versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.39 no.3 São Paulo jul./set. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20170057
A doença de Fabry é uma enfermidade de armazenamento lisossômico ligada ao cromossomo X causada pela mutação do gene da alfa-galactosidase A (GLA), que produz uma deficiência da enzima alfa-galactosidase A (α-Gal A) e, consequentemente, o acúmulo de glicoesfingolipídeos, principalmente a globotriaosilceramida. A globotriaosilceramida se acumula nos lisossomos por todo o corpo, originando complicações em diferentes órgãos e sistemas, tais como o sistema nervoso central e periférico, rins e sistema cardiovascular.1 Já foram mapeadas mais de 700 mutações do gene da GLA.2 É importante lembrar que as mutações da GLA também podem ser não patogênicas.
As manifestações clássica da doença de Fabry iniciam-se na primeira década de vida, com apresentações de dor neuropática, hipoidrose, angioqueratomas e distúrbios cócleo-vestibulares e gastrointestinais. Após a segunda década de vida, eventos tais como isquemia vascular transitória e acidente vascular cerebral (AVC), doença renal crônica (DRC) manifestada por proteinúria e/ou queda na taxa de filtração glomerular, córnea verticilata, cardiomiopatia e arritmia podem ocorrer.1 Fenótipos de manifestação tardia com predomínio de acometimento cardíaco ou renal também já foram relatados.3,4
A doença de Fabry foi descrita em vários grupos étnicos e apresenta prevalência estimada entre 1:40.000 e 1:170.000 indivíduos do sexo masculino.1 Considerando que a doença de Fabry é rara e que suas manifestações clínicas podem ser discretas, particularmente nos subtipos de início tardio, devemos nos conscientizar que a verdadeira prevalência da doença de Fabry provavelmente encontra-se subestimada. De acordo com esta hipótese, levantamentos de triagem realizados recentemente em recém-nascidos relataram incidência de 1:3.100.5 Entre populações de alto risco, como indivíduos com hipertrofia ventricular esquerda idiopática ou pacientes em terapia de substituição renal, a prevalência parece ser mais elevada.1
No Brasil, a prevalência da doença de Fabry entre pacientes do sexo masculino em hemodiálise varia entre 0,12% e 0,57%.6-8 O desenvolvimento de ferramentas diagnósticas mais baratas, tais como pontos de sangue seco em papel de filtro, tem facilitado a triagem de populações de alto risco. Esta estratégia possibilita a identificação de pacientes com doença de Fabry em centros de terapia renal substitutiva, permitindo o diagnóstico de parentes acometidos em estágio relativamente precoce. Por outro lado, os nefrologistas enfrentarão o desafio de confirmar ou rejeitar o diagnóstico clínico de doença de Fabry originado de resultados positivos de exames de triagem em cada paciente testado.
O presente relato de caso descreve um portador de mutação D313Y identificado pela triagem para doença de Fabry realizada em pacientes do sexo masculino em hemodiálise. A mutação em questão tem sido alvo de polêmica na literatura. O paciente apresentava sinais clínicos, tais como hipertrofia ventricular esquerda, arritmia e doença renal terminal (DRT), que poderiam ser atribuídos à doença de Fabry. Contudo, o diagnóstico não foi confirmado. Este relato de caso destaca a importância da avaliação cuidadosa dos casos suspeitos de doença de Fabry, particularmente quando mutações controvertidas, novas mutações ou mutações de relevância desconhecida são detectadas, de forma a evitar erros diagnósticos e indicações inadequadas de terapia de reposição enzimática (TRE).
Um homem de 44 anos de idade em hemodiálise há sete anos foi incluído na triagem de populações de alto risco para doença de Fabry em 2015. O exame dos pontos de sangue seco revelaram que o paciente tinha atividade enzimática da α-Gal A de 1,24 µmol/L/h (referência: > 2,2 µmol/L/h). Por conta da baixa atividade enzimática, foi solicitado um teste genético, que detectou mutação nonsense p.D313Y no exon 6 em homozigose.
O paciente queixava-se de edema periorbital e fadiga há 10 anos e hipertensão sistêmica há mais de 20 anos. Afirmou não sofrer de doença coronariana isquêmica ou AVC. Não tinha histórico familiar de DRC. O paciente era tabagista (40 maços/ano) e há quatro anos não consumia bebidas alcoólicas. Seu receituário incluía os seguintes medicamentos: clonidina, atenolol, carbonato de cálcio e eritropoietina. Apresentou episódios de arritmia durante sessões de hemodiálise e diagnóstico de lúpus discoide por três anos, justificando a receita de corticosteroides e cloroquina.
A presença de manifestações clínicas (Tabela 1) de doença de Fabry foi investigada mais a fundo. O eletrocardiograma revelou ritmo sinusal, hipertrofia ventricular esquerda e isquemia subepicárdica das paredes inferior e lateral. A ecocardiografia exibiu uma hipertrofia concêntrica moderada do ventrículo esquerdo com dimensão e função preservada. Córnea verticilata não foi detectada. Ressonância magnética (RM), indicada para investigar lesões de substância branca, não realizada por conta do risco de fibrose nefrogênica secundária à exposição a gadolínio.9
Tabela 1 Correspondência entre manifestações clínicas na doença de fabry e no paciente em hemodiálise com mutação d131y
Manifestações da doença de Fabry | Achados no paciente com mutação D313Y |
---|---|
Baixa atividade enzimática | Sim |
Mutação no gene GLA | Sim |
Acroparestesia | Ausente |
Angioqueratomas | Ausente |
Hipoidrose ou hiperidrose | Ausente |
Córnea verticilata | Ausente |
Doença renal crônica | Sim |
Hipertrofia ventricular esquerda | Sim |
Disfunção diastólica | Sim |
Distúrbios da condução | Sim |
Alterações cerebrovasculares | Não investigado |
Depósitos teciduais de globotriaosilceramida | Ausente |
CONCLUSÃO | |
O diagnóstico de doença de Fabry foi refutado com base na ausência de depósitos teciduais de globotriaosilceramida. |
Vale ressaltar que o paciente fora submetido a uma biópsia renal em outro serviço de nefrologia, antes de iniciar a hemodiálise. O tecido renal foi corado com hematoxilina e eosina, ácido periódico de Schiff, tricrômico de Masson e prata. A amostra continha oito glomérulos (cinco escleróticos, três com hialinização glomerular). Os túbulos e o interstício apresentavam sinais de cronicidade. Arteriosclerose e arteriolosclerose grave foram as alterações mais significativas identificadas no compartimento vascular. Em conclusão, os achados histopatológicos eram sugestivos de nefroesclerose hipertensiva. Nenhuma alteração histológica da nefropatia de Fabry, como vacuolização dos podócitos, foi identificada na microscopia óptica.
Com relação ao histórico familiar, o paciente tinha duas filhas. A análise genética realizada em uma das filhas revelou, como esperado, a mesma mutação p.D313Y. A outra filha se recusou a realizar o teste genético. Nenhuma das duas apresentava manifestações clínicas da doença de Fabry.
O paciente apresentava a mutação p.D313Y, com substituição de GAT por TAT no nucleotídeo cDNA 937 do gene da GLA. Esta mutação produz uma substituição única de um aspartato por uma tirosina na posição +313.10 Isso leva à formação de α-Gal A instável ao pH plasmático. A enzima mutante preserva ~60% de sua atividade fisiológica nos lisossomos, cujo pH é 4,6. Isto se chama pseudodeficiência enzimática. Foi demonstrado que portadores da mutação D313Y têm atividade da α-Gal A reduzida no plasma e preservada em nível intracelular.10 Assim, se a dosagem da atividade enzimática da α-Gal A em leucócitos, e não apenas nos pontos de sangue seco, pudesse ser feita, seu resultado seria normal.
A maioria dos estudos clínicos corrobora a hipótese de que a mutação D313Y não é patogênica.11 A liso-globotriaosilceramida, um substrato da molécula de globotriaosilceramida, exerce um papel bem estabelecido na patogenia da doença de Fabry, sendo portanto um biomarcador de gravidade e prognóstico da enfermidade.12 Seus níveis plasmáticos encontram-se aumentados em pacientes com mutações comprovadamente patogênicas, mas não nos portadores da mutação D313Y.12 Por outro lado, foi sugerida uma associação entre a mutação D313Y e lesões da substância branca.10
O exame físico não revelou sinais da doença, tais como angioqueratomas e córnea verticilata. Um fator importante foi o uso que o paciente fazia de cloroquina, que pode levar ao desenvolvimento de córnea verticilata, também descrita como achado característico da doença de Fabry e presente em quase todos os indivíduos heterozigotos do sexo masculino.1 Outros medicamentos que podem causar córnea verticilata são amiodarona e indometacina.13 Não há diferenças entre a córnea verticilata medicamentosa e a provocada pela doença de Fabry. Contudo, a forma iatrogênica desaparece após a interrupção do tratamento.13 Curiosamente, pacientes em uso de cloroquina e amiodarona podem desenvolver inclusões lipídicas no tecido renal semelhantes às encontradas em pacientes com doença de Fabry.14
A detecção de baixa atividade da α-Gal A associada a níveis plasmáticos e urinários elevados de globotriaosilceramida ou liso-globotriaosilceramida e a identificação de familiar afetado com manifestações clássicas são critério para o estabelecimento do diagnóstico de doença de Fabry em casos de dúvida.15 Os níveis plasmáticos de globotriaosilceramida ou liso- globotriaosilceramida não puderam ser avaliados em nosso paciente.
As filhas do paciente, os únicos familiares com quem ele mantinha contato, são portadores obrigatórios da mutação. Elas não apresentavam manifestações clínicas. A demonstração de deposição tecidual de globotriaosilceramida é considerada o padrão ouro para o diagnóstico definitivo de doença de Fabry.15 Nossa paciente fora submetido a biópsia renal alguns meses antes de iniciar a terapia renal substitutiva. Os achados da microscopia óptica eram sugestivos de nefroesclerose hipertensiva, sem achados histológicos de nefropatia de Fabry (Tabela 2).14
Tabela 2 Achados histológicos da nefropatia de Fabry
Microscopia óptica |
As inclusões de glicoesfingolipídeos são removidas durante o processamento do tecido para a inclusão em parafina. Assim, as células, especialmente os podócitos, células epiteliais parietais e células epiteliais tubulares distais, parecem vacuolizadas. Material semelhante a hialina se acumula no meio das artérias e arteríolas (arteriopatia de Fabry) e às vezes nas regiões mesangiais. |
Imunofluorescência |
Negativo. |
Microscopia eletrônica |
Inclusões multilamelares altamente eletrodensas de glicoesfingolipídeos (figuras mielínicas compostas por camadas concêntricas e zebra bodies, com aparência listrada alongada) estão presentes em vários tipos celulares. As inclusões também coram em cor escura em azul de toluidina em cortes semi-finos. Inclusões abundantes estão presentes nos podócitos, células epiteliais parietais e células tubulares distais. Artérias e arteríolas exibem inclusões em células musculares lisas e material semelhante a hialina, consistentes com arteriopatia de Fabry. |
Devemos fazer algumas considerações sobre a biópsia renal na doença de Fabry. Em primeiro lugar, achados histológicos podem passar desapercebidos se a biópsia não for examinada por um nefropatologista experiente. Em segundo, a coloração com azul de toluidina ajuda a demonstrar depósitos citoplasmáticos. Por fim, devemos sempre obter um fragmento de tecido para microscopia eletrônica para investigações adicionais, mesmo que tal técnica não se encontre prontamente disponível.
A investigação completa para a doença de Fabry não pôde ser realizada no presente caso. Cortes semi-finos corados com azul de toluidina, microscopia eletrônica e RM cardíaca e cerebral, ferramentas úteis para detectar fibrose miocárdica e lesões da substância branca respectivamente, não puderam ser utilizadas. Contudo, baseados em revisão da literatura e investigações laboratoriais, concluímos que o paciente não tinha doença de Fabry. Portanto, TRE não foi indicada.
A mutação D313Y não causou doença de Fabry em nosso paciente. A ausência de manifestações clínicas, e particularmente a inexistência de achados histológicos de nefropatia de Fabry, possibilitou a exclusão do diagnóstico e, consequentemente, a não indicação de TRE. O diagnóstico de doença de Fabry não pode ser fundamentado apenas na presença de baixa atividade enzimática. In this regard, em triagem recente realizada com pacientes em hemodiálise na Bahia que incluiu com 2583 pacientes, a mutação patogênica da GLA foi identificada em três de 72 pacientes com baixa atividade enzimática, sugerindo que o diagnóstico de doença de Fabry em indivíduos do sexo masculino baseado exclusivamente em atividade enzimática pode estar associado a um elevado número de falsos positivos (baixa especificidade). Outra importante informação que a genotipagem pode oferecer é o tipo de mutação da GLA, uma vez que algumas mutações missense podem ser tratadas com chaperone farmacológico.16
A prática clínica tem absorvido novas e úteis tecnologias nas últimas décadas, tais como a genotipagem. Não obstante, o diagnóstico deve sempre ser fundamentado no exame clínico, familiar e físico detalhado. Devemos estar cientes de que, além de levar à indicação de tratamentos desnecessários, o diagnóstico incorreto de um distúrbio hereditário pode impor um fardo emocional adicional aos pacientes e suas famílias, o que certamente afetará negativamente sua noção de bem-estar e qualidade de vida.