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Relato de caso de cálculo coraliforme em paciente pediátrico

Relato de caso de cálculo coraliforme em paciente pediátrico

Autores:

Isadora E. Silva,
Gabriela C. Abreu,
Wagner M. Moura,
Débora C. Cerqueira,
Cinthia A. C. Leandro

ARTIGO ORIGINAL

Jornal Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial

versão impressa ISSN 1676-2444versão On-line ISSN 1678-4774

J. Bras. Patol. Med. Lab. vol.55 no.3 Rio de Janeiro maio./jun. 2019 Epub 01-Ago-2019

http://dx.doi.org/10.5935/1676-2444.20190022

INTRODUÇÃO

Os cálculos coraliformes são um tipo específico de litíase em que o cálculo ocupa a pelve e os cálices renais, assumindo a forma de corais(1,2). Apresentam maior número de relatos em mulheres e geralmente são unilaterais(3). Em todo o mundo, cerca de 5% a 10% da população sofrerão com nefrolitíase em algum período de sua vida; entre esses casos, 2%-2,7% serão crianças(1, 4).

A nefrolitíase coraliforme caracteriza-se como uma patologia de rápido crescimento que, se não for tratada, possivelmente evoluirá com destruição do rim acometido e sepse(2, 5). No paciente pediátrico, o quadro clínico da doença pode ser inespecífico, o que requer muita atenção, pois apenas a minoria exteriorizará clinicamente o cálculo urinário como cólica nefrética clássica(6).

Considerando sua significativa morbidade e mortalidade, essa patologia demanda avaliação e tratamento precoces(7). O tratamento padrão-ouro para cálculos coraliformes é cirúrgico e visa obter um sistema coletor livre de pedras, além de preservar a função renal(8). A nefrolitotomia percutânea (NLPC) é o tratamento de primeira linha para o cálculo coraliforme com melhores índices de tratamento(8).

RELATO DO CASO CLÍNICO

Paciente do sexo masculino,2 anos de idade,nascido pré-termo (36 semanas), pequeno para idade gestacional - parto induzido devido à infecção urinária materna, o que acarretou a realização de cesariana. Encontrava-se assintomático, em consulta de rotina. Como conduta médica habitual, foi solicitado exame de urina, que revelou infecção urinária provocada por Proteus mirabilis. Diante do resultado, foi solicitada ultrassonografia (USG) dos rins e das vias urinárias, que evidenciou rins eutópicos, com contornos usuais e relação corticomedular preservada. O rim esquerdo apresentava aumento em seu tamanho geral (70,4 × 38,5 × 28,7 mm) em comparação com o rim direito (67,8 × 29,3 × 23,8 mm) (Figura 1). No terço médio distal do rim esquerdo, foi identificada a presença de estruturas hiperecogênicas confluentes, que promoviam sombras acústicas posteriores, proporcionando dilatações segmentares de estruturas calicinais. Com base na alteração do exame, o paciente foi encaminhado ao nefrologista pediátrico. Foram realizados exames para avaliação de distúrbios metabólicos, como hipercalciúria e hipocitratúria, sendo as dosagens urinárias: relação citrato/creatinina = 1,11 e relação cálcio/creatinina = 0,39, ambos normais para a faixa etária do paciente. USG renal e dinâmico de micção foram realizados, sem evidências de alterações no rim e nas vias urinárias no hemicorpo direito do paciente. Em contrapartida, no rim esquerdo, evidenciou-se a presença de estrutura hiperecogênica com sombra acústica posterior moldando parte da pelve e dos cálices do terço inferior, compatível com cálculo coraliforme, medindo cerca de 30 × 13 × 8,5 mm nos maiores eixos (Figura 2).

FIGURA 1 USG dinâmica do rim direito evidenciando dimensões renaisUSG: ultrassonografia. 

FIGURA 2 USG dinâmica do rim esquerdo evidenciando dimensões renais e dimensões do cálculo coraliforme (seta amarela)USG: ultrassonografia. 

Notou-se discreta dilatação da pelve renal esquerda e dos demais cálices, tanto maiores quanto menores. O ureter ipsilateral apresentou calibre normal na porção proximal e levemente aumentado na distal, com ausência de cálculos. Ao exame, as dimensões do rim direito mostravam aspecto ecográfico normal, enquanto as dimensões do rim esquerdo revelavam parênquima normal e cálculo coraliforme, com leve dilatação do sistema pielocalicinal e do ureter distal. A bexiga continha debris, que poderia corresponder a cristalúria, hematúria ou piúria.

Para complementação da propedêutica clínica e da definição de tratamento, sugeriu-se a realização de tomografia computadorizada (TC) de abdômen e pelve. Esse exame revelou rins de forma, contornos e dimensões usuais, bem como presença de cálculo coraliforme à esquerda com densidade de 1147 UH, medindo cerca de 26 × 19 mm na pelve e no grupo calicinal inferior. Também identificou a presença de hidronefrose à esquerda e a dilatação bilateral dos ureteres, sendo maior à esquerda, medindo cerca de 7 mm no diâmetro anteroposterior (AP), sem sinais de ureterolitíase. As demais vísceras abdominais e pélvicas avaliadas apresentaram-se com características usuais (Figura 3). A cintilografia renal dinâmica evidenciou obstrução alta à esquerda, com diagnóstico de estenose da junção pielocalicinal (Figura 4).

FIGURA 3 TC de abdômen e pelve evidenciando massa hiperdensa em rim esquerdo 

FIGURA 4 Cintilografia renal dinâmica evidenciando obstrução alta a esquerda 

A conduta definitiva foi pielolitotomia, seguida por pieloplastia e colocação cirúrgica de cateter duplo-J unilateral. O paciente evoluiu bem no pós-operatório, mantendo-se assintomático durante a quimioprofilaxia, com um episódio isolado de hematúria.

DISCUSSÃO

A nefrolitíase é uma afecção muito prevalente, cuja incidência vem aumentando nos últimos anos(9). Os cálculos renais podem ser do tipo coraliforme ou não coraliforme. O primeiro é aquele que ocupa a pelve renal e estende-se, no mínimo, para dois grupos calicinais. Sua constituição é variável, podendo ser formado de oxalato de cálcio, ácido úrico, cistina e estruvita(10).

O cálculo coraliforme de estruvita é composto de magnésio, amônio e fosfato e está intimamente relacionado com a infecção do trato urinário (ITU)(11). As infecções que mais se associam à patogênese dos cálculos coraliformes são aquelas provocadas por organismos que produzem a enzima urease, promovendo a geração de amônia e hidróxido a partir da ureia, como Proteus, Klebsiella, Pseudomonas e Staphylococcus(11). Essa relação ocorre pela dependência da coexistência de pH 7,2 e de amônia para a cristalização da estruvita na urina(12). Há outro mecanismo pelo qual a ITU pode induzir a formação desses cálculos: associação com o aumento da aderência dos cristais; contudo, essa tese ainda não está totalmente esclarecida. Tal hipótese justifica o fato de a Escherichia coli se relacionar com 13% dos cálculos de estruvita(13), embora essa bactéria cause 85% a 90% das ITUs(14).

Os cálculos coraliformes são incomuns na população pediátrica e apresentam desafios e dificuldades singulares no tratamento cirúrgico(15). Essa patologia pode ocorrer em pacientes de qualquer idade, sendo a média de idade ao diagnóstico entre crianças de 7 e 10 anos(4). Esses cálculos representam uma preocupação substancial, uma vez que a combinação de infecção e aumento do potencial de obstrução pode induzir o dano ao parênquima renal(15).

Cerca de 75% a 85% das crianças com urolitíase apresentam fatores de risco, como distúrbios metabólicos, infecções recorrentes e/ou anormalidades congênitas do trato urinário(11). O cálculo coraliforme, por sua vez, está associado ao atraso no diagnóstico e no tratamento de ITU. Isso acontece porque o reconhecimento dessas infecções na criança pode ser difícil, pois os sintomas são inespecíficos ou ausentes, principalmente em lactentes. Nesse grupo, a febre é a principal manifestação e muitas vezes o único sinal(6).

Quando o diagnóstico de litíase urinária é feito devido a um achado casual, o estudo metabólico do paciente deve ser realizado por ser um fator de risco para o desenvolvimento de urolitíase. Diante desse achado ocasional no paciente relatado, prosseguiu-se com a investigação metabólica, que não revelou resultados significativos. Além disso, deve-se prontamente avaliar e tratar a nefrolitíase(2), sobretudo devido à importância e à gravidade do cálculo coraliforme. Remoção, erradicação da infecção, correção de eventuais distúrbios metabólicos e de anormalidades anatômicas causadoras de estase urinária são as bases para o tratamento. Este pode ser clínico, intervencionista ou exigir associação de outras terapêuticas. A abordagem clínica deve ser considerada em combinação com a cirurgia para aqueles pacientes com risco cirúrgico proibitivo(1, 8), pois o tratamento conservador apresenta taxa de mortalidade de 28% em 10 anos e 36% de risco de desenvolver insuficiência renal grave(8).

O tratamento intervencionista inclui litotripsia extracorpórea (LECO), litotripsia endoscópica com USG, pielolitotomia aberta e NLPC. Escolhe-se a conduta de acordo com a localização do cálculo e suas repercussões sobre os rins(6). Além disso, deve-se individualizar a decisão, considerando aspectos relacionados com a idade e o estado de saúde de cada paciente(8).

Com o desenvolvimento de cirurgias minimamente invasivas, o número de cirurgias abertas diminuiu, principalmente em pacientes pediátricos. Em uma grande série, a NLPC para tratamento de cálculo coraliforme revelou taxas de remoções parciais e completas de 98,5% e 71%, respectivamente(16). Apesar da elevada popularidade dessa técnica operatória, existem apenas dois ensaios clínicos randomizados que avaliam seu valor terapêutico e comprovam a superioridade da NLPC sobre a LECO, de modo que a primeira é recomendada como tratamento preferencial dos cálculos coraliformes de estruvita(8).

A pieloplastia é o tratamento indicado para a correção da estenose da junção ureteropiélica. Tal estenose caracteriza-se pelo estreitamento do ureter em sua porção cranial, próximo à pelve renal, que, por provocar estase urinária, pode evoluir para hidronefrose progressiva. Quadros de hidronefrose não são raros em crianças e, em sua maioria, ocorrem devido a uropatias congênitas(17). A pielolitotomia é a remoção do cálculo por meio de incisão feita na face posterior da pelve renal. Essa prática tornou-se obsoleta após o aparecimento da LECO e da NLPC. Entretanto, no caso do nosso paciente, não foi possível a realização desses procedimentos.

Embora atualmente a cirurgia aberta não seja muito utilizada, ela é preconizada para casos complexos. Entre suas indicações para o tratamento da litíase urinária, a principal recomendação é para casos de cálculos coraliformes de grandes dimensões em pacientes com sistemas coletores complexos(18), como no caso clínico descrito. Sua morbidade está relacionada com incisão, infecção cirúrgica e lesões vasculares e do parênquima, que podem ocasionar atrofia renal(18). A obstrução ureteral é uma complicação frequente nas cirurgias renais devido à inflamação local que pode cursar com adesão das paredes ureterais. Para tanto, indica-se a colocação de cateter duplo-J(19).

O tratamento adequado e precoce está diretamente relacionado com a manutenção da função renal, portanto, as informações apresentadas neste relato são muito úteis para a prevenção de complicações, como a insuficiência renal em crianças.

REFERÊNCIAS

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