versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.39 no.3 São Paulo jul./set. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20170054
A doença renal crônica (DRC) é um problema mundial de saúde pública.1 Contribuem para o aumento dos casos diagnosticados a evidente associação com pobreza e condições insalubres de vida, a crescente incidência das suas principais etiologias subjacentes, diabetes e hipertensão, e, paradoxalmente, a maior disseminação de facilidades diagnósticas e maior conscientização de médicos e do público em geral sobre a DRC.
Nesse contexto, quando a taxa de filtração glomerular (TFG) decresce a níveis críticos, a DRC entra numa vertente fisiopatológica que, quase que inevitavelmente, resulta em deterioração funcional adicional. Embora muitos pacientes possam vir a falecer precocemente, por causas diversas,2 quando isso não ocorre, a regra é a progressão até a falência renal.
Como o avançar da idade é um dos principais fatores de risco para DRC, assim como para o diabetes e a hipertensão, diante do envelhecimento progressivo das populações, é também inevitável que se observe aumento no número de casos diagnosticados em pacientes idosos e/ou com comorbidade significativa, incluindo os encaminhamentos para terapia renal substitutiva (TRS).
Em países desenvolvidos, quando se observa a tendência temporal de pacientes incidentes sob diálise, é exatamente o segmento de idosos aquele que mais cresce.3 Esse fato assume dimensões preocupantes quando se examinam os desfechos clínicos desses idosos sob TRS. Em um percentual significativo dos casos, a entrada em TRS é acompanhada por uma espiral de sofrimento, perda da independência, incapacidade funcional e baixa sobrevida.4-7
No Brasil, contrariamente a outros países emergentes, não se pratica racionamento ou seleção de pacientes para tratamento dialítico e esses pacientes são encaminhados à TRS, praticamente sem grandes discussões. Todavia, da forma em que o cenário se descortina, a exemplo de países desenvolvidos,8 a perspectiva é de aumento crescente do contingente de pacientes sob TRS, incluindo idosos frágeis e com extensa comorbidade.
Essa constatação apenas sublinha a dificuldade em estabelecer limites para definir parâmetros de aceitação para tratamento dialítico, notadamente em pacientes idosos com baixa expectativa de recuperação de funcionalidade suficiente para assegurar um mínimo de qualidade de vida ou mesmo de sobrevivência em um prazo relativamente curto.
A renúncia à terapia dialítica pode concretizar-se mediante a descontinuação do tratamento dialítico já iniciado ou por sua não iniciação, podendo ocorrer tanto no contexto da DRC como da injúria renal aguda (IRA), em situações nas quais a terapia estaria tecnicamente indicada de acordo com critérios tradicionalmente aceitos.
Nefrologistas frequentemente são confrontados com decisões envolvendo a descontinuação ou o não início (sonegação) da diálise. Estas decisões, por vezes entendidas como insucesso do médico em informar os riscos, são complexas e devem ser sempre individualizadas. No presente, por envolver aspectos técnicos, éticos, legais, culturais e econômicos, dilemas como esses são uma das mais frequentes situações geradoras de dúvida e angústia na especialidade da Nefrologia.
Em países desenvolvidos, a descontinuação da terapia dialítica de manutenção corresponde a 15 a 22% dos óbitos de pacientes sob TRS,9-13 representando a segunda ou terceira causa mais frequente de óbito de pacientes com falência renal.9,12,14 Nos Estados Unidos da América (EUA), apenas entre 1995 e 1999, cerca de 36 mil mortes (17%) foram precedidas por descontinuação da diálise de manutenção.15
Essa taxa apresenta variação geográfica, o que aponta para a existência de diversidade cultural e de diferenças em relação à prática médica nos diversos locais. Por exemplo, em 2002, na região da Nova Inglaterra, nos EUA, registrou-se que 28% das mortes aconteceram após descontinuação da diálise, percentual significativamente maior do que em outras áreas do país.16 Novamente, no Brasil, há escassez de dados na literatura. Presume-se, entretanto, que por razões sociais, culturais e econômicas essas taxas sejam menores do que as de países mais desenvolvidos.
Existem evidências de risco elevado de suicídio em pacientes sob diálise no Brasil, assim como em outros países.17-20 Em razão de poder configurar-se como uma forma de suicídio, os pacientes que escolhem descontinuar a diálise necessitam de avaliação psiquiátrica com o intuito de afastar quadros depressivos potencialmente tratáveis.
Um estudo sobre suicídio na população em diálise concluiu que a descontinuação da diálise e o suicídio estavam fortemente associados com o tempo em diálise, embora houvesse diferença no padrão de risco entre os dois resultados. O risco de suicídio foi mais elevado nos primeiros três meses após o início de diálise e diminuiu de forma constante ao longo do tempo. Já a descontinuação da TRS mostrou-se elevada durante o primeiro ano de diálise, diminuindo consideravelmente depois.
Diversas características do paciente associaram-se independentemente ao suicídio e à suspensão da diálise, embora a magnitude das associações tenha variado entre os dois desfechos. Idade mais avançada e internação recente foram preditores mais fortes para descontinuação da TRS, enquanto raça branca ou asiática, dependência a álcool ou drogas e hospitalização por doença mental foram preditores mais significativos de suicídio.17
Onde praticada, a discussão pela descontinuação da diálise é iniciada pelo próprio paciente em 42% até 56% dos casos, quando sua capacidade de decisão está preservada.21,22 Quando há incapacidade de tomada decisória, a questão pode ser levantada pela família (10% a 42%) ou pelo próprio médico (30% a 62%).21,22 Pacientes com capacidade de decisão preservada têm o desejo de descontinuar a TRS atendido em 88 a 92% dos casos.21,23
O prognóstico é, inexoravelmente, a morte após algum tempo. O tempo médio de sobrevida é curto, variando entre 6 a 8 dias.24-26 Em um estudo retrospectivo multinacional, de 2002, envolvendo 8615 pacientes de 308 centros de diálise, observou-se que menos de 5% dos pacientes superaram 30 dias de sobrevida após a suspensão da TRS.25
A recusa ou sonegação da diálise, entendida como a não iniciação da TRS em situação de falência renal, é um evento frequente. Diferente da descontinuação da diálise, o prognóstico é mais incerto. Um questionário aplicado a 161 nefrologistas nos EUA observou que 89% haviam sonegado diálise, ao menos uma vez, no ano anterior, sendo que 31 % relataram tê-lo feito por mais de seis vezes no período.21 Se comparado à decisão de descontinuar a terapia dialítica de manutenção, 81% relataram a prática pelo menos uma vez no ano precedente e apenas 9% referiram em mais de seis vezes.
O estudo possui, entretanto, algumas limitações. Foi realizado com nefrologistas de apenas seis estados da Nova Inglaterra e somente 73% dos nefrologistas contatados responderam ao questionário.21 Aparentemente, a sonegação da diálise foi mais comum do que a descontinuação, fato confirmado em um outro estudo.22
A população idosa em diálise cresce substancialmente. Segundo a Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), em 2006, apenas 25% dos pacientes incidentes em diálise tinham mais de 65 anos.27 Já em 2010, esse percentual subiu para 30,7%.28 A prevalência de idosos sob TRS também aumenta, embora mais lentamente. No censo de diálise da SBN de 2014, a prevalência de pacientes maiores de 65 anos atingiu seu maior percentual histórico: 32,5%.29 No mesmo levantamento, pacientes sob TRS com idade superior a 80 anos perfaziam 4,6% do total.
Nos EUA, onde os idosos constituem o subgrupo de mais rápido crescimento na população em diálise, esta tendência também é confirmada.13 Em números absolutos, nos EUA, o número de pacientes acima de 80 anos aumentou de 7054 em 1996 para 13.577 em 2003.3 Na Europa, por sua vez, entre 1998 e 2004, o percentual de pacientes incidentes acima de 75 anos aumentou de 20 para 29% no País de Gales e de 18 para 23% na Inglaterra.30
Apesar de idade avançada não ser uma contraindicação à terapia dialítica, idosos apresentam maior morbidade e mortalidade do que pacientes mais jovens sob TRS. A sobrevida dos pacientes que iniciam TRS com 75 anos ou mais é de 59% em 1 ano e 43% em 2 anos nos EUA31 e 71% e 54%, respectivamente, em países europeus.32 Entretanto, mais de 10% destes morrem nos primeiros 3 meses de início da terapia dialítica.32,33 Em razão disso, em anos recentes, ampliou-se a discussão sobre alternativas de tratamento não dialítico para idosos com DRC em estágio de falência renal estabelecida.
A fim de viabilizar um atendimento multidisciplinar, com estímulo à tomada de decisão compartilhada, em 2015, foi elaborado um algoritmo para avaliar, em pacientes a partir de 75 anos incidentes em diálise, o risco de morte precoce, definida como aquela ocorrida dentro de 3 meses após iniciada a diálise. Para isso, desenvolveu-se um escore de 0 a 25 pontos, baseado em oito variáveis clínicas e uma laboratorial, com intuito de classificar os pacientes em três grupos de acordo com o risco de morte. Desse modo, é possível individualizar o acompanhamento, oferecendo-lhes maior possibilidade de participação na escolha pela TRS ou paliação.34
Uma tomada de decisão eficaz não envolve apenas o processo que conduz até a decisão, mas também um claro plano pós-decisão. Um teste de terapia com diálise, por 30 a 60 dias, pode ser de utilidade em certos contextos, especialmente quando persistem dúvidas. É importante a manutenção do acompanhamento clínico durante o período, após o qual, reavalia-se a decisão de renúncia à diálise.35
Caso a decisão tenha sido por TRS, por tempo limitado ou não, a possibilidade de recurso futuro a um plano de cuidados paliativos deve ser apresentada e discutida. Caso tenha havido escolha por tratamento conservador, é essencial garantir-se acompanhamento meticuloso. Idealmente, o tratamento deveria desenvolver-se em uma instituição capacitada para cuidados geriátricos e paliativos, mas essa é uma alternativa virtualmente inexistente em nosso País. Em ambos os casos, dada a trajetória da doença, a cooperação entre as equipes de Nefrologia e geriátrica ou de cuidados paliativos é fundamental para um melhor resultado para o paciente e para a família.36
Estudos em idosos têm demonstrado pouca vantagem de sobrevida entre tratamento conservador não dialítico e a terapia dialítica, especialmente naqueles com extensas comorbidades.37 Um estudo prospectivo de 2003, com 44 pacientes, avaliou o tempo de sobrevida a partir da data proposta de iniciação da diálise. O tempo médio de sobrevida na população sob diálise foi de 8,3 meses, o que não foi estatisticamente diferente dos 6,3 meses observados na população submetida a tratamento conservador.38 Em estudo retrospectivo posterior, conduzido no Reino Unido e envolvendo 129 pacientes acima de 75 anos, evidenciou-se benefício mínimo quando se comparou a sobrevida sob diálise versus tratamento conservador (média 19,6 contra 18,0 meses).39 No mesmo estudo, a vantagem de sobrevida desapareceu em pacientes com maior número de comorbidades, especialmente nos portadores de cardiopatia isquêmica.
Outros estudos, porém, apontaram melhor sobrevida no grupo submetido à diálise. Entretanto, uma análise mais detalhada da metodologia pode ajudar a explicar alguns desses resultados. Um estudo, conduzido em um grande centro nefrológico francês, observou o desfecho de 144 pacientes incidentes com TFG inferior a 10 ml/min e idade acima de 80 anos, pré-selecionados, entre os anos de 1989 e 2000, por uma equipe multidisciplinar para TRS ou tratamento conservador.40
Observou-se amplo benefício de sobrevida com a diálise (28,9 vs. 8,9 meses, p < 0,0001). Todavia, o viés foi evidente. Dos 43 pacientes que não dialisaram, seis foram selecionados para TRS e recusaram. Aos 37 restantes não foi proposta TRS pelo time multidisciplinar, com base em critérios que incluíram referência nefrológica tardia, isolamento social, baixa capacidade funcional e diabetes mellitus. Dessa forma, a marcante diferença de sobrevida explica-se pela própria seleção dos pacientes que deveriam ou não dialisar.
Outro estudo retrospectivo de 2010, desta vez na Inglaterra, compilou dados de 844 pacientes e evidenciou sobrevida média de 67,1 meses no grupo em diálise contra apenas 21,2 meses no grupo submetido a manejo clínico não dialítico (p < 0,001). Entretanto, o grupo sob tratamento conservador era significativamente mais idoso (p < 0,001), com uma média de idade de 77,5 anos vs. 58,5 anos, sendo 68,4% vs. 11,2% dos pacientes acima de 75 anos. Além disso, os pacientes do grupo sob TRS apresentavam menos comorbidades (17,3% vs. 49,7% com alto escore de comorbidade, p < 0,001). De fato, o refinamento da análise com um modelo de risco proporcional de Cox ajustado para idade, diabetes e escore de comorbidade não mais detectou diferença de sobrevida entre a terapia dialítica e o tratamento conservador para pacientes acima de 75 anos.41
Um estudo inglês adicional, publicado em 2009, avaliou a sobrevida de uma coorte prospectiva de 202 pacientes com TFG inferior a 30 ml/min e idade acima de 70 anos.42 Observou-se benefício de sobrevida (37,8 meses vs. 13,9 meses, p < 0,01) para indivíduos tratados com TRS em oposição ao que os autores chamaram de "tratamento conservador máximo". Novamente, os pacientes sob tratamento conservador eram mais idosos (81,6 vs. 76,4 anos, p < 0,001).
É importante destacar o fato que os pacientes sob TRS passaram proporcionalmente mais tempo do período que sobreviveram vinculados ao hospital. Por exemplo, os 112 pacientes tratados exclusivamente com hemodiálise passaram 47,5% dos dias de sobrevida (173 dias por paciente por ano) internados ou dialisando ou em consultas ou em trânsito para dialisar. Já os pacientes no regime conservador passaram apenas 4,3% dos seus dias de sobrevida em situação semelhante (16 dias por paciente por ano).
Segundo relatos, Hipócrates já sugeria que não se tratasse pacientes "suplantados" por suas doenças, uma vez que nesses casos o tratamento seria ineficaz.43,44 Embora já houvesse discussões prévias sobre situações nas quais a TRS poderia ser inapropriada,10,45 no caso da Nefrologia, a primeira tentativa de estabelecer uma diretriz específica sobre o dilema de oferecer ou não diálise foi publicada há pouco mais de 20 anos.46
No que foi descrito explicitamente como uma opinião pessoal, em 1993, Lowance sugeriu que se aconselhasse pacientes e familiares a não iniciar diálise ou realizar transplante renal em cinco circunstâncias: 1. Idade física ou cronológica avançada, com expectativa de vida inferior a dois anos, 2. Demência com disfunção cognitiva irreversível, 3. Expectativa de vida inferior a dois anos devido a doenças graves coexistentes (diabetes, cardiopatia, vasculopatia, câncer ou outras doenças sistêmicas), 4. Doenças coexistentes nas quais o prolongamento da vida com a TRS, mesmo com expectativa de vida superior a dois anos, cause dor ou sofrimento intratáveis e 5. Dependentes químicos (que deveriam permanecer em diálise até que pudessem superar a dependência e demonstrar capacidade de aderência ao tratamento compatível com a manutenção do enxerto).46
Um ano mais tarde, autores canadenses propuseram uma diretriz aperfeiçoada, assumidamente flexível e aberta a reavaliações e discussões, e que, novamente, enumerava morbidades que, quando associadas à DRC, justificariam aconselhar a recusa da TRS a pacientes e/ou familiares.47 Cabe ressaltar que as duas propostas acima consideravam que a responsabilidade do médico deveria transcender a mera apresentação objetiva das opções terapêuticas.46,47
Mesmo respeitando a autonomia do paciente, entendiam ser obrigação do médico discutir a linha de ação que considerasse a melhor opção para cada paciente sob seus cuidados. Admitidamente, essa conduta pode ser interpretada de forma distinta em diferentes culturas. Os autores canadenses, por exemplo, destacaram a possível natureza menos conflituosa dos seus pacientes em relação aos americanos.46,47
Em 1998, resumindo elementos comuns das quatro propostas publicadas até então,46-49 surge a proposta de um "Consenso Emergente", convergindo para cinco situações em que a diálise não deveria ser indicada. Assim, não se indicaria TRS em pacientes com doença terminal não renal, permanentemente inconscientes, incapazes de interagir, não cooperativos com o processo dialítico ou com história de recusa à diálise.50
Em 1999, a Renal Physicians Association (RPA) em conjunto com a American Society of Nephrology (ASN) coordenaram esforços e desenvolveram uma diretriz para auxiliar o processo decisório de iniciar ou suspender a TRS.51 O grupo envolveu representantes religiosos, bioeticistas, pacientes em diálise, enfermeiros e médicos.
Em 2010, em razão de novas evidências, a RPA revisou e atualizou as orientações (Tabela 1).52 Entre os tópicos atualizados, foi incluído um novo modelo de previsão do risco de morte em seis meses para pacientes mantidos em hemodiálise (disponível em http://touchcalc.com/calculators/sq), que compreende cinco variáveis: idade, albumina sérica, presença de demência e de doença vascular periférica e a resposta à "pergunta surpresa".53 Esse último instrumento, a ser respondido pelo médico assistente do paciente, foi desenvolvido na esfera da medicina de cuidados paliativos e consiste na pergunta: "Você ficaria surpreso se esse paciente morresse nos próximos 12 meses?".54
Tabela 1 Diretrizes de 2010 da renal physicians association em conjunto com a american society of nephrology.47
Estabelecendo um processo de decisão compartilhada |
Recomendação nº 1 |
Desenvolver relação médico-paciente visando um processo de tomada de decisão compartilhada. |
Informando os pacientes |
Recomendação nº 2 |
Informe plenamente, a pacientes com IRA, DRC nos estágios 4 e 5 ou IRC estabelecida, o diagnóstico, o prognóstico e todas as opções de tratamento. |
Recomendação nº 3 |
Forneça a todos os pacientes com IRA, DRC no estágio no 5 ou IRC estabelecida uma estimativa do prognóstico específica para sua condição global. |
Facilitando o planejamento de cuidados avançados |
Recomendação nº 4 |
Estabeleça um plano de cuidados avançados. |
Tomando a decisão de não iniciar ou descontinuar a diálise |
Recomendação nº 5* |
Caso apropriado, renuncie a diálise (não iniciar ou descontinuar) em pacientes com IRA, DRC no estágio 5 ou IRC estabelecida, nas seguintes situações bem definidas: |
• Paciente com capacidade de tomar decisão, que estando apropriadamente informado e capaz de tomar decisões voluntárias recuse ou solicite a descontinuação da diálise. |
• Paciente sem capacidade de tomar decisão, mas que tenha previamente informado, de forma oral ou escrita, a opção por renúncia à diálise. |
• Paciente sem capacidade de tomar decisão, cujo representante legal constituído recusa ou solicita a descontinuação da diálise |
• Paciente com distúrbio neurológico grave e irreversível, sem sinais de pensamento, sensações, comportamento intencional ou consciência do ambiente e de si próprio. |
Recomendação nº 6 |
Considere renunciar a diálise em pacientes com IRA, DRC no estágio 5 ou IRC estabelecida com prognóstico muito pobre ou para os quais não se possa oferecer diálise de forma segura. Inclui-se nessa categoria pacientes nas seguintes situações: |
• Condição médica que impeça o processo técnico da diálise por incapacidade de cooperação (p. ex. pacientes com demência avançada que puxam as agulhas de diálise) ou por instabilidade clínica (p. ex. hipotensão grave). |
• Doença terminal de causa não renal (com a ressalva que alguns indivíduos podem perceber benefício potencial e decidir pelo tratamento com diálise) |
• DRC estágio 5, com mais de 75 anos e que apresentem dois ou mais critérios significativos de mau prognóstico (ver Recomendações no 2 e no 3): 1) resposta negativa à pergunta "surpresa" (ver texto); 2) elevado escore de comorbidades 3) disfunção funcional significativa (p. ex. índice da escala de desempenho de Karnofsky < 40 e 4) desnutrição crônica grave (i.e. albumina < 2,5g/dl). |
Resolvendo conflitos sobre as decisões relativas à diálise. |
Recomendação nº 7 |
Considere realizar a diálise por um período limitado de experiência quando um paciente com prognóstico incerto tem necessidade de diálise, mas não se consegue atingir um consenso sobre o início do tratamento. |
Recomendação nº 8 |
Estabeleça um processo de abordagem sistemática para resolução de conflitos relativos à tomada de decisão em caso de discordância quanto ao início ou continuação da diálise. |
Provendo cuidados paliativos efetivos. |
Recomendação nº 9 |
Com vista a melhorar desfechos centrados no paciente, ofereça cuidados e intervenções paliativas para todos os pacientes com IRA, DRC ou IRC estabelecida que sofram com a carga da doença renal. |
Recomendação nº 10 |
Use uma abordagem sistemática para informar sobre diagnóstico, prognóstico, opções de tratamento e metas de cuidado. |
*O tratamento clínico, incorporando cuidados paliativos, é um componente integral da decisão de renúncia da diálise em pacientes com IRA, DRC ou IRC estabelecida. A equipe assistente deve cuidar do conforto e qualidade de vida dos pacientes, seja diretamente ou mediante referência para cuidados paliativos ou asilos de retaguarda hospitalar para enfermos terminais (ver Recomendação no 9).
A proposta revisada da RPA, ainda vigente, incluiu também considerações adicionais sobre a propriedade de TRS em pacientes muito idosos, com comorbidades graves ou com distúrbios cognitivos. Além disso, dentro do processo de decisão e cuidado, foram incorporadas preocupações relativas às barreiras de comunicação entre profissionais de saúde e pacientes e familiares, o respeito às escolhas prévias dos pacientes, incluídas diretrizes antecipadas, e o reconhecimento da importância de sintomas incapacitantes e intoleráveis, como dor e náuseas, invariavelmente subdiagnosticados e subtratados.52
A alta mortalidade de pacientes com doença crítica submetidos à TRS aponta para a provável futilidade do suporte renal em percentual significativo de casos.55 As diretrizes para descontinuação da diálise, discutidas acima, também podem ser aplicadas no contexto de pacientes com IRA, sob terapia intensiva. De fato, as recomendações mais recentes da RPA/ASN referem-se tanto a pacientes com IRA quanto a portadores de DRC.56
Existem, entretanto, algumas diferenças importantes a serem destacadas. O potencial para a tomada de decisão compartilhada, por exemplo, difere entre os dois cenários. No caso da DRC progredir para necessidade de diálise, o processo de tomada de decisão resulta, idealmente, de uma relação de longa data entre o paciente, a família e o nefrologista, que pode desenvolver-se durante o período em que a doença progride lentamente.
A posição central do nefrologista no cuidado ao portador de DRC contrasta com o papel, às vezes, coadjuvante na assistência ao paciente com doença crítica e IRA.55 Nesse caso, a decisão de descontinuar a diálise não se relaciona exclusivamente à TRS e engloba a suspensão de uma série de outras intervenções terapêuticas.
Em pacientes sob tratamento intensivo, envolvendo o suporte a múltiplos órgãos e sistemas, discutir isoladamente a interrupção da diálise não faz sentido. Sabe-se que, nesses pacientes, a percepção de futilidade e a opção por limitar a agressividade das medidas de diagnóstico e tratamento nem sempre resulta na interrupção imediata de todas as modalidades de suporte vital.
Em outras culturas, medidas de suspensão de suporte acontecem progressivamente, sendo observado que a descontinuação da terapia dialítica é uma das primeiras a ocorrer. Já o suporte nutricional artificial, a hidratação e a ventilação mecânica tendem a ser as últimas intervenções retiradas.57 No Brasil, esse padrão é menos evidente, principalmente porque a suspensão de todas as intervenções só costuma acontecer em casos de morte encefálica. Assim, decisões sobre a não indicação ou suspensão da diálise, com frequência, sinalizam o momento da transição para uma abordagem paliativa, sem mais "investimentos" na recuperação do paciente.
Não raramente, o nefrologista é convocado para opinar sobre a propriedade da TRS, para que se mantenham ou não as demais medidas terapêuticas. Na ausência de diretrizes nacionais, a recomendação dos autores é que a suspensão/sonegação da diálise seja tomada de forma conjunta e unânime por toda equipe e familiares e sob a tutela do médico assistente principal.
A atuação médica baseia-se em dois pilares morais: a manutenção da vida e o alívio do sofrimento. Na maioria das vezes, essas atitudes são complementares e não antagônicas. Em 1978, Beauchamp e Childress consagraram os quatro princípios fundamentais da bioética relativos ao agir humano: beneficência, não maleficência, justiça e autonomia.58 Nas discussões sobre a conduta nas disfunções renais avançadas, entende-se como função do médico, atuando segundo o princípio da beneficência, avaliar se existe possibilidade de recuperação da função renal e definir se alguma intervenção será potencialmente benéfica.
O que antes seria uma decisão unilateral do médico, vem assumindo novos contornos sob a ótica da bioética, com preocupações extensivas à autonomia do paciente. Discute-se, portanto, que a opção de iniciar ou renunciar à TRS não deve ater-se à exclusiva responsabilidade profissional do médico. Entretanto, é sempre mais fácil aceitar a autonomia do paciente quando a resposta é concordante pelo início da TRS. Muito mais difícil é deixar prevalecer, sem reservas, o direito do paciente em recusar uma terapêutica cuja omissão, resultará, invariavelmente, na sua morte, mesmo que não de imediato.
De forma semelhante, há necessidade de equilibrar o princípio da não maleficência com o da beneficência. Quando o avançar da doença afasta a possibilidade de cura ou controle, deve-se observar o princípio da não maleficência, tornando-se prioritário o alívio da dor e do sofrimento.
Entretanto, não é incomum, inclusive em nossa sociedade, ocorrerem dificuldades de pacientes e familiares em aceitarem a enfermidade avançada e a inevitabilidade da morte. Essa relutância pode conduzir à distanásia, ou seja, a insistência na manutenção de todas as medidas terapêuticas possíveis, com prolongamento irracional da vida e agravamento do sofrimento de um indivíduo já profundamente debilitado.
Nesse caso, há outro conflito, pois a decisão de prolongar a vida causa sofrimento adicional ao paciente e, dessa forma, agride o princípio da não maleficência.59 Em outros cenários, com base no saber científico e considerando o impacto sobre a quantidade e qualidade de vida do indivíduo e a despeito de exigências da família ou do paciente, pode-se entender como direito do médico a recusa em praticar terapias fúteis.59
Novamente, no Brasil carecemos de legislação específica sobre a questão.60 A Constituição Federal de 1988 forneceu algum sustento legal para decisões de descontinuação de terapias como a diálise. Em seu artigo 1, inciso III, a Constituição prevê, como um dos fundamentos básicos, a "dignidade da pessoa humana" e, em seu artigo 5, inciso II, garante que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".61
A Resolução nº 1805/2006 do Conselho Federal de Medicina (CFM) determinou que "na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis, é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal".62
A orientação do CFM veio em consonância com as da Associação Médica Mundial, do Conselho Europeu e da Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Seguiu, ainda, o ordenamento jurídico adotado por outras nações, como Espanha, Suíça, França, Bélgica, Reino Unido, Itália, Canadá, Estados Unidos da América, México, Uruguai, Suécia e Holanda.63
Todavia, a Resolução nº 1805/2006 foi objeto de contestação pelo Ministério Público Federal (MPF).64 A longa petição fez referência à ortotanásia como artifício homicida, desprovido de razões lógicas, que violaria a Constituição Federal e que embutia o "mero desejo de dar ao homem, pelo próprio homem, a possibilidade de uma decisão que nunca lhe pertenceu".64 Em 2007, a Resolução foi suspensa por decisão liminar, seguindo a recomendação do MPF.
Apesar da sentença temporária adversa, a obstinação terapêutica também foi desabonada no novo Código de Ética Médica de 2009.65 A autonomia foi um dos itens de maior destaque desse novo código. Assim, o inciso XXI, do capítulo de Princípios Fundamentais, garante que, na tomada de decisões, "o médico aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas".
A distanásia, com sofrimento do paciente e sem perspectiva de melhora ou cura, também é mencionada. O inciso XXII, no capítulo I, determina que "nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados".
Após recurso do CFM, de três anos de intenso debate e de revisão do parecer original do MPF,66 em dezembro de 2010, foi prolatada sentença julgando improcedente o pedido de decretação de nulidade da Resolução nº 1.805/2006. Na sentença, o magistrado entendeu que a Resolução nº 1805/2006, ao regulamentar a possibilidade de o médico limitar ou suspender procedimentos que prolonguem a vida do paciente em fase terminal de patologias graves e incuráveis, não ofendia o ordenamento jurídico.67 Dois anos depois, o CFM, na Resolução nº 1995/2012, garantiu ao paciente o direito de manifestar, por meio de diretrizes antecipadas de vontade, seus desejos em relação aos cuidados médicos.68
Em que pese o balizamento da Constituição Federal e do CFM, inexiste, ainda, legislação específica para adoção de práticas ligadas aos cuidados paliativos e ortotanásia. Esta última significa, etimologicamente, "morte boa ou correta" e pode ser entendida como o não prolongamento artificial da vida, evitando o sofrimento e a distanásia.69
Apesar do Código Penal Brasileiro não fazer referência à ortotanásia, juristas e médicos encontram amparo legal na sua prática. A compreensão vigente é que a restrição de recursos artificiais não configura crime se não implicam em efetivo benefício para o paciente e se são apenas medidas de obstinação terapêutica. Até entendimento contrário, uma vez que existem vários projetos de lei atualmente em tramitação, a contraindicação ou indicação de uma medida terapêutica é uma decisão médica, que deverá ser discutida com familiares e pacientes, buscando garantir a dignidade em final de vida.70
É importante que o médico compreenda a opinião do paciente e familiares em relação às suas crenças e fé religiosa. Independentemente da religião, entretanto, a dignidade humana diante do fim inevitável da vida é fator determinante na conduta médica. O conforto e alívio através de cuidados paliativos não devem ser entendidos como desrespeito à condição humana ou à religiosidade, mas, sim, como um modo de amenizar a transição entre a vida e a morte.71
Faz-se necessária, ainda, a adequada distinção entre ortotanásia e eutanásia. Enquanto a primeira significa a não utilização de recursos terapêuticos fúteis e excessivos, que somente prolongarão o sofrimento do paciente, a eutanásia pressupõe abreviação ou interrupção da vida, podendo ser ativa ou passiva. Todavia, a decisão de não instituir tratamento, de omissão ou suspensão de suporte vital fútil não é e nem deve ser considerada ato de eutanásia, mas de boa prática no exercício da medicina.70
Quando a ortotanásia é disciplinada de forma adequada, o suicídio assistido e a eutanásia perdem muito de sua expressão. Sendo a ortotanásia uma fórmula mediadora, capaz de produzir consenso entre opiniões distintas sobre o assunto, alguns pontos devem ser discutidos conjuntamente pela sociedade e a comunidade médica e jurídica.
São eles: a limitação consentida ao tratamento; os cuidados paliativos e alívio da dor; a ação dos comitês hospitalares de bioética e a educação dos profissionais da saúde, assim como a adequada informação da população.63 No entendimento presente, pode-se afirmar que a prática da ortotanásia atende aos princípios da bioética e encontra amparo jurídico,71 sendo reivindicada pelo direito à morte digna, considerada uma extensão da dignidade da pessoa humana.69
O manejo não dialítico da DRC estabelecida inclui também o tratamento adequado da anemia, controle volêmico, correção eletrolítica (potássio, cálcio e fósforo) e da acidose e controle da pressão arterial. Há evidências recentes de que dieta adequada pode reduzir a sintomatologia e aumentar a sobrevida.72 A abordagem sintomática individualizada e a instituição precoce dos cuidados paliativos são importantes para melhora da qualidade de vida.73-75
Entende-se por cuidados paliativos, segundo a definição da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 1990, atualizada em 2012, como uma abordagem realizada por uma equipe multidisciplinar, que promove a qualidade de vida de pacientes e seus familiares, diante de doenças que ameacem a continuidade da vida, por meio da prevenção e do alívio do sofrimento.
Requer identificação precoce, avaliação e tratamento da dor e outros problemas de natureza física, psicossocial e espiritual.76 Por fim, devem ser iniciados, idealmente, no momento do diagnóstico da doença (no caso, da DRC) e progredir conforme a evolução da patologia.77
O número crescente de pacientes em diálise, o aumento da expectativa de vida e a pressão econômica com os elevados gastos com TRS e novas terapias certamente estimularão uma maior discussão sobre as indicações e o uso sustentável da terapia dialítica.
Poucos nefrologistas recebem treinamento ético formal. Em pesquisa realizada por meio de envio de questionário, nos EUA, apenas 9% dos nefrologistas haviam realizado treinamento ético formal.78 Percebe-se o Brasil ainda aquém desse debate ético, já avançado em outros países. A crescente judicialização da saúde, a ausência de treinamento bioético da equipe e a forma como se desenha economicamente o sistema de saúde no país podem ajudar a explicar essa realidade.
No Brasil a TRS crônica é custeada preponderantemente pelo Estado (84%), principalmente através do Sistema Único de Saúde e, na minoria restante, pela saúde suplementar.79 Em ambas situações, não há pressão financeira direta para a família do paciente o que, por vezes, desestimula qualquer discussão sobre a real necessidade da terapia. Nesse contexto, a eventual comodidade da família e/ou da equipe médica pode permitir a continuidade de terapias fúteis, resultando em prolongamento do sofrimento do paciente.
O surgimento e crescimento de planos de saúde de coparticipação em nosso país podem estimular o debate acerca do tema. Além disso, a exemplo dos esforços da RPA/ASN, é necessário maior envolvimento dos próprios nefrologistas, e de suas representações, na normatização desse tema, idealmente pela produção de protocolos e diretrizes apropriadas ao contexto médico e jurídico nacional.
Diante do envelhecimento da população, do aumento da prevalência de doenças crônicas e da expansão contínua das tecnologias de manutenção artificial da vida, pode-se antever que a renúncia e a suspensão da terapia dialítica estão destinadas a tornarem-se tópicos frequentes de discussão em nosso meio, com impacto crescente sobre a prática do nefrologista e com o surgimento de orientações e regulações sobre o acesso a diálise.
As tecnologias de TRS existentes oferecem pouca ou nenhuma vantagem de sobrevida e de qualidade de vida para pacientes com muitas comorbidades e/ou idade avançada. Nesse contexto, o tratamento conservador, não dialítico, com instituição precoce e multidisciplinar de tratamento paliativo é uma alternativa.
Atualmente, a prática da ortotanásia encontra sustentação ética, legal e merece ser melhor difundida, como boa prática médica. É importante ampliar os debates visando maior conscientização dos nefrologistas, assim como a elaboração de diretrizes nacionais sobre o tema. A estratégia de alinhar conhecimento adequado, incorporar os princípios da bioética e assegurar a participação de pacientes e de familiares no processo de decisão há de garantir maior segurança na definição de condutas, menor risco jurídico, proteção emocional de familiares e profissionais de saúde e preservação da dignidade dos pacientes.