versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.10 Rio de Janeiro out. 2019 Epub 26-Set-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320182410.17662017
A prevalência de sobrepeso e obesidade em crianças e adolescentes vem aumentando nas últimas décadas1. Pesquisa recente com abrangência nacional realizada no Brasil revelou 17,1% de sobrepeso e 8,4% de obesidade em escolares de 12 a 17 anos2. A adiposidade aumentada na infância ou adolescência constitui importante fator de risco para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares (DCV) em adultos3,4 e a alteração dos lipídios plasmáticos podem ser mediadores importantes deste processo. Desta forma, medidas preventivas devem ser implementadas e acompanhadas desde a mais tenra idade, mediante controle dos principais fatores de risco, incluindo o colesterol e suas frações5,6. Estudos têm mostrado que o aumento do colesterol em crianças se associa com o espessamento do complexo médio-intimal das carótidas, um marcador subclínico de aterosclerose em adultos7,8.
O índice de massa corporal (IMC) e a circunferência da cintura (CC) associam-se a maiores valores de pressão arterial, insulinemia de jejum e dislipidemias em crianças e adolescentes6. Estes fatores atuam sinergicamente para aumentar o risco cardiovascular9. Porém, o percentual de gordura corporal (%G) e a relação da cintura pela estatura (RCE) parecem ser melhores indicadores de acúmulo de gordura corporal total e central, respectivamente, sugerindo que seriam melhores preditores de risco cardiometabólico10,11.
As dislipidemias podem ter natureza genética ou multifatorial. A primeira é mais rara. A dislipidemia multifatorial é mais frequente tanto em crianças como adultos e decorre de alterações de hábitos de vida, incluindo alimentação inadequada e sedentarismo5, fatores estes também fortemente associados ao excesso de adiposidade; independente da hereditariedade10,12,13. A dislipidemia multifatorial é um fator de risco e não uma doença, quando presente na infância ou adolescência14 e, portanto, deve ser controlada mediante adoção de hábitos saudáveis de vida.
O aumento do colesterol total (CT) e da lipoproteína de baixa densidade (LDLc) parece estar associado ao acúmulo de gordura visceral, pois sua prevalência aumenta com a elevação do IMC,da CC e do %G14. Atualmente, entretanto, o colesterol não agregado à lipoproteína de alta densidade (Não HDLc) vem sendo considerado melhor preditor de doenças cardiovasculares quando comparado à LDLc ou ao CT em populações infanto-juvenis15,16.
Tendo em vista que o estado nutricional é um dos fatores de risco para a dislipidemia multifatorial, este estudo teve como objetivo verificar a relação entre a composição corporal, através de diferentes indicadores, e alteração das frações lipídicas em escolares, a fim de quantificar o impacto do acúmulo excessivo de gordura nas alterações destas frações. Adicionalmente também verificamos se o acúmulo de gordura corporal impacta os lipídios plasmáticos da mesma forma em meninos e meninas.
Estudo quantitativo, descritivo e analítico, de corte transversal, em crianças e adolescentes matriculados em instituição denominada ‘Estação Conhecimento’ sediada em Serra, Espírito Santo. Os dados foram coletados entre 2014 e 2016, havendo cerca de 1.100 elegíveis no período especificado. Deste contingente, 856 crianças e adolescentes participaram do estudo como voluntários. Duas crianças foram excluídas da análise por terem idade <6 anos, totalizando ao final 854 participantes entre 6 e 18 anos. A ‘Estação Conhecimento’ é uma instituição que oferece atividades extracurriculares no contra turno escolar para crianças e adolescentes regularmente matriculados em escolas públicas municipais de Serra, Espírito Santo. Assim, todos os participantes desta pesquisa são escolares matriculados na rede pública de ensino e que pertencem a classes socioeconômicas mais baixas e residem, preferencialmente, no entorno da instituição. O presente trabalho é parte de uma pesquisa mais abrangente intitulada “Determinantes da elevação da pressão arterial em crianças e adolescentes de diferentes ancestralidades” aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
O encaminhamento dos participantes para a pesquisa foi feito pelo Serviço Social da Estação Conhecimento e todos os exames foram realizados na Clinica de Investigação Cardiovascular (CIC), vinculada ao Hospital Universitário da UFES. O projeto foi divulgado para os pais e responsáveis através de cartas e em reuniões. Os pais ou responsáveis assinaram o Termo de Consentimento e os adolescentes (≥ 12 anos) assinaram o Termo de Assentimento.
Os participantes compareciam à CIC em dia pré-agendado pela manhã em jejum para realização de exames clínicos e coleta de material para exames bioquímicos. Uma amostra de sangue foi coletada por venopunção no antebraço. Alíquotas eram enviadas para um laboratório central para dosagem do colesterol total (CT), HDLc e triglicerídeos (TG), além de outros componentes. A fração LDL-c foi calculada pela fórmula de Friedewald
A antropometria e bioimpedância foram realizadas após esvaziamento vesical, com o participante descalço e usando apenas roupa de banho. A estatura foi determinada em estadiômetro de parede com precisão de 0,1 cm. O peso corporal foi obtido em balança de bioimpedância tetrapolar com oito eletrodos (InBody 230, Korea) com precisão de 0,1 kg, a qual também fornecia automaticamente a porcentagem de gordura corporal (%G). Um indivíduo era classificado pela %G como ‘normal’ ou ‘inadequado’ de acordo com Freedman et al.18, sendo a categoria “inadequado” obtida pela junção das classificações “moderado” e “inadequado”. A circunferência da cintura (CC) foi aferida no ponto médio entre o último arco costal e a crista ilíaca e classificada conforme Taylor et al.19. O índice de massa corporal (IMC) foi calculado pela razão entre o peso corporal (kg) e o quadrado da estatura (m) e os indivíduos foram classificados de acordo com o percentil (p) (Centers for Disease Control and Prevention20) em: baixo peso (< p5), eutrofia (p ≥ 5 e < 85), sobrepeso (p ≥ 85 e < 95) e obesidade (p ≥ 95). A classificação da relação da CC pela estatura (RCE) foi dicotomizada em ‘adequada’ ou ‘inadequada’ pelo ponto de corte estabelecido no p90 da própria amostra.
As variáveis contínuas foram expressas em média ± desvio padrão e por frequência. Foi utilizado o teste de Kolmogorov-Smirnov para testar a normalidade das variáveis contínuas. A comparação de médias foi feita pelo teste t de Student (dois grupos) ou por análise de variância (ANOVA) de uma via com teste post hoc de Tukey (três ou mais grupos). A comparação de proporções foi obtida pelo teste do Chi-quadrado. O grau de associação entre variáveis contínuas foi obtido pelo coeficiente de Pearson e o ajuste ao modelo linear conduzido por análise de regressão. A estatística Z foi utilizada para estimar a influência do acúmulo excessivo de gordura corporal na frequência de colesterol elevado. Os cálculos foram feitos no software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 17.0 e o nível de significância estabelecido em P < 0,05.
Das 854 crianças e adolescentes estudados, 478 (56%) eram meninos. Os participantes foram divididos em 3 faixas etárias (6├ 9 anos, 9├ 15 anos, 15├ 19 anos)sendo maior a proporção na classe de 9├ 15 anos (n=584; 68,4%). A média geral de idade foi de 11,9 ± 2,8 anos. O peso corporal médio foi de 44,3 ± 15,4kg e de 44,4 ± 14,7kg em meninos e meninas, respectivamente. A distribuição da classificação em relação ao IMC foi diferente nos dois sexos, havendo mais meninas (28,2%) com excesso de peso em relação aos meninos (20,3%) (P < 0,05). Para as demais variáveis antropométricas não se detectou diferença entre os sexos (Tabela 1).
Tabela 1 Caracterização da amostra, estratificada por sexo, de acordo com aspectos de desenvolvimento, estado nutricional e frações lipídicas (Serra, ES, 2014-2016).
Variáveis | Feminino | Masculino | Todos | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
n | % | ' n | % | n | % | p valor* | |
Idade | 0,797 | ||||||
6 ꜓ 9 anos 9 ꜓ 15 anos 15 ꜓ 9 anos |
64 253 59 |
17,0 67,3 15,7 |
79 331 68 |
16,5 69,2 14,2 |
143 584 127 |
16,7 68,4 14,9 |
|
Circunferência da Cintura (cm) | 0,113 | ||||||
Adequado (< p80) Inadequado (≥ p80) |
299 70 |
81,0 19,0 |
401 70 |
85,1 14,9 |
700 140 |
83,3 16,7 |
|
Relação Cintura/Estatura (cm) | 0,513 | ||||||
Adequado (p < 90) Inadequado (p ≥ 90) |
322 48 |
87,0 13,0 |
416 54 |
88,5 11,5 |
738 102 |
87,9 12,1 |
|
Percentual de Gordura (%) | 0,603 | ||||||
Adequado Inadequado |
261 107 |
70,9 29,1 |
341 129 |
72,6 27,4 |
602 236 |
71,8 28,2 |
|
Colesterol Total (mg/dL) | 0,666 | ||||||
Desejável (< 170) Limítrofe (170-199) Alterado (≥ 200) |
300 54 11 |
82,2 14,8 3,0 |
395 62 11 |
84,4 13,2 2,4 |
695 116 22 |
83,4 13,9 2,6 |
|
LDLc (mg/dL) | 0,893 | ||||||
Desejável (< 110) Limítrofe (110-129) Alterado (≥ 130) |
331 26 9 |
90,4 7,1 2,5 |
424 30 13 |
90,8 6,4 2,8 |
755 56 22 |
90,6 6,7 2,6 |
|
HDLc (mg/dL) | 0,297 | ||||||
Desejável (> 45) Limítrofe (40-45) Alterado (< 40) |
216 73 79 |
58,7 19,8 21,5 |
259 114 95 |
55,3 24,4 20,3 |
475 187 174 |
56,8 22,4 20,8 |
|
Triglicerídeos (mg/dL) | |||||||
0-9 anos | 0,767 | ||||||
Desejável (< 75) Limítrofe (75-99) Alterado (≥ 100) |
64 23 13 |
64,0 23,0 13,0 |
81 24 13 |
68,6 20,6 11,0 |
145 47 26 |
66,5 21,6 11,9 |
0,506 |
10-19 anos | |||||||
Desejável (< 90) Limítrofe (90-129) Alterado (≥ 130) |
215 40 13 |
80,2 14,9 4,9 |
277 61 12 |
79,1 17,4 3,4 |
492 101 25 |
79,6 16,3 4,0 |
|
Não HDLc (mg/dL) | 0,195 | ||||||
Desejável (< 120) Limítrofe (120-144) Alterado (≥ 145) |
294 56 15 |
80,5 15,3 4,1 |
399 55 14 |
85,3 11,8 3,0 |
693 111 29 |
83,2 13,3 3,5 |
*Qui-quadrado. Significância p < 0,05. 1 Os pontos de corte para classificação dos indivíduos foram obtidos do Centers for Disease Control and Prevention20. Idade: n = 854; Circunferência da Cintura (CC): n = 840; Percentual de Gordura Corporal (%G): n = 838; Estado Nutricional: n = 854; Relação Cintura pela Estatura (RCE): n = 840; HDLc (mg/dL): Lipoproteína de alta densidade, n = 836; LDLc (mg/dL): Lipoproteína de baixa densidade, n = 833; Não HDLc (mg/dL): Colesterol Total menos HDLc, n = 833; Colesterol Total (mg/dL): n = 833; Triglicerídeos (mg/dL), n = 836.
A distribuição do perfil lipídico na amostra foi similar em ambos os sexos (Tabela 1). Observa-se que a fração lipídica mais frequentemente alterada foi o HDLc, que apresentou valores baixos (< 40 mg/dL) em 20,8% da amostra. Níveis aumentados de TG foram encontrados com mais frequência nas crianças de menor idade (6-9 anos) em comparação com as mais velhas (11,9% vs 4,0%; P < 0.01).
Ao associar a classificação do estado nutricional pelo IMC com as frações lipídicas, observou-se aumento progressivo do CT, LDLc e Não HDLc à medida que se compara os indivíduos do menor para o maior percentil de IMC, tanto em meninos como em meninas (Tabela 2). O HDLc comporta-se de maneira inversa ao colesterol total e Não HDLc aumentando (P < 0.001) progressivamente do baixo peso em direção à obesidade, em ambos os sexos.
Tabela 2 Frações lipídicas de crianças e adolescentes de acordo com o estado nutricional, estratificado por sexo (Serra, ES, 2014-2016).
Variáveis | Estado Nutricional1 | ||||
---|---|---|---|---|---|
Baixo Peso | Eutrófico | Sobrepeso | Obesidade | p valor | |
Colesterol Total | |||||
Feminino Masculino |
129,2 ± 24,7 134,0 ± 22,8 |
144,0 ± 28,1 141,5 ± 27,3 |
149,9 ± 28,8*
145,9 ± 29,8 |
151,5 ± 26,7*
151,2 ± 30,0* ┼ ╪ |
0,027 0,032 |
LDLc | |||||
Feminino Masculino |
62,4 ± 21,1 67,0 ± 18,6 |
77,1 ± 24,3 76,4 ± 23,6 |
86,2 ± 24,1*
┼
81,4 ± 25,7 |
88,0 ± 24,6*
88,6 ± 28,2* ┼ |
0,000 0,001 |
Não HDLc | |||||
Feminino Masculino |
78,8 ± 20,7 83,3 ± 21,0 |
95,38 ± 26,0 93,48 ± 24,3 |
104,1 ± 25,8*
100,7 ± 27,1* |
108,1 ± 26,0*
┼
108,4 ± 27,6* ┼ |
0,000 0,000 |
HDLc | |||||
Feminino Maculino |
50,3 ± 7,9 50,7 ± 9,3 |
48,7 ± 9,7 48,1 ± 9,1 |
45,8 ± 9,4 45,3 ± 9,9 |
43,4 ± 9,8*
┼
42,8 ± 9,4* ┼ |
0,000 0,000 |
Teste: ANOVA de uma via seguido do teste de Tukey com significância p < 0,05, dados são expressos em média ± desvio padrão (DP). 1 - O Estado Nutricional foi dado de acordo com o Centers for Disease Control and Prevention20. LDLc (mg/dL): Lipoproteína de baixa densidade, n = 833; Não HDLc (mg/dL): Colesterol Total menos HDLc, n = 833; Colesterol Total (mg/dL): n = 833, HDL (mg/dL): Lipoproteína de alta densidade, n = 819.
*p < 0,05 vs baixo peso;
┼p < 0,05 vs eutrofia;
╪p < 0,05 vs sobrepeso.
Um padrão similar pode ser visto ao se classificar meninas e meninos em relação à RCE e à %G. Os participantes com estes indicadores inadequados apresentaram valores mais altos de CT, LDLc e Não HDLc em ambos os sexos.
A Figura 1 mostra a associação entre a %G e a RCE e as frações lipídicas. Tanto o CT como o Não HDLc aumentam com a elevação do %G, sendo este aumento mais intenso no sexo masculino. O incremento de colesterol por unidade percentual de aumento de gordura corporal foi maior (P<0.05) em meninos do que em meninas (0,812 ± 2,85 mg/dL e 0,332 ± 3,48 mg/dL, respectivamente). A associação entre o %G e o Não HDLc foi mais forte do que em relação ao colesterol total, sendo significativa em ambos os sexos.
Figura 1 Associação entre a concentração de colesterol total e Não HDL com o percentual de gordura corporal (%) e razão cintura-estatura (RCE), estratificado por sexo.Teste: Regressão Linear. CT: colesterol total; Não HDLc: Colesterol Total menos colesterol associado à lipoproteína de alta densidade. A Linha tracejada e o símbolo quadrado em preto, representam o sexo masculino; a linha cheia e o símbolo redondo em cinza, representam o sexo feminino.
A Figura 1 mostra ainda as associações entre as frações lipídicas e a RCE. Tanto o CT e o Não HDLc apresentaram correlação significante com a RCE em meninos e meninas, sem haver diferença entre os coeficientes de inclinação das retas de regressão (p = 0,164 e p = 0,205, respectivamente).
Para estimar o impacto do excesso de gordura corporal na probabilidade de se encontrar o colesterol maior que 170 mg/dL, a amostra foi dicotomizada pelo %Gem ‘adequado’ e ‘inadequado’ ou alto (Tabela 1). Nos dois grupos o colesterol apresentou distribuição Gaussiana (Figura 2) com média de 139,8 ± 27,9 mg/dL no grupo com %G adequado e 144,9 ± 26,5 mg/dL no grupo com excesso de gordura corporal. Usando como ponto de corte o valor de 170 mg/dL para colesterol elevado, observa-se que o excesso de gordura se associou a um aumento de três pontos percentuais (de 14% para 17%) na prevalência de colesterol elevado no grupo estudado.
Figura 2 Distribuição do colesterol em crianças e adolescentes de acordo com o escore Z do percentual de gordura corporal (%G) normal (adequado) ou excessivo (inadequado).Curvas de densidade (ajustadas para curvas normais aceitas pelo teste de Kolmogorov-Smirnov) para os indivíduos com gordura normal (%GordNormal) ou aumentada (%GordExcesso). O escore Z do %G indica a probabilidade da normal padrão de estar associada a cada ponto do nível de colesterol. A linha vertical sinaliza o ponto de corte de 170 mg/dL (limite superior de normalidade para o colesterol total em crianças e adolescentes).
O desenvolvimento de obesidade e o aparecimento de dislipidemias dependem tanto de predisposição genética como de hábitos de vida, incluindo a alimentação, gasto calórico com atividade física, dentre outros. Aumento da incidência de obesidade tem sido observado em praticamente todos os países, incluindo o Brasil. Como a obesidade e as dislipidemias dependem de fatores comuns, o objetivo deste estudo foi o de quantificar o impacto da obesidade na ocorrência de dislipidemias em crianças e adolescentes. Para tanto foi feito estudo em amostra robusta de escolares cobrindo a faixa etária de 6 a 18 anos. Os dados mostraram que a inadequação das medidas antropométricas (RCE e IMC), ou o excesso de gordura corporal avaliado pela bioimpedância se associaram positivamente com valores mais altos de CT e Não HDLc e negativamente com o HDLc, tanto em meninos como em meninas, confirmando dados prévios onde se observou que crianças com sobrepeso/obesidade e que não praticavam atividade física, apresentavam níveis mais elevados de CT21. Importante ressaltar que na mostra deste estudo a maior parte das crianças e adolescentes era praticante de atividade física na própria Estação Conhecimento.
Nosso estudo mostrou ainda que dentre os três indicadores de acúmulo de gordura testados (IMC, RCE e %G), o %G estimado a partir da bioimpedância foi o que mostrou maior consistência interna, constituindo o melhor preditor para identificar crianças e adolescentes com perfil lipídico alterado. Resultados similares foram encontrados por outros autores1,11,22.
O presente estudo mostrou associação entre o %G e a elevação das frações lipídicas (CT e Não HDLc), sendo esta associação um pouco mais forte no sexo masculino. A elevação do Não HDLc nos meninos poderia ser explicada em 11% pelo aumento do %G e 10,7% pelo aumento da RCE. Miyazaki et al.23 mostraram que o Não HDLc tem maior sensibilidade do que o LDLc na predição do risco cardiovascular em escolares, sendo também melhor preditor de doença cardiovascular em adultos. Essa melhor predição decorre do fato de que as frações lipoproteicas LDLc e HDLc têm efeitos opostos na deposição de colesterol no espaço subintimal de artérias e geração de placas ateroscleróticas. Desta forma, o Não HDLc expressaria de forma mais forte o aumento do risco de doença aterosclerótica do que o CT ou a fração lipoproteica LDLc.
Alterações antropométricas, principalmente o acúmulo de gordura visceral, podem ser indicadores precoces de alterações do perfil lipídico, conforme Garcez et al.12 que verificaram correlação positiva entre o peso corporal, a CC e o IMC com a presença de dislipidemia em adolescentes e adultos de São Paulo. Estes achados foram similares aos nossos, verificando correlação positiva entre as variáveis lipídicas LDL-c, CT, Não HDLc com o IMC e CC. Em nosso estudo, entretanto, mostramos que esta associação foi mais forte com %G calculado pela bioimpedância e a RCE. Entretanto, outros estudos não têm encontrado as mesmas associações. Assim, Almeida et al.24, estudando escolares de Vitória (ES), não detectaram associações significativas entre medidas antropométricas (CC e somatório de dobras cutâneas) com o CT. Uma possível explicação para esse achado seria o fato de o estudo ter sido feito em faixa etária mais estreita com inclusão de crianças de 6 a 9 anos.
Hábitos alimentares inadequados (alto consumo de fast food, preparações gordurosas e com alto teor de açúcares), além do baixo gasto calórico em atividade física, contribuem para o acúmulo de gordura e consequente aumento do peso. Assim, há evidências dos efeitos benéficos de hábitos de vida saudáveis, incluindo atividade física, sobre a saúde cardiovascular. Por outro lado, o sedentarismo e a alimentação inadequada afetam a saúde geral não só de adultos como também de crianças e adolescentes. Desta forma o excesso de gordura corporal nesta fase da vida constitui fator de risco de doença coronariana na vida adulta5.
Em relação ao %G, estudo realizado por Krielmler et al.25 e revisão de Jensen et al.26 mostram que a bioimpedância constitui um método confiável, prático e de boa reprodutibilidade para avaliação da composição corporal em crianças e adolescentes, quando comparado com o DEXA, considerado padrão ouro para esta medida. A bioimpedância também foi usada e comparada com a DEXA por Lim et al.27 Neste estudo verificou-se que a bioimpedância tetrapolar de oito eletrodos é mais adequada para a faixa etária em questão, quando comparada com a bioimpedância tetrapolar de 4 eletrodos, uma vez que crianças e adolescentes estão com os compartimentos corporais em modificação. Assim, a bioimpedância com oito eletrodos produz resultados com boa precisão em comparação aos demais métodos de medida da gordura corporal.
Estudos comparativos da associação entre a composição corporal e os lipídios plasmáticos entre sexos são escassos. A maioria dos estudos investiga apenas a influência do sexo na distribuição das prevalências de dislipidemias21,28. Em nosso estudo investigamos não só as prevalências mas também a associação entre diferentes indicadores de obesidade e os valores dos lipídios no sangue. Isso possibilitou detectar pequenas diferenças na influência do acúmulo de gordura nos lípides plasmáticos em meninos e meninas. Nossos dados revelaram que o acúmulo de gordura em meninos tem maior impacto no aparecimento de um perfil lipídico pró-aterogênico em relação às meninas. Uma possível explicação para este achado seria o dimorfismo sexual na distribuição de gordura corporal. Wells29 indicou que o dimorfismo sexual na composição corporal é evidente desde a vida fetal, persistindo durante a infância e se ampliando a partir da puberdade e então diminuindo a diferença entre os sexos a partir da oitava década de vida. A distribuição de gordura como uma característica do sexo foi evidenciada por Nedungadi e Clegg30, demonstrando que meninas tinham maior concentração de gordura corporal distribuída no espaço subcutâneo, enquanto que meninos apresentavam mais gordura na região visceral. Esses dados corroboram com nossos achados de associação mais forte entre alteração do perfil lipídico associado à gordura corporal nos meninos em relação às meninas.
Finalmente nossos dados mostraram que a concentração do colesterol plasmático segue uma distribuição Gaussiana e que o acúmulo de gordura desloca a curva para a direita, mantendo-se praticamente inalterado o desvio padrão. Apesar de as diferenças entre áreas das curvas (Figura 2) serem relativamente pequenas (apenas 3% nas curvas de Z), nossos dados indicam que o excesso de gordura elevaria em 21% a probabilidade de uma criança apresentar colesterol acima do valor de referência (170 mg/dL).
Uma das limitações deste estudo refere-se ao uso de uma amostra não representativa da população de escolares, o que seria essencial em estudos de prevalência. Entretanto, em estudos de associação é pouco provável que achados em amostras não representativas não sejam obtidos em amostras randômicas. Em adição, há que se destacar o fato de que as crianças e adolescentes matriculadas na ‘Estação Conhecimento’ em geral praticam atividade física regular, pois esta estratégia é adotada pela instituição como ferramenta de promoção de saúde.
Consideradas as limitações acima, pode-se concluir que o %G medido por bioimpedância octopolar mostrou ser o melhor preditor antropométrico de elevação do colesterol total e do Não HDLc em crianças a adolescentes, sendo que esta associação foi mais forte no sexo masculino. Assim, o acúmulo de gordura nessa faixa etária levaria a um perfil pró-aterogênico mais característico em meninos, demonstrando a importância da vigilância do peso corporal na infância e adolescência como mecanismo de prevenção de doenças cardiovasculares na vida adulta.