de intervenção revelou não existir melhora do recrutamento muscular do TrA e OI com a intervenção (p=0,5).
Os níveis de dor e incapacidade apresentaram uma redução estatisticamente significativa (p=0,04 e p=0,03, respectivamente) após a aplicação do protocolo de intervenção, revelando a ocorrência de melhora clínica ao final do estudo.
O modelo de regressão proposto e ajustado para o TrA (Tabela 2) representou 41% da variância, entretanto não explicou o recrutamento do TrA (R2=0,7; F=2,9; p=0,1). Já o de OI (Tabela 3) indicou 54,9% da variância, explicando significativamente o recrutamento de OI (R2=0,8; F=4,3; p=0,04), porém não foi verificada associação entre o recrutamento do OI ao final do estudo e a aliança terapêutica.
Tabela 2. Modelo forçado de regressão para o músculo transverso do abdômen
Variável | β padronizado | Valor p | IC95% |
---|---|---|---|
Constante | 4.99 | 0,659 | -20,662–30,645 |
Incapacidade_T0 | 0,405 | 0,221 | -0,570–2,068 |
Dor_T0 | 0,234 | 0,483 | -0,428–0,818 |
OI_T0 | 0,522 | 0,065 | -0,012–0,292 |
WAI_T1 | -0,322 | 0,222 | -0,290–0,080 |
WAI: escala de aliança terapêutica; TrA: transverso abdominal; T0: linha de base; T1: fase 1 de intervenção
Tabela 3. Modelo forçado de regressão para o músculo oblíquo interno
Variável | β padronizado | Valor p | IC95% |
---|---|---|---|
Constante | -92.693 | 0,087 | -202,910–17,524 |
WAI_T1 | 0,475 | 0,102 | -0,168–1,477 |
Incapacidade_T0 | -0,338 | 0,344 | -8,827–3,529 |
Dor_T0 | 0,746 | 0,058 | -0,113–5,378 |
TrA_T0 | -0,613 | 0,049 | -1,137– -0,002 |
WAI: escala de aliança terapêutica; OI: oblíquo interno direito; T0: linha de base; T1: fase 1 de intervenção
A análise do recrutamento dos músculos TrA e OI ocorreu por meio de um protocolo proposto na literatura18, que se mostrou uma técnica reprodutível16, contanto que o responsável pelo registro das imagens esteja devidamente treinado na execução do procedimento20.
Os modelos de regressão apresentados permitiram explicar apenas o recrutamento do OI, contudo, sua associação com a aliança terapêutica não pode ser afirmada. Até o momento, não temos conhecimento de algum estudo que buscou verificar a associação entre aliança terapeuta/paciente e recrutamento muscular. Entretanto, um recente estudo de revisão sistemática21 demonstrou que a aliança positiva entre terapeuta e paciente parece ter um efeito favorável no resultado dos tratamentos físicos envolvendo exercícios gerais, manipulação vertebral e fisioterapia respiratória, enquanto Ferreira et al.22 demonstraram seu valor no tratamento da dor lombar.
A análise do nível de dor avaliada pelo questionário McGill ao final da intervenção mostrou redução do quadro doloroso. Este foi um achado semelhante ao resultado de revisões sistemáticas23 - 26, as quais sugeriram a efetividade dos exercícios de controle motor em aliviar a dor, embora também há um relato evidenciando a ausência de efeitos claros do uso de exercícios de controle motor na intensidade da dor a curto prazo13.
Ao término da intervenção, notou-se uma diminuição significante da incapacidade. O comportamento da incapacidade após programas de exercícios tem gerado resultados conflitantes, havendo estudos que relatam não existir diferença entre exercícios de estabilização e cuidados usuais27 ou exercícios gerais28 para reduzir a incapacidade a curto prazo. No entanto, para médio e longo prazo, exercícios de estabilização se sobressaem23 , 26. Uma investigação recente encontrou resultado semelhante ao do presente trabalho, evidenciando melhora na limitação da atividade a curto prazo13.
A participação do músculo TrA na estabilização da coluna lombar foi evidenciada em diversos estudos27 - 31. Ferreira et al.32 observaram que a melhora no recrutamento do TrA em sujeitos com dor lombar crônica contribui para a redução da incapacidade. Apesar de nossos resultados revelarem o mesmo, não foi verificada melhora significativa no recrutamento muscular. Este achado pode ser devido ao fato de os sujeitos estarem envolvidos em um programa no qual foram submetidos a um máximo de 12 sessões (média≈10), uma vez que demonstrou-se a capacidade da dosagem interferir na resposta ao tratamento33. Desta forma, acredita-se que a redução da dor e da incapacidade possa estar associada a um possível equilíbrio no recrutamento conjunto dos músculos TrA/OI e não apenas por seu recrutamento individual, uma vez que O'Sullivan et al.34 observaram que a diferença entre indivíduos com e sem história de dor lombar não se encontra na diferença da atividade entre os músculos superficiais e profundos, mas sim no percentual de ativação da musculatura profunda em razão dos músculos mais superficiais.
Os resultados apresentados no presente estudo fornecem informações limitadas principalmente devido ao tamanho amostral. Portanto, a condução de um estudo maior sobre o tema pode fornecer informações que ajudem a elucidar tal questão.
O recrutamento dos músculos TrA e OI não se mostrou relacionado com a aliança terapêutica. A aplicação de exercícios de controle motor durante oito semanas é capaz de reduzir a incapacidade e a dor a curto prazo, sem necessariamente produzir mudanças no recrutamento dos músculos abdominais profundos.