versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465
Esc. Anna Nery vol.23 no.1 Rio de Janeiro 2019 Epub 24-Jan-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0240
A homoafetividade já foi considerada um transtorno mental, ofensa criminal e violação dos valores culturais tradicionais, em muitos países. Ao longo dos anos, ocorreram transformações sociais e mudanças graduais no seu conceito. No entanto, a aceitação social das pessoas com essa orientação sexual ainda é baixa e há opiniões unilaterais e atitudes negativas em relação a essa temática.1 Em consequência, as pessoas com orientação homoafetiva acabam por experimentar estressores adicionais no cotidiano da vida, em todos os ambientes, como situações de preconceito, homofobia internalizada e expectativas de rejeição, causando prejuízos à sua saúde.2 Um estudo realizado com adolescentes homoafetivos(as) revelou que essa população tem sido vítima de diferentes tipos de violência física, verbal, psicológica e sexual, havendo, inclusive, tentativas de suicídio, e que a escola, a família e a comunidade são os principais cenários nos quais ocorre a homofobia. A violência física não foi tão frequente quando comparada à verbal e à psicológica, no entanto, é mais incidente contra adolescentes homoafetivos do sexo masculino.3 Estudos2,4-8 acrescentam que, em decorrência disso, comparados com a população geral, as pessoas homoafetivas apresentam maior prevalência de problemas de saúde mental, incluindo ansiedade, depressão, ideação suicida e tentativas de suicídio. Também apresentam maior prevalência de comportamentos de risco para a saúde, como elevado uso de álcool, maconha e tabagismo diário.9
No Brasil, para contribuir com a redução dessa problemática foi instituído o “Programa Brasil Sem Homofobia” e a “Política de Assistência Integral à saúde da população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais - LGBT”.10 Nessa sigla, atualmente, acrescentou-se a letra I, tornando-se LGBTI, após o crescente aumento de pessoas intersexuais.
A postura do governo federal, até então, marcou a defesa da comunidade LGBTI ao oferecer espaços de denúncia contra o preconceito e inseriu o discurso “ao se sentir ameaçado(a), ligue pra gente!”, “se você sofrer ou presenciar algum tipo de violência ou discriminação, denuncie!” e “disque 100”, indicando a preocupação com qualquer forma de violência, visando à construção de uma sociedade mais justa.10 Contudo, mais recentemente, com a crise econômica, política e cultural que afeta o País, por vezes, tem se incitado ainda mais, a violência e o preconceito voltado à homoafetividade.
Diante dessa realidade, a motivação para investigar a trajetória de jovens homoafetivos(as), emerge da atenta observação e sensibilização, na qualidade de profissionais, educandos e pesquisadores da área da enfermagem, sobre a necessidade de instrumentalizar profissionais da saúde, sobretudo enfermeiros, para o cuidado com indivíduos e populações suscetíveis ao sofrimento psíquico relacionado à sua orientação sexual, familiarizando-os com as diferentes faces desse problema, a fim de sentirem-se seguros para intervenções. Deseja-se compreender como se desenvolve o processo de descobrir-se/aceitar-se homoafetivo(a), bem como os enfrentamentos recorrentes do andar a vida, perante família, amigos e sociedade. Destaca-se que a literatura científica é escassa de materiais sobre essa temática, especialmente, na área de enfermagem em saúde mental e Atenção Primária à Saúde (APS), principal porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS) e, portanto, espaço onde acontecem os encontros, entre profissionais, estudantes da área da saúde e usuários e, portanto, lócus comum de identificação dos problemas da vida, nas famílias e comunidades. Dessa forma, este estudo torna-se importante, porque poderá contribuir para a reflexão dos profissionais de enfermagem, sobre práticas de cuidado em saúde mental a essa população e suas vulnerabilidades, tendo em vista o fortalecimento do modelo de APS no Brasil que se relaciona com marcos como o registro da inclusão social com base na noção de “saúde para todos”, inscrita em agendas como a de Alma-Ata. Além disso, propõe o grito ecoante na busca de inclusão formal dessa população, fazendo frente à diversidade social e atendendo ao atributo derivado da APS que tem a ver com a sua competência cultural.
Ressalta-se, ainda, que pesquisas que tratem da saúde mental de pessoas vulneráveis, qualquer que seja o motivo, precisam ser realizadas, a fim de colaborar com conhecimentos que suscitem a prevenção e desenvolvimento de intervenções efetivas, pois compreender as necessidades de saúde mental da população LGBTI não é apenas uma questão de saúde pública, mas também de direitos humanos.4
Destarte, os objetivos deste estudo foram conhecer a trajetória de jovens homoafetivos(as) a partir da descoberta da sua orientação sexual e do enfrentamento de problemas decorrentes, contextualizando situações que afetam sua saúde mental e refletir sobre o papel da enfermagem no cuidado, no âmbito da Atenção Primária à Saúde.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritiva, realizada em duas instituições de ensino superior públicas em Santa Catarina. Participaram do estudo 19 jovens homoafetivos(as), que se enquadraram nos critérios de inclusão: ser estudante matriculado em curso de graduação no período da coleta de informações; autodeclarar-se homoafetivo(a), não importando o sexo; ser maior de 18 anos; e ter até 24 anos, idade máxima que compreende a classificação de jovem conforme a Organização Mundial de Saúde (OMS). Os critérios de exclusão foram: apresentar distúrbios de fala que dificultasse a comunicação e/ou compreensão entre o pesquisador e o pesquisado; ser estudante matriculado em disciplinas ministradas pelos pesquisadores no período de produção das informações; e ser estudante matriculado em disciplinas que os acadêmicos, membros da equipe de pesquisa, estivessem matriculados, no período de coleta de informações.
As informações foram produzidas de outubro a dezembro de 2016, por meio de entrevista semiestruturada, com questões de identificação e perguntas abertas relacionadas à homoafetividade e à saúde mental.
Para o recrutamento dos participantes utilizou-se a técnica snowball, considerada um dos métodos de captação de sujeitos pertencentes a populações marginais e ocultas, assim como as pessoas homoafetivas. A ideia subjacente a esse método é a de que os sujeitos são selecionados a partir da rede social existente entre os membros de uma amostra.11
Um representante de uma associação LGBTI indicou um participante de cada uma das instituições de ensino cenário do estudo. Após a entrevista com o primeiro participante de cada instituição, esses indicaram os participantes subsequentes e, assim, sucessivamente, até ocorrer saturação das informações. As entrevistas duraram de quinze minutos à uma hora e trinta minutos.
As informações foram interpretadas seguindo a análise de conteúdo, composta pelas etapas de: Pré-análise, Exploração do material e Tratamento dos resultados obtidos e interpretação.12 A Pré-análise consistiu na escolha dos documentos a serem analisados e na retomada dos objetivos iniciais da pesquisa. Foram realizadas leituras e releituras de todo o material coletado nas entrevistas dos participantes e a organização inicial dos relatos, objetivando ter uma visão geral do que foi dito por eles e perceber as particularidades. A exploração do material permitiu apreender a relevância entre as falas de cada participante, classificar as ideias centrais e organizá-las em duas categorias: 1) Descoberta e aceitação da homoafetividade; e, 2) Relacionamento com familiares, amigos e sociedade. Na última etapa, de Tratamento dos resultados obtidos e interpretação, foi elaborada uma síntese interpretativa das categorias, permitindo o diálogo entres os temas, os objetivos e a fundamentação teórica.
Salienta-se que todos os aspectos éticos contidos na resolução n. 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde foram respeitados. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi apresentado aos participantes e assinado após a aceitação da participação na pesquisa. As suas identidades foram preservadas mediante a ilustração das falas com a letra “E” de Entrevista e número de ordem, após cada trecho. O presente estudo teve aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UDESC, sob parecer número 1.777.561/2016.
Dos participantes do estudo, 12 são homens e sete mulheres, com idades variando de 18 anos a 23 anos. Todos referiram que não trabalhavam, apenas cursavam a graduação na Universidade. Em relação aos cursos, a maioria (15) era estudante de Enfermagem, os demais mencionaram estudar Ciências Sociais, Letras, Ciências da Computação e Matemática.
A seguir, estão apresentadas e, posteriormente, discutidas, as duas categorias que emergiram das entrevistas com os participantes.
Os jovens declararam que foram construídos durante a vida na primeira infância, como pessoas heterossexuais e, sentindo-se diferentes, quando perceberam sua orientação homossexual, passaram a se questionar. Para eles, esse encontro consigo mesmo passou por uma dúvida inicial, sobretudo, quando se confrontaram com questões culturais e morais oriundas do grupo familiar.
Eu fui construído como indivíduo heteroafetivo. [...] Eu sempre me senti diferente, nunca conseguia me encontrar frente aos padrões estabelecidos, então surge uma pulga na orelha, porque eu sou diferente? Por que eu não consigo me sentir igual ao sujeito masculino que está ao meu lado? (E15)
Sabe quando tu sempre soube que era diferente? Os meus pais queriam um menino, [...] não conseguiram entender que eu era uma menina, [...] eles me vestiam como um guri. Eu tive a percepção de que eu era uma menina quando tinha 13 anos e minha amiga falou: tu é bissexual? [...] comecei a chorar, porque, no fundo, eu sabia que gostava das amiguinhas. [...] não tinha intimidade com ninguém para falar uma coisa tão importante (E6).
É recorrente a relação entre a homoafetividade e o receio de revelar-se, associado ao respeito aos pais e sua cultura religiosa. Os jovens expressam o processo de descobrimento e as relações com situações de contenção e repressão, experienciadas na infância ou adolescência.
Comecei a perceber que eu tinha atração pelo mesmo sexo quando eu tinha 13 anos. Sou de uma família religiosa, católica [...] você acaba pensando: tenho que fazer alguma coisa para não ser isso [...] conheci uma colega e a gente começou um relacionamento, mas eu não aceitava que era homoafetiva. [...] por mais que eu soubesse e gostasse, eu não podia aceitar, em respeito aos meus pais. (E13)
Desde criança, eu sentia alguma coisa diferente pelas minhas amigas, que não era normal, e eu dobrava os meus joelhos, porque a religião era muito forte, e pedia para Deus tirar isso por que era do demônio e eu não queria isso, não aceitava isso! (E18)
No processo de autoaceitação da homoafetividade, os jovens despertam para questionamentos que contradizem o certo e o errado, aprendido social e moralmente, gerando conflitos internos que os levam a desconstruções. Sinalizam que a falta de aceitação prejudica sua saúde mental, permeada por anseios, negação, resistência e insegurança; e envolve aprender a lidar com os enfrentamentos cotidianos.
Eu acho que a mais difícil é a própria aceitação, que mexe muito com a tua saúde mental. [...] você é o cuspido, é o rejeitado, e você internalizar isso, porque eu sou assim, eu internalizo muito as coisas e isso me prejudica. (E10)
[...] tu vai se acostumando a lutar contra o preconceito, porque tu sofre tanto que às vezes tu pensa: eu não estou disposto a discutir isso, a tentar desconstruir isso, por que não vai adiantar, é a mesma coisa de eu querer falar com uma parede e fazer que ela entenda o que eu estou passando [...] eu posso ser homossexual, mas eu não posso parecer homossexual, eu tenho que ser escondido, porque é uma vergonha para a sociedade isso, então tu vai ficando com receio de algumas situações. (E16)
O tempo demonstrou ser importante na autoaceitação da homoafetividade, pois, por meio dele transcorrem eventos que favorecem o amadurecimento do indivíduo e o encontro com outras pessoas. Nesse processo de descoberta e aceitação da homoafetividade, o papel da mãe e dos amigos destaca-se, oferecendo segurança e conforto.
A parte que, realmente, apertou foi quando eu estava na fase de autoaceitação, mas depois que eu me aceitei eu já me sentia bem comigo mesmo [...] ela [mãe] falou que, independente de qualquer coisa, você é meu filho e eu te amo, não vou mudar com você por conta disso. Aquilo me aliviou bastante [...] ela foi do jeito que sempre foi: atenciosa, carinhosa, preocupada; e isso foi uma segurança que eu tive. [...] comecei a me assumir abertamente para as pessoas, isso não é mais um problema para mim. (E9)
O que mais sofri foi para eu aceitar [...] Minha mãe sabia, ela falou eu sempre soube. Eu não sofri muito até hoje porque minha mãe me ajudou. Meus amigos sabiam, foi bem tranquilo falar para eles, e aqui na Universidade, a maioria é [homoafetivo] e aceita isso tranquilamente [...](E6)
Os participantes do estudo relataram o cotidiano vivenciado após esse rompimento com a reclusão, especialmente, no meio familiar. Jovens com famílias tradicionais, com normas rígidas, não dialogaram com os pais sobre sua homoafetividade por medo de sofrer rejeição, enfrentar situações de violência, perder o suporte financeiro ou causar desentendimentos entre pai e mãe. Em alguns momentos, chama atenção à necessidade que manifestam de assumir uma vida paralela, agindo em casa, como se fossem outras pessoas, o que resulta em infelicidade. A solução encontrada para vivenciar a homoafetividade, por vezes, foi afastar-se da família.
Minha família é tradicional [...] o diálogo com meus pais sempre foi restrito, [...] falar de homoafetividade jamais [...] eu acho que eles sabem, você acaba sendo diferente de todo mundo, aos poucos você acaba dando indícios. (E15)
[...] opressão na família o tempo inteiro, [...] nunca tive coragem de contar para eles, por mais que eu saiba que eles sabem, mas acredito que eles preferem que eu não diga, [...] aí eu fiz vestibular, não tinha nem ideia do que eu queria fazer, simplesmente, queria sair de casa [...] Eu me afastei deles dessa forma, e vim embora. (E4)
Eu não sou assumida para minha família, isso faz com que eu tenha que ser outra pessoa na minha casa [...] fingir ser uma pessoa que não é, como se tu fizesse um teatro na tua vida [...] eu não consigo ter uma conversa com a minha mãe, aí eu tenho os meus refúgios, um deles é a bebida, eu vou atrás da bebida para me sentir feliz, por que eu sei que se eu me assumisse para minha família, eles poderiam me colocar para fora de casa [...] eu não tenho coragem de chegar e falar: “mãe eu gosto de meninas, eu respeito a tua opinião sobre isso, mas eu queria que você me aceitasse”, porque eu sei que um peso sairia das minhas costas e eu poderia ser feliz, porque eu não me considero uma pessoa totalmente feliz, não por eu ser homoafetiva mas por me distanciar da família. (E18)
Os jovens entrevistados expressam a não aceitação dos familiares sobre sua homoafetividade. Mencionaram sobre a busca por profissionais para tratamento psíquico, lideranças religiosas para benzimento, atitudes de repudio e reações de vergonha ou decepção. Embora tenha ocorrido uma crise familiar, em alguns casos, o relacionamento com a família foi retomado, posteriormente. As falas também demonstraram a dificuldade dos familiares, em especial os membros da família nuclear, em lidar com a frustração na quebra de expectativas sociais depositadas no jovem homoafetivo, deixando mágoas que são incorporadas por ele.
Quando eu me assumi minha mãe me levava no psicólogo, na igreja e o pastor tinha que benzer. (E17)
Minha mãe fez greve de fome e parou de falar comigo durante dois meses, ficava trancada no quarto. Ela só chorava, para ela foi um erro dela eu ser lésbica [...] isso me deixou muito mal [...] um dia meu pai falou “você está agindo como se a sua filha tivesse morrido, se você não quiser falar para o mundo ou se você não quer aceitar, ignora essa parte, mas você não pode cortar a relação com ela”[...] a partir desse momento a gente foi conversando, aí começou uma construção, tanto ela quanto a minha irmã, apesar de aceitar também, não concorda. (E14)
Meu pai morreu [...] e era uma cobrança da família, como se eu tivesse que substituir meu pai, eu teria que fazer um papel de homem e, por eu ser gay, eu não era homem. [...] tenho muita mágoa da minha irmã, por várias coisas que ela já fez, que ela falou, [...] ela tem vergonha de ter irmão viado [...] (E19)
Foi um baque, o filho homem, que ele imaginava que ia ser mecânico ou trabalhar no campo. [...] sofri muito preconceito em casa [...] por nomes assim: viadinho, gazelinha. [...] com certeza isso me deixou marcas, que vão ser levadas. [...] Faz três anos que eu não moro mais com meus pais, desde quando eu falei que era homossexual não tem nem bom dia mais, almoçamos juntos, mas não tem nenhum tipo de conversa. [...] (E16)
Em relação aos círculos de amizades, as pessoas homoafetivas externaram sobre o enfrentamento, desde o período escolar de situações de bullying, medos e agressões físicas. Relataram que passam pela insegurança de contar sobre sua homoafetividade a um colega e sofrer represálias ou, até mesmo, perder a amizade. Ao transporem a fase escolar, procuram fazer novos amigos, e esses são elementos importantes da rede social de apoio que os ajudam nas dificuldades do dia a dia.
Meus coleguinhas de classe ficavam me zoando, me chamando de viadinho, de boiola. (E17)
Eu era o primeiro a entrar na escola e o último a sair, eu deixava todo mundo sair antes. Já apanhei, porque, desde muito cedo eu não gostava de jogar bola, não me sentia à vontade em nenhum grupo de meninos [...] Já apanhei porque eu não queria jogar bola, porque eu não jogava bem, apanhei em vestiário de colégio, no hall de entrada [...] (E1)
Eu tenho atendimento psicológico com meus amigos todos os dias, porque eu acho que essa rede de amizade é uma rede que tu consegue se agarrar, sabe que são os amigos, agora, talvez as pessoas que não tenham esses amigos que eu tenho ou talvez tenham outros amigos que não tenham essas percepções, com certeza devem sofrer muito mais. (E16)
Os resultados revelam uma tendência dos homoafetivos de serem rotulados e julgados de modo superficial pela sociedade, punidos com olhares preconceituosos, risos, xingamentos, piadas, críticas sobre o modo como se vestem ou se comportam, e tentativa de estupro. Isso faz com que o silêncio, muitas vezes, seja um meio de defesa.
Quando sai na rua, as pessoas olham feio, passam com carro buzinando, gritando, soltando piadinhas, [...] quando cheguei aqui eu queria me libertar, morando em outra cidade, sozinho, e aí eu fui comprar um salto [...] você percebia as vendedoras indignadas olhando, com aquela cara feia e essas coisas incomodam a gente. (E4)
[...] teve uma noite que eu voltei para casa bastante tarde [...] e fui ao banheiro, deixei a porta aberta, e quando eu voltei, tinha uma pessoa dentro do meu quarto. Foi uma tentativa de estupro [...] consegui me livrar dele, mas foi horrível, tanto que demorei muito para ter a minha primeira relação, sou inseguro, desconfiado de tudo, às vezes, eu fico quieto, porque para mim o silêncio muitas vezes é a melhor resposta. (E15)
Há destaque para os preconceitos que vivenciam nas Universidades advindos dos professores, os quais veem a homoafetividade como problema e, por vezes, pressionam os estudantes homoafetivos para “serem alguém que não são”.
Os professores se achavam no direito de discutir se uma pessoa poderia ou não usar o banheiro feminino, se poderia ou não dar um selinho em uma biblioteca [...] são pessoas que têm estudo [...] qual é o problema? O problema é duas pessoas do mesmo sexo? (E16)
Eu tenho vários trejeitos [...] isso para os professores incomoda, eles ficam me cobrando muito a questão de postura [...] Quando eu vou para o estágio, os professores querem que eu seja um hetero, coisa que eu não sou [...] é difícil, porque é uma cobrança, tu não pode ser o que tu é. (E19)
Tiveram participantes que referiram que as experiências vividas envolvendo relações familiares conflituosas, preconceito e violência ocasionaram sofrimento psíquico. Alguns relatos denunciaram situações de transtornos alimentares, sintomas depressivos e tentativas de suicídio.
Para você ser gay tem que ter um psicológico muito forte, porque o tempo inteiro você está sendo oprimido. Por exemplo, quando eu saio na rua com meu namorado, nossa! É buzina, cara feia, é viado, é o tempo inteiro as pessoas te julgando, isso afeta muito nosso psicológico, dentro de casa, nossas relações. (E5)
Eu não queria ser assim, na sociedade que a gente vive hoje. Eu fui criando essa barreira [...] fui me afastando, nisso eu tive vários problemas, teve um tempo que eu fiquei com bulimia, anorexia, que eu me sentia gorda, e os meninos não vinham atrás de mim, eu querendo seguir o caminho hetero. Comecei a me isolar das pessoas e isso tudo foi me afastando da minha família também, até o ponto que eu tentei suicídio. (E18)
Ao problematizar noções como o direito universal à saúde e a atenção integral, no âmbito das políticas de saúde vigentes, sobretudo, em relação às pessoas que se encontram à margem de uma dada ordem social, percebe-se a saúde mental como elemento essencial para determinar o processo saúde-adoecimento. Uma implicação importante desse conceito é que a saúde mental é mais do que a ausência de transtornos mentais, trata-se de um estado de bem-estar no qual a pessoa realiza suas próprias habilidades, pode lidar com as tensões cotidianas da vida, trabalhar de forma produtiva e é capaz de fazer contribuições à comunidade. A saúde mental é fundamental para a capacidade coletiva e individual das pessoas, para pensar, se emocionar, interagir umas com as outras, aproveitar a vida e ser feliz.13
A promoção, proteção e restauração da saúde mental são preocupações vitais dos indivíduos, comunidades e sociedades, em todo o mundo. Por isso, práticas que interfiram nos determinantes da saúde mental são importantes. Múltiplos fatores sociais, psicológicos e biológicos interferem no nível de saúde mental de uma pessoa, dentre eles, ressaltam-se aspectos culturais, morais, as rápidas mudanças sociais, discriminação de gênero e orientação sexual, exclusão social, risco de violência e violação dos direitos humanos.13 Assim, considerando-se o atual conceito de promoção da saúde no âmbito da APS, a atenção à cultura e aos comportamentos individuais, com ênfase na ressignificação compartilhada da vida e dos seus projetos, são imprescindíveis ao combate da tendência medicalizante, por vezes, culpabilizante e pouco afetiva que vigora no contexto da atenção à saúde, na atualidade.
Os afetos que emergem das falas dos jovens homoafetivos expressam que, em sua trajetória, passam por várias situações que interferem em sua saúde mental. Inicialmente, em decorrência do conflito interno, no processo de descoberta e aceitação da orientação sexual. Posteriormente, perante os enfrentamentos junto à família, aos amigos, ao ambiente universitário e à sociedade em geral.
O estudo revelou que os jovens descobriram sua orientação sexual na adolescência, fase permeada e caracterizada por intensas mudanças e descobertas que envolvem situações sociais, históricas e culturais, as quais contribuem para a transformação dos sujeitos que buscam uma identidade, inclusive sexual, e o seu lugar no mundo. Nessa busca, a sexualidade revela-se como um elemento constitutivo do desenvolvimento e do processo de adolescer.3 No entanto, ainda não há maturidade para enfrentar o processo de descoberta e aceitação da homoafetividade.14
O acontecimento de se descobrir e se aceitar homoafetivo(a) é difícil para o indivíduo, uma vez que, a própria orientação sexual está inserida em um contexto de relações imersas em crenças, tabus e construções sociais. Alguns relatos ilustram como os estereótipos sociais de gênero podem interferir na vida do jovem homoafetivo que não consegue se encaixar nos padrões de comportamento padronizados pela sociedade para o homem e para a mulher.
Os jovens revelaram sentimentos que experimentaram e enfrentaram a partir da descoberta da sua orientação sexual, como o medo, a culpa, a repressão e a sensação de ser diferente e, até mesmo, sentir-se como outra pessoa. As consequências para a saúde desses indivíduos também são reveladas em outro estudo realizado com jovens homoafetivos(as). De maneira convergente, o medo e a culpa foram destacados como sentimentos que emergem pelo fato de se sentirem diferentes e também pela rejeição e preconceito da família e da sociedade, com a homoafetividade. Essa situação vulnerabiliza os jovens, podendo levá-los à negação de seus desejos, a autopunição e ao adoecimento.14
Os sentimentos manifestados pelos participantes revelam que o indivíduo pode internalizar as atitudes e valores negativos da sociedade. Essa homofobia internalizada tem efeitos prejudiciais à saúde mental, uma vez que afeta a autoestima e o desenvolvimento de um autoconceito positivo, podendo resultar em autoflagelação ou violência entre indivíduos.15 Nessa direção, destaca-se a importância da reflexão sobre os aspectos que envolvem a desconstrução da heteronormatividade. Faz-se necessário ampliar o foco da visão, para compreender o homoafetivo, e ressignificar eventuais conflitos familiares e dificuldades com relação à aceitação da sua orientação sexual.16
Estudos demonstram que o momento da revelação da homoafetividade a outras pessoas depende das circunstâncias atuais da vida da pessoa homoafetiva, do ambiente social ou do valor pessoal atribuído à revelação. Ao se tratar, especificamente, da família, essa divulgação tem considerações exclusivas relacionadas às características individuais e familiares.7,17 Observa-se, nos relatos dos jovens, que a família é a sua principal fonte de apoio social e econômico, contudo, a revelação sobre sua orientação sexual pode ser dificultada pelo medo da perda desses suportes, do desamparo e de não ter mais o afeto da família, assim como, para protegê-la do estigma social.
Alguns jovens relataram que não conversaram com seus familiares sobre esse assunto, mas percebiam que eles já sabiam da sua orientação sexual. Contudo, por desconhecimento, por não saber como lidar com a situação ou porque a verdade vem acompanhada da necessidade de um posicionamento, muitos pais e familiares não mencionam o assunto, até que isso fosse inevitável.18Nas falas, observa-se uma atitude comum entre os jovens homoafetivos, de despender um esforço significativo na tentativa de ocultar sua orientação sexual em antecipação à desaprovação de outros ou devido ao medo de violência e discriminação.7
Uma pesquisa sobre a iniciativa de expor a orientação sexual para a família demonstrou que a revelação, geralmente, acontece quando a pessoa homoafetiva tem um maior senso de conexão com os familiares ou os percebem como protetores. Por outro lado, a divulgação nem sempre acontece se ele, ou ela, prevê respostas familiares violentas ou abusivas à divulgação.7
Dos jovens entrevistados, os que tomaram a decisão e a iniciativa de revelar sua orientação sexual aos familiares, declararam que essa atitude ocasionou conflitos, sofrimentos e frustrações aos familiares, pois a homoafetividade acaba saindo do padrão de sexualidade imposto culturalmente pela sociedade, ou seja, a heterossexualidade. As vivências desses jovens confirmam estudos anteriores, referentes às dificuldades encontradas por pessoas homoafetivas quando precisam conversar sobre sua orientação sexual com familiares.7,14,18
A dificuldade de aceitação da família está relacionada a vários aspectos. Um deles é o fato de que muitos indivíduos, ainda, consideram a homoafetividade como uma perversão ou um transtorno mental, e alguns, principalmente no caso dos gays, a associam com a Aids.1 Essa lógica de pensamento pode ser observada nos discursos dos jovens ao externarem sobre a atitude da mãe que buscava a cura do filho por meio da religião ou do atendimento com profissionais.14
Outro aspecto que colabora para a não aceitação da homoafetividade por familiares, são as crenças comuns ao ideário tradicional, com foco no conceito de procriação. Em algumas culturas, os pais consideram os casamentos de seus filhos como sua responsabilidade e ativamente, incentivam, ajudam e até mesmo, forçam seus filhos a se casarem. Muitas pessoas homoafetivas se envolvem em casamentos heterossexuais porque, por um lado, estão ansiosos para ter filhos; por outro lado, desejam atender às expectativas dos pais.1
O conceito de procriação, por vezes, está relacionado a concepções de cunho religioso. Em algumas instituições religiosas, indivíduos com orientação homoafetiva são percebidos como desajustados da natureza. Tais instituições impõem à família a responsabilidade única da procriação e desconsideram o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo, como se elas fossem incapazes de constituir uma família, ter filhos e levar uma vida digna.17 Sobre essa questão, um estudo adverte que grupos religiosos que preconizam a necessidade de mudança de conduta sexual e a cura da pessoa com orientação homossexual são um foco importante de mudanças; pois, na medida em que difundem essas concepções, mantém preconceitos e atos de discriminação.16
Ressalta-se que, neste estudo, apesar da reação inicial da família após a revelação dos jovens sobre sua orientação sexual, principalmente pais e mães, demonstraram posterior aceitação do relacionamento homoafetivo dos filhos, havendo a retomada das relações. Em uma pesquisa,14 realizada com jovens homoafetivos, observou-se que algumas famílias, mesmo tendo dificuldade para entender a homoafetividade, respeitaram o modo de ser do jovem. Outro estudo,18 que investigou três casais homoafetivos, demonstrou que um dos casais alcançou a aceitação de todos os membros da família frente ao seu relacionamento. Dos demais casais, um obteve aceitação parcial, pois alguns familiares continuavam apresentando rechaço e outro teve apenas um número restrito de familiares que lidava bem com a questão.18
Nas falas dos participantes do estudo o bullying despontou na trajetória de vida dos jovens homoafetivos desde muito cedo. Os entrevistados retratam que foram discriminados no ambiente escolar e sofreram agressões físicas nos vestiários e em outros ambientes escolares por apresentarem características pessoais que destoam das pessoas heterossexuais. Estudiosos declaram que a escola é, por vezes, uma entidade que provoca a violência, havendo um despreparo dos educadores em relação à construção de ideais de gêneros e papeis sociais, e que, de algum modo, também praticam formas de violência.19 A violência oprime, cerceia a liberdade, impede o jovem de exercer a sua sexualidade com liberdade, de lutar pelos seus direitos e pelos seus projetos de felicidade que estão diretamente, relacionados à sua aceitação e a aceitação pelo outro, pela família e pela sociedade.
Nas percepções dos jovens homoafetivos, existem professores preconceituosos, que os discriminam e intimidam. Posicionam-se como opressores, reprovando os jovens diante do seu comportamento e dos seus trejeitos. Salientam que, em algumas situações, os professores cobram-lhes posturas heterossexuais quando estão participando de aulas do curso de enfermagem, em campo prático. Em relação a isso, os jovens protestam e entendem que não poderiam representar (no sentido de simular) alguém que não o são.
Infere-se, a partir dessas experiências, que é preciso falar das questões de gênero, sexualidade e diversidades nos espaços de formação dos indivíduos, com mais abertura e livre de julgamentos. Espaços como a Universidade e o serviço de saúde da rede pública são favoráveis para discussão de temas como a homoafetividade e o preconceito, envolvendo profissionais, estudantes, professores e usuários. Aos professores cabe problematizar as melhores práticas na enfermagem, que, para além da busca por evidências científicas, também passam pelo respeito à cultura das coletividades, pela inclusão e pela não discriminação, informando e formando sobre as diferenças, respeitando e protegendo os estudantes da violência e exclusão, com vistas ao respeito mútuo e à justiça social.
Cumpre assim, destacar a importância da enfermagem que, por meio do cuidado ao indivíduo, nos diferentes ciclos da vida, e da família, sobretudo, no âmbito da APS, pode lançar mão de estratégias bem-sucedidas nessa abordagem. A promoção da saúde prescinde de ações educativas e empoderadoras, ao encontro das necessidades singulares, com vistas à autonomia para uma vida feliz.20 Por meio de ações desse porte, também pode aproximar-se e criar meios adequados ao diálogo sobre temas como sexualidade e orientação sexual, envolvendo a descoberta, autoaceitação, aceitação da família e sociedade14.
Nessa linha, é oportuno considerar a Política de Assistência Integral à saúde da população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais - LGBT e a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), que vem atuando na lógica da competência cultural, sinalizando para a universalidade do acesso aos serviços e ações de saúde, pela proibição da exclusão baseada em idade, gênero, raça/cor, etnia, crença, nacionalidade, orientação sexual, identidade de gênero, entre outras.21
Há também, sob uma ótica programática, uma importante reflexão a ser realizada, que diz respeito à implementação do Plano de Ação de Saúde Mental 2013-2020 aprovado pela OMS. Ele combina a universalidade e intervenções direcionadas para promoção da saúde, prevenção de transtornos mentais, redução de estigmatização, discriminação e violações de direitos humanos; e que seja responsivo as especificidades de grupos vulneráveis. Uma especificidade em relação às metas desse plano é reduzir a taxa de suicídio, implementando estratégias de promoção e prevenção em saúde, incluindo a prevenção do suicídio e autoagressão.22
É evidente que, assim como em outras condições de vulnerabilidade, muitos problemas relacionados à saúde mental de jovens homoafetivos(as) são fruto da reação dos grupos sociais em que transitam pessoas que fogem dos padrões, culturalmente, aceitáveis. Construir-se, desconstruir-se, reconstruir-se são movimentos corriqueiros no processo de viver. Entretanto, a tolerância e o respeito à diversidade são virtudes cuja ausência permeia os sentimentos e a construção como indivíduos, dos jovens que participaram deste estudo. Nessa direção, considera-se oportuno provocar o debate, a partir desta e de outras pesquisas sobe a temática, sobre a reorganização dos currículos da graduação em enfermagem (tendo a ética como conteúdo transversal) e dos serviços (aderindo a ações de promoção da saúde, com ênfase na competência cultural).
As experiências relatadas e os sentimentos manifestados pelos jovens que fizeram parte da pesquisa, mostram que, na sua trajetória de vida e no seu entorno sociocultural, existe um contexto de opressão, estigma e violência, relacionado ao não reconhecimento e à falta de aceitação da diversidade sexual. Eles apresentam, de modo subjetivo, sofrimentos psíquicos, resultantes de preconceitos, regras heteronormativas, estigmas, reclusões, perdas e solidão que comprometem a sua saúde mental. Consequentemente, alguns jovens pensam em suicídio, motivo que merece a devida atenção dos serviços e dos profissionais de saúde, sobretudo da enfermagem, uma vez que se trata de um grave problema de saúde pública.
Parece bastante profícuo pensar que as situações mais diversas pelas quais passam jovens homoafetivos(as), podem configurar-se como situações de aprendizado para pais, professores, enfermeiros(as) e sociedade em geral. Despir-se de preconceitos, olhar para o diferente com respeito, estar aberto ao diálogo, nos diferentes espaços de produção da saúde mental, são habilidades complexas e essenciais aos profissionais da APS, portanto precisam ser desenvolvidas e aprimoradas, com base em evidências, considerando aspectos culturais e as diferentes necessidades dos usuários e das coletividades.
Como limitação do estudo se reconhece que não foram investigados familiares, amigos e educadores que convivem com os jovens homoafetivos, o que constitui informações importantes para conhecer elementos afetivos, culturais e sociais sob a ótica desses indivíduos, na perspectiva de produzir novos conhecimentos sobre a temática. Recomenda-se a realização de novos estudos, em outros cenários, para aprofundar e avaliar outros aspectos relacionados à homoafetividade, com vistas a subsidiar ações voltadas para a promoção da saúde e diversidade sexual, incluindo a capacitação dos profissionais de saúde para atuarem com esse público, no exercício da mediação familiar e de outros segmentos sociais.